Já diz o povão que não se deve voltar a um lugar onde se foi feliz. O Pedro Almodóvar, com o infeliz Los amantes pasajeros (Os Amantes Passageiros, 2013), procurou regressar não a um lugar ou tempo específicos, mas antes a um mapa de afectos que já fazia tijolo há coisa de trinta anos: a movida madrileña. Era obra contrafeita, versão polida e desprovida de lixo do genuíno mostruário de degeneração colorida e inofensiva desses seus primeiros trabalhos. Anos 80, uma vez mais.
Laberinto de pasiones (1982), terceira longa de Almodóvar, é uma obra que só poderá ser visionada com uns óculos que façam desaparecer do radar noções duvidosas como “cinismo”, “mau gosto”, ou “economia sentimental e narrativa”. E mesmo com a dita ferramenta tal não será garantido, visto o excesso e gordura visual serem tão pronunciados que o mais provável será os óculos estourarem e o pessoal, para dar descanso à retina, ter de ir ver uns quadros do Roy Lichtenstein. Ou então ir ver fotos do Frágil nos anos oitenta, a verdadeira movida europeia de então, e não é sem saudade de tempos que não vivemos que se escrevem estas palavras. António Variações.
Entretanto, de volta a Espanha, 1982. Meia dúzia de anos de liberdade. Campeonato do mundo de futebol, com o Naranjito como mascote. O povo madrileno parece ser o que mais quer aproveitar a oportunidade de uma vida. Novas gerações de escritores, dramaturgos, bandas musicais que nascem às dúzias por dia, cultura em cada passeio, bares dentro de bares, oxigénio criativo que parece não ter fim. Drogas e sexo empilham-se sem remorsos nos corpos da juventude; a SIDA parece tão distante, ainda. Anos que parecem nunca mais acabar, um modo de vida que outras cidades espanholas adoptam. Seiscentos quilómetros a oeste, pela mesma altura, a barbudagem “crítica” e “intelectual” promete passar a ferro uma banda de “fascistas” chamada Heróis do Mar. Ainda estamos a tentar descobrir o que nos leva a voltar ao país vizinho.
Neste seu terceiro filme, o desejo primordial parecia ser o de dar saída a uma enxurrada de fantasias e “perversidades”, com muito de burlesco e patuscada e pouco de qualquer ideia aproximada de “coesão narrativa”
É neste contexto de explosão criativa, de “loucura” como resposta às repressões de quarenta anos, que Laberinto de pasiones deve ser apreendido. Aliás, não só este como os seus outros filmes até Qué he hecho yo para merecer esto!! (Que Fiz Eu para Merecer Isto?, 1984), onde começa a existir um maior controlo e desejo romanesco, com o kitsch já subordinado em determinadas doses ao espartilho da escrita. Neste seu terceiro filme, o desejo primordial parecia ser o de dar saída a uma enxurrada de fantasias e “perversidades”, com muito de burlesco e patuscada e pouco de qualquer ideia aproximada de “coesão narrativa”, expressão idiota, mas que aqui surge a propósito. É uma comédia sexual num Verão madrileno, um caos, antes de mais, como testemunho da sua época, e portanto, completamente datado já no fim da sua rodagem, e a ideia nem seria outra.
Posto isto, basicamente qualquer frame de Laberinto de pasiones poderá servir de indicativo do foguetório que por ali vai. Escolhe-se um excerto que a muito custo se consegue ver até ao fim. Não sabemos o que nos leva a fechar mais os olhos: se os ritmos musicais e poesia lírica da dupla Almodóvar y McNamara com o tema “Suck it to Me”; se as graves ofensas vestuárias que se perpetuam por cada centímetro quadrado, já para não enveredarmos pelos terrenos de maquilhagens e afins, quelle horreur!; se o facto da Cecilia Roth, já então pertencente à “família Almodóvar”, não aparecer durante mais tempo. Se os Heróis do Mar já motivaram tanta indignação nas classes “intelectuais” que pastoreavam o povo, já se poderá imaginar o que um Pedro provocaria.
No fim, ficam as sensações de um filme (ou de um período artístico, para se ser mais exacto) que jamais poderia perspectivar a carreira subsequente de quem o idealizou. A partir daqui, Almodóvar tanto se poderia ter tornado no Russ Meyer ou John Waters europeu – ou, ainda mais underground, na versão “artística” dos filmes da Troma – como o de partir para outras abordagens fílmicas, sem que certos resquícios de escatologias passadas fossem desaproveitadas por completo. Dez anos depois, já Laberinto de Pasiones pertencia quase a outra vida de uma outra pessoa. E se houver qualquer outra tentativa de revivalismo, que tresande menos a homenagem obsoleta.