Me muero, me muero… Me muero y no sé por qué…
Rita Moreno, no filme
Convém não subestimar Henry Hathaway. Os franceses sabem-no muito bem, não se esqueceram das sessões de cinema que os formaram, de tudo o que lhes devem, e, pela lembrança dessas aventuras e sonhos primordiais, mas sobretudo na esperança de pagar a alegria de volta, vão-no dizendo, escrevendo. Nós vamos tentando ouvir. “Henry Hathaway (…) é um cineasta curioso. Não um autor no sentido em que os Cahiers du Cinéma o entendiam em 1958, mas antes um artesão do filme de género, especialista reconhecido do retrato elíptico. Nascido em 1898, deixa-nos uma boa cinquentena de filmes nervosos, amiúde pessimistas, sempre eficazes.”, escreveu Louis Skorecki no Libération. “Mestre da acção, pintor atento da violência, Hathaway, cineasta bastante mal conhecido e cujos pontos de vista são frequentemente muito originais, não podia estar mais longe dos seus pares. Ele diverge tanto de Ford, por exemplo, e da sua identificação calorosa com os ideais dos grupos sociais que retrata, como de Walsh, por sua vez tão próximo, não da ideologia das suas personagens (que geralmente é pouca), mas dos seus combates, dos seus impulsos e dos seus apetites do dia-a-dia. Hathaway prefere cultivar a distância. Ele nota e observa com uma secura voluntária as reacções das personagens e a sua maior ou menor capacidade para controlar as suas emoções.”, escreve Jacques Lourcelles no seu extraordinário Dictionnaire du Cinéma.
Bertrand Tavernier, no seu blogue, entre outros filmes do realizador, fala de Garden of Evil (O Jardim do Diabo, 1954) chamando-lhe mesmo “uma das maiores realizações de Henry Hathaway. Redescobrimos a obra deste cineasta que se trata muito levianamente, apesar da admiração que Jacques Becker tinha por ele. Os seus filmes noir são considerados clássicos, especialmente Niagara (1953) (belo guião de Charles Brackett) em que o seu olhar, a sua montagem é de uma acuidade seca frequentemente digna de Lang (a morte de Marilyn Monroe), o excelente Call Northside 777 (A Verdade Triunfou, 1948) (a direcção de fotografia de Joe MacDonald devia ser estudada na FEMIS) em que o realismo de fachada (o do guião) é subtilmente resgatado por uma mise en scène que reintroduz o romanesco. Kiss of Death (O Denunciante, 1947) sustenta-se de forma notável. Widmark cuja interpretação é a primeira e que foi descoberto e imposto por Hathaway continua a ser surpreendente e James Agee, que não se enganou, destacou o seu estilo “duro, frio e claro”. Três adjectivos que descrevem perfeitamente o estilo do realizador. Não conseguimos esquecer o seu pequeno esgar sádico. Igualmente notável, The Dark Corner (Perdido na Sombra, 1946) de diálogos surpreendentes (“Como detesto a aurora. Parece sempre que deixaram a relva de lado toda a noite”) e que re-encena com moderação e elegância todos os grandes temas do film noir.
“Os seus westerns merecem alguma atenção, sobretudo From Hell to Texas (O Homem que Não Queria Matar, 1958) (…) e este Garden of Evil, muito bem escrito pelo talentoso Frank Fenton a quem devemos os diálogos muito inventivos de Station West (Homens de Aço, 1948) de Sidney Lanfield, os dois primeiros terços de His Kind of Woman (Redenção, 1951) (…) e o guião de dois filmes próximos do de Hathaway, River of No Return (Rio Sem Regresso, 1954) de Preminger e The Wild North (Loucura Branca, 1952) de Andrew Manton.” Tavernier não diz mais nada sobre Fenton, cuja carreira, vida e trabalho merecem mais umas palavras: além de ter escrito Escape From Fort Bravo (A Fuga de Forte Bravo, 1953), outro filme com que Garden of Evil tem algumas semelhanças e que é, com Bad Day at Black Rock (A Conspiração do Silêncio, 1955), o melhor trabalho de John Sturges (que depois dos anos 50 nunca mais foi o mesmo), e ter sido co-argumentista de Untamed (Enquanto Dura a Tormenta, 1955) de Henry King e de The Wings of Eagles (A Águia Voa ao Sol, 1957) de John Ford, escreveu ainda a meias com John Fante, nos anos 30, uma história que venderam juntos à Warner Brothers e que resultou num filme – Dinky (1935) – com Jackie Cooper e Mary Astor. Fenton aparece mesmo em Dreams from Bunker Hill, na personagem de Frank Edgington, companheiro de mikado, pinball, copos e aventuras de Arthuro Bandini como Fenton tinha sido de Fante. “He was my best friend”, disse o autor de Ask the Dust em entrevista a Ben Pleasants. Fenton escreveu ainda A Place in the Sun (sem relação alguma com o filme de George Stevens), romance elogiado por Carey McWilliams em Southern California: An Island on the Land, que o junta a The Day of the Locust, de Nathanael West, The Boosters, de Mark Lee Luther e Ask the Dust, de Fante, dizendo que são esses os quatro livros que melhor descrevem a Califórnia do Sul. Mas devolvamos a palavra a Tavernier.
“As ambições morais de Garden of Evil são evidentes. Sentem-se na construção da personagem feminina, distante dos arquétipos habituais, que é interpretada por Susan Hayward, nos sinais e símbolos que pontuam o trajecto das personagens. Só é surpreendido quem não sabe que Faulkner dedicou um dos seus romances, A Fable, ao seu amigo Henry Hathaway que lhe tinha sugerido o tema do livro. Quanto ao seu sentido de espaço, esse é impressionante. Sem se exibir ou procurar efeitos. Poucos movimentos de câmara mas uma montagem lancinante que transmite uma sensação de opressão a exteriores muito bem escolhidos: a capela, a mina abandonada, a árvore onde cai Cameron Mitchell. Como sempre, os momentos de violência são de uma brutalidade inesperada, apoiada pela magnífica música de Bernard Herrman.” Sendo raro ver filmes tão bem filmados sem que grande alarido seja feito disso (“no fuss, no muss”), em que cada corte e cada movimento está ao serviço exclusivo da acção, servindo para a revelar à frente dos nossos olhos da forma mais pragmática possível (Hathaway é, afinal, aprendiz de pioneiros), bastando tomar como exemplo disso mesmo a sequência dos saltos a cavalo no trilho de montanha ou a extraordinária cena nocturna em que Gary Cooper e Susan Hayward se olham furtivamente e acabam a fitar o horizonte, uma em busca de consolação, o outro com “after all any man says, it’s what he does that counts” como resposta; mesmo apesar de tudo isso, o que mais impressiona é a violência e a brutalidade, a nuvem negra que assola toda esta gente como uma broca na consciência, gente que ouviu Rita Moreno cantar o que cantou e mesmo assim se fez a caminho com Susan Hayward à cabeça, que não disse grande coisa do que a motivava e enfeitiçou todos quantos lhe puseram a vista em cima. Quem se esqueceu que foi ela a Betsabé das perdições do rei David de Israel em David and Bathsheba (David e Betsabé, 1951) de Henry King? Mas também quem diz que é ela a única que tem as suas razões?
Ouvem a bela Rita Moreno, mulher sem nome, a avisá-los do que os espera, mas como é com canções, não lhe prestam grande atenção. A morte sempre entoou belas melodias.
Henry Hathaway reuniu para Garden of Evil imensa gente com quem já tinha trabalhado: Charles Brackett, o produtor, parceiro das escritas de Billy Wilder nos anos 30 e 40, vinha de Niagara, Milton R. Krasner, o director de fotografia, de Rawhide (O Correio do Inferno, 1951), de onde também veio Hugh Marlowe, que em Garden interpreta John Fuller. Bernard Herrman já tinha composto a música de White Witch Doctor (A Feiticeira Branca, 1953), interpretado por Susan Hayward, que também entrava em Rawhide. James B. Clark, antes de editar este filme, editou Ten Gentlemen from West Point (Dez Heróis de West Point, 1942), You’re in the Navy Now (Marinheiros de Água Doce, 1951), com Gary Cooper, The Desert Fox: The Story of Rommel (Rommel, a Raposa do Deserto, 1951), Diplomatic Courier (Correio Diplomático, 1952) e White Witch Doctor. Como escreveu Tavernier, Widmark foi descoberto por Hathaway e depois de Kiss of Death, entrou em Down to the Sea in Ships (Capitães do Mar, 1949) e no segmento de Hathaway para O. Henry’s Full House (Páginas da Vida, 1952). Gary Cooper, além de protagonizar Now and Forever (Sou Tua para Sempre, 1934), The Lives of a Bengal Lancer (Lanceiros da Índia, 1935), Peter Ibbetson (Sonho Eterno, 1935), Souls at Sea (Almas em Perigo, 1937), The Real Glory (A Verdadeira Glória, 1939) e You’re in the Navy Now, trabalhou com Hathaway quando este era homem de adereços e assistente de realizador em filmes de Victor Fleming, John Cromwell e Edwin Carewe. Conheciam-se há imenso tempo por alturas de Garden of Evil, o último filme em que trabalharam juntos, e por muita coisa hão-de ter passado. Em Henry Hathaway, livro-entrevista ao realizador, Hathaway perguntou a Polly Platt, “Contei-lhe a história sobre o homem que veio para me entrevistar sobre Cooper e a sua representação? Ele estava convencido que Cooper não sabia mesmo o que estava a fazer no ecrã; que não era um actor de pensamento e estava sempre a dormir, e de facto, enquanto estamos a fazer a entrevista, Cooper está para ali sentado na cadeira, a dormir. Está a fazer uma sesta, e o fotógrafo diz, “Não me vai dizer que aquele homem sabe o que está a fazer.” Eu disse, “Eu sei que ele sabe o que está a fazer e que não pode fazer uma cena sem que saiba o que está a fazer porque é preciso dar-lhe uma pequena pista sobre o que está a fazer. Seja só a mais leve, uma pequena pista.” Ele disse, “Não acredito em si.” Portanto eu fui lá e peguei no operador de câmara e preparámos a cena. Foi em The Real Glory. Rudy Maté, o operador de câmara, pôs a sombra de uma palmeira na parede e a câmara pronta, e eu fui lá e abanei Cooper e acordei-o. Eu disse, “Gary, tenho uma luz bonita e quero um grande plano teu; podes-te pôr ali rápido, se fazes o favor. A luz está a correr como o diabo e estou quase a perdê-la. Põe-te só ali e tudo o que tens que fazer é virar-te e olhar. Portanto vá, põe-te ali. Disse ao operador, “OK, filma,” e Cooper disse, “Para quem é que estou a olhar?” Eu disse, “Por amor de Deus, está aí um tipo qualquer e eu estou a perder a luz, só tens que te virar e olhar.” E mesmo antes de eu dizer “Câmara,” ele diz, “Bom, gosto dele?” (RISOS) E eu disse, “Não-” mas depois parti-me a rir e disse ao tipo, “Ele não consegue ir para ali. Ele tem que pensar durante a cena. O homem nem se consegue virar e tentar fazer isso sem saber o que diabo está a fazer. Ou pelo menos para quem está a olhar.”
Garden será então o culminar de muita coisa, duma forma em constante depuração e possível em parte pelo sistema de estúdios, que permitia não estar parado e aprender o ofício; dessas várias colaborações que puderam ser aqui retomadas e re-trabalhadas; e agora não o culminar, mas um dos pontos altos duma linhagem de filmes de aventuras em exteriores onde a convivência alargada permite que se estabeleça uma relação hierárquica entre as personagens, com avanços e recuos, hesitações e impulsos, entre muito suor e lágrimas, e em que toda a gente, mais tarde ou mais cedo, duma maneira ou doutra, acaba por mostrar quem é mesmo e de que material é feito, coisa que a civilização até esse momento lhes permitiu esconder. De Four Frightened People (1934) de Cecil B. DeMille a Deliverance (Fim-de-Semana Alucinante, 1972) de John Boorman, passando por Appointment in Honduras (Encontro nas Honduras, 1953) de Jacques Tourneur, Jivaro (1954) de Edward Ludwig, Orgullo (1955) de Manuel Mur Oti, The River’s Edge (Matar para Viver, 1957) de Allan Dwan e Faccia a Faccia (Cara a Cara, 1967) de Sergio Sollima, a lista é bem grande e cheia de pequenas e grandes maravilhas.
Hooker (Cooper), Fiske (Widmark) e Luke Daly (Cameron Mitchell) chegam a Puerto Miguel, uma pequena aldeia no México. Não se conhecem, vão-se conhecendo. Encalhados naquele fim de mundo hão-de ter muitas oportunidades para o fazer. Ouvem a bela Rita Moreno, mulher sem nome, a avisá-los do que os espera, mas como é com canções, não lhe prestam grande atenção. A morte sempre entoou belas melodias. Entra de rompante Leah Fuller (Susan Hayward) com promessas de ouro, “before this is over, you’ll be just like that horse, eatin’ right out of her hand”, diz mais tarde Fiske a Hooker, quando a vêem os dois a dar açúcar ao cavalo, durante a viagem. Hooker responde-lhe, “Maybe it isn’t the woman. Maybe it’s the sugar.” Por voltas insondáveis e misteriosas, dessas eternas que dá a vida, quem foi pela mulher acabou a querer o ouro e quem quis primeiro o ouro acabou a sonhar com a mulher, tal como se inverteu tudo o resto e ficámos a perceber muito menos do que quando começámos. Se calhar não fala de ouro nem de índios e nem mesmo de mulheres e homens, este filme, mas antes de qualquer coisa enterrada dentro de todos eles e que já só a muito custo se consegue desenterrar. Mas o quê? A ambiguidade deste filme é dolorosa, a violência é essa, talvez venha das estranhíssimas paisagens mexicanas que a câmara de Hathaway percorre, mas parece tudo muito próximo dos petardos desesperados de Céline ou de David Goodis. O que conta é que um homem faz, sim, mas e fazê-lo? “You’re gonna be all right… you just made a fool out of yourself. Don’t think it hasn’t happened to anybody else. All of us…” Vezes demais, talvez. Como quando o marido de Leah a insulta e esta insulta Fiske logo a seguir com o “It’s easy, you’re nothing to me” que lhe sai disparado e sem aviso. Tantas vezes o personagem de Widmark se deita abaixo e tantas vezes parece não acreditar em nada, que engana mesmo o Hooker que tanto sabia. Ou então algo dentro dele dormia e quando foi preciso, despertou, e o filme é mais sobre Widmark que sobre Cooper e Hayward. Fisk morreu e soube porquê.
E se foi Frank Fenton quem escreveu A Place in the Sun, fazem redobrado sentido as últimas palavras de Fisk quando aponta para o sol na belíssima e tocante cena final, “There it goes, Hooker. Everyday it goes… and somebody always goes with it. Today it’s me.” Como faz também sentido o encontro das duas silhuetas a cavalo ao pôr-do-sol.
“Go home, Hooker, go home…”