No cinema que hoje se vem fazendo na máquina hollywoodinana o espaço para o cinema de série B existe apenas no universo do filme de género, em particular os seriais de terror. Neste sentido podemos dizer que aí, no que há de mais formuláico e de mais cliché no cinema americano, se encontra paradoxalmente o espaço de maior liberdade para os realizadores – isto porque num espaço de total formatação já só parece haver espaço para o gesto subversivo. AVPR: Aliens vs Predator – Requiem (2007) de Colin Strause e Greg Strause é um caso maior desse trabalho no/do subtexto político, funcionando exemplarmente como objecto de estudo para aquilo que é o exercício de passar a perna à engrenagem acéfala do imberbe entretenimento juvenil. Os realizadores focam-se aqui no tema profundo que atravessa toda a série dos filmes Alien, a saber, a maternidade – onde a filiação entre monstro e Ripley atingia o ponto de rebuçado em Alien: Resurrection (Alien: O Regresso, 1997), sendo que no recente Prometheus (2013) não era de longe esquecida, veja-se a sequência antológica de auto-aborto. Só que desta vez essa maternidade (ou a sua falta) é levada ao extremo sanguíneo do gore, convocando-se através da baba e do ranho uterino as questões da natalidade nos países ocidentais. AVPR é (ou deveria ser) então o local de pesquisa primordial da comissão independente para o incentivo à natalidade criada pelo actual executivo; a resposta ao grande problema da modernidade não passa por reduções de IRS para famílias numerosas ou medidas semelhantes, a resposta que os irmãos Strause apresentam é muito mais simples: uma criatura monstruosa metade Alien metade Predator que engravida todas as fêmeas por que passa com inúmeros bicharocos, numa lógica de dispersão viral que encontra no ventre feminino o local perfeito de incubação. Respire fundo, faça força, e acompanhe-me neste raciocínio.
Primeiro que tudo há que perceber um aspecto; onde Alien foi sempre uma série que encontrou na claustrofobia de uma nave em alto espaço o ambiente perfeito para se explorar o confronto (e conforto?) entre homem e besta e Predator foi, por oposição, uma série de florestas e dos espaços abertos, o encontro dos dois monstros provocou, no filme de Paul W. S. Anderson, o choque entre as duas raças espaciais onde os humanos pouco mais eram que props. Neste segundo tomo do crossover o esquema é o do teen slasher, isto é, o grupo de adolescentes em constante tensão sexual que vêem catalisados, no espaço de uma noite terrível, todos os seus receios e desejos através da crueldade mortal de uma figura exógena. Ou seja, aqui o Predalien (ou melhor, o Alienator – que é isso que ele é de facto, um alienador) é funcionalmente igual a Michael Myers ou Leatherface. E como na boa (?) tradição do cinema de terror americano dos anos 1970 em diante, há aqui um lado profundamente conservador (diria direitista) que se revela na forma como todos os comportamentos vagamente desviantes da juventude são imediata e violentamente condenados (leia-se castrados ou amputados). Recentemente filmes como The Cabin in the Woods (A Casa na Floresta, 2012) e It Follows (2014) resolviam esta formulação moral(ista) do género através da sua exposição (no filme de Drew Goddard era um deus vingador que tinha que ser apaziguado pela morte dos pecadores) ou da sua inversão irónica (para David Robert Mitchell o sexo funciona como salvação da maligna criatura). Em AVPR nada disso se opera, pelo contrário, talvez nunca se tenha sido tão reaccionário, aqui todo o sexo ou é mortal ou destinado à reprodução e qualquer forma de desejo (sexual, profissional, monetário, narcisista) apanha por tabela do Alienator.
De modo a tornar evidente esta questão note-se a personagem da menina adolescente boazuda que é o centro de atenções de dois jovens (o ex e o pretendente) e da câmara. No primeiro momento em que a encontramos ela explica que está prestes a deixar o namorado (para boa fortuna do protagonista) mas a expressão que usa é particularmente reveladora, “I’m getting ready to fire him”. Ou seja, de início os manos Strause olham as relações como encontro comercial, como troca de serviços. Não é também por acaso que o nosso protagonista se encontra pela primeira vez com a boazuda para lhe entregar uma pizza (sim, podia ser o início de um porno) que ela paga dando-lhe o troco chorudo que ele educadamente agradece. Ou seja, é o numerário que funciona como seminal elemento de união do casal estabelecendo logo de princípio uma relação de poder dela sobre ele(s) – e mais importante, é o capital a fazer as vezes da relação, é o sexo a ser substituído pela transacção (não confundir com transação). Por tudo isto o sexo é coisa limpa, funcional, comercial, e como tal não há ninguém a condenar.
O perigo maior do Alienator é o facto de este ser (dar e impor) vida – o verdadeiro horror para o infértil mundo ocidental! Então qual é a reacção do executivo no filme? Controlar a praga de natalidade.
Continuando esta senda, mais à frente, ela pergunta-lhe porque olha ele tão fixamente para ela durante as aulas que têm em conjunto, ao que ele lhe explica que a vaidade dela a cega já que atrás de si, na sala de aula, está um relógio de parede. É para lá que ele está sempre a olhar. De novo podemos dizer que a relação se mantém desequilibrada, já que ele se prende a esse constrangimento fundamentalmente monetário que é o tempo e ela só se concentra em si (já que a sua família é rica e não tem que ter um trabalho de Verão para poder usufruir dos pequenos luxos do american way). No entanto esta cena vira total perversão simbólica quando os dois se encontram (às escondidas) na piscina do colégio. Ela despe as suas roupas ficando apenas com o fato de banho e a câmara enquadra-a com um relógio de parede em fundo e pergunta provocadoramente are you looking at me or the clock?”. Aqui o sexo sobrepõe-se ao tempo e como tal ao dinheiro, e portanto é coisa lasciva, prazerosa, um atentado à família e ao crescei e multiplicai-vos. Ultraje! Pouco demora até que a criatura surja, alguns morrerão na piscina da escola, o medo é enorme e pelo trauma ela virginifica-se, ao ponto de a certo momento ser ela a portadora da luz, ela ilumina e purifica o território escuro e desconhecido (e pela luz que transporta aproxima-se do dar à luz, perde a sua natureza brutalmente sexual e converte-se em figura maternal através do contacto com uma das crianças do grupo de sobreviventes). Mas uma vez impuro, impuro sempre – não esquecer o reaccionarismo -, ela tem que morrer, nem que seja por acidente, que é o que acontece: mas de todas as mortes é o decepamento que lhe acomete… pela barriga, uma espécie de interrupção-(in)voluntária-da-gravidez extrema que a crava contra a parede em duas metades, irreconciliáveis, a santa e a puta, finalmente separadas pelo eixo uterino que as ligava. [Esta amputação só ocorre na versão unrated que foi mais tarde editada em DVD, sendo que na versão que se pôde ver em sala a sua morte fica-se pelo empalamento – curioso é que também em Alien³ (Alien 3 – A Desforra, 1992) tenha sido a sequência da morte de Ripley que foi cortada, ou como refere Luís Mendonça, “suicídio final, momento do ‘nascer’ e momento do ‘morrer’ – na realidade, momento-síntese da trilogia em que Ripley QUASE materializa o seu sonho de ‘renascer’ dando vida a algo“, momento de parto entre mulher e besta no primeiro filme da série onde se inverte a esterilidade da protagonista, pela mão desse então juvenil realizador de nome David Fincher].
Se o leitor pode estar com dúvidas sobre a caridade interpretativa deste que aqui vos escreve, é porque com certeza não viu ainda o filme. A meio do segundo acto (e daí em diante até ao desfecho), todas estas questões que introduzi se literalizam na trama da narrativa, onde o político ganha um força simbólica invulgar no cinema mainstream. Note-se então que pela primeira vez na série uma criança é atacada por um Alien e pela primeira vez de um peito de criança salta um horrível criatura dentada. Se existe certamente o desejo de chocar (os produtores do filme obrigaram a cortar ou reformular certas cenas por seres demasiado gruesome) também é certo que existe um plano de extermínio da raça humana onde tanto homens adultos como crianças passam pelo dente do bicho. O problema dramático do filme prende-se então, em parte, no facto de o monstro necessitar de humanos para se disseminar, especialmente de mulheres cujo ventre permite um maior número de descendentes (sendo que o parto – pelo peito ou pela barriga – causa inevitavelmente a morte do parturiente). Agora note: numa sociedade onde a natalidade é puxada a ferros e a população decresce aos tropeções a cada década, aquilo que mais terrível há no Alienator é o facto de este impor uma natalidade ao humano. Ou seja, o perigo maior do Alienator é o facto de este ser (dar e impor) vida – o verdadeiro horror para o infértil mundo ocidental! Então qual é a reacção do executivo no filme? Controlar a praga de natalidade, cessar o vírus e com ele exterminar todos aqueles que possam ter estado expostos a ele, isto é, lança uma bomba (com a potência décupla da de Hiroshima) sobre a pequena cidade onde tudo se passa, matando os pouco sobreviventes. O Alien é vida e o Estado é morte.
Mas os protagonistas salvam-se. Como? A certo momento o grupo chega a um ponto em que tem que optar entre duas direcções opostas, “tens que decidir agora!”, ou o caminho para a praça central da cidade (a morte, onde cairá a bomba) ou o caminho para… a Maternidade. Sim, leu bem, a Maternidade é literalmente a saída, é por lá que se opera a salvação dos protagonistas – pelo heliporto no telhado. Nesse espaço onde se amontoam barrigas inchadas de grávidas que rebentam de lagartixas alienígenas, espaço infestado de vida e ao mesmo tempo de morte, é onde se opera a dita salvação, porque os personagens se juntam num sentido único e comum, proteger a criança que com eles viaja, a filha de uma ex-militar regressada da guerra do Iraque. Pois bem, ao se juntarem na protecção da vida eles salvam-se da outra vida que os quer aniquilar. E mais, essa mãe regressada, que “abandonou” a filha durante o tempo da sua missão, expia os seus males ao reconfigurar-se também ela de novo como mãe, ao se apresentar como figura protectora da sua filha – que inicialmente a recusara – e por isto mesmo é poupada à fúria regeneradora da criatura. Enquanto isto se passa, Alienator luta contra Predator, numa batalha tocante (e mais uma vez estou a ser literal!) no telhado do centro hospitalar: um combate entre seres extra-terrestres que é um baile de penetrações mútuas, um jogo de asfixiação erótica levado às últimas consequências, onde o orgasmo ocorre quando ambos se trespassam, dança da máxima vida e da máxima morte.
E no final, quando já não restam as cabeças-falo em abismo na boca de Alien, fica-nos só a arma do Predator, outro falo, que é desde logo tida como muito perigosa para o nosso mundo, The world isn’t ready for this technology. / But this isn’t for our world, is it? Porque o nosso mundo recusa esse poder destruidor da vida que vem de fora, o nosso mundo é um de memórias e passados. De imagens! Por tudo isto AVPR é discurso directo sobre a natalidade e metáfora para as questões da imigração. É sobre o nosso medo do que essa alegria seminífera é capaz – e é de esporra que falo, na sua polissémica natureza entre a coloquial meita e o brasileiro esbregue (barulheira, descompustura, desordem). Tudo isto manifestado nesse fluido de prazer e violência, xarope da vida e extracto de morte. AVPR: Aliens vs Predator – Requiem é então um bukkake alienígena, entre simbolismos e literalidades, sobre o espectador ocidental. Bom banho (e cuidado com a vista)!