A Internet, na sua carinhosa doçura desinteressada, reserva consigo a memória dos que se diz, faz, escreve e pensa. É um manancial infinito de memórias, um arquivo sem disciplina e sem preferências que trata todos por igual. É a ferramenta que nos coloca os eventos em perspectiva, que coloca os indivíduos em profundidade e que se constrói sobre uma linha de tempo maleável que ora contrai, ora relaxa. Assim encontramos em momentos diferentes opiniões diferentes, acções diferentes, essencialmente pessoas diferentes em corpos que oscilam também ao sabor do tempo. Vicente Alves do Ó, aquando da rodagem da sua primeira longa metragem – Quinze Pontos na Alma (2011) -, no início de 2009, afirmava no programa Fotograma de Luísa Sequeira: “Estou muito cansado de ver histórias de pobrezinhos e apetece-me ver histórias sobre gente mais sofisticada” ao que acrescentava “Não [me interessa] a Lisboa típica, nem a Lisboa suburbana, mas a Lisboa elegante”, terminando com um comentário sobre a necessidade de encontrar um meio termo na bipolarização do cinema português entre o cinema de autor e o cinema comercial. Ao terceiro filme o homem é outro. O Amor é Lindo … Porque Sim! (2016) é popularucho e telenovelesco, quem diria… No entanto, verdade seja dita, se o homem mudou o seu cinema mantém-se insipidamente televisivo.
No que respeita a Quinze Pontos na Alma (2011), o melhor que se pode dizer é que se trata de um anúncio televisivo bem feito com inspirações em Hitchcock e as suas louras platinadas. Sobre Florbela (2012), que o tele-filme de época nunca pareceu tão viscontiano. Já no que respeita a O Amor é Lindo nem Visconti nem Hitchcock, Alves do Ó parece ter embarcado (talvez por triste coincidência) na moda dos remakes dos “clássicos” portugueses e feito uma actualização d’A Severa (1931) de Leitão de Barros, sob influência das comédias recentes de Leonel Vieira e António-Pedro Vasconcelos.
Sente-se a cada tornear da trama uma forma de aproveitamento televisivo para conquistar o máximo de público.
Sim, aqui temos de novo uma menina de uma família com dificuldades económicas (desemprego, check!), em que o pai está ausente por se ter enamorado por uma brasileira (vão de escada, check!) e a pobre coitada, depois de perder o seu emprego a vender cachorros numa banca da Avenida de Roma (geração à rasca, check!), vai trabalhar como lava-pratos numa restaurante tradicional-o-revivalista gourmet na LX Factory (modinha, check!). Lá começa a cantar o Fado e torna-se num sucesso musical com contrato e disco na hora – não é por acaso que a menina se chama Amélia – (faduncho, check!) o que atrai uma dupla de pretendentes, um rapaz dos touros (marialvismo, check!) e um futebolista famoso (futebol, check!) e com ele as revistas cor-de-rosa e os paparazzi (sensacionalismo, check!), tudo isto por obra e graça do santo Antoninho e das leituras da cartas da mamã Gigi (Fátima, check!). Não descurar as constantes piadinhas à “alta” cultura – as performances de pijama e gola de Camões e as leituras de poesia (quem desdenha quer comprar, já dizia a minha avózinha) -, os graffiti românticos que perseguem a protagonista e parecem encher as ruas de Lisboa, a réplica em carne e osso da patroa d’A Criada Malcriada (ai o Gin!) e um final feliz colado com o cuspo da preguiça.
Ou seja, aquilo que se podia referir nos projectos anteriores do realizador-argumentista como uma sinceridade na forma como abordava os géneros e os universos fílmicos que pretendia mimetizar, agora já nem isso se pode. Sente-se a cada tornear da trama uma forma de aproveitamento televisivo para conquistar o máximo de público: além do já enunciado o populismo, sente-se em coisas tão simples como nunca identificar o bairro onde vive a família da protagonista ou haver um jogador de futebol de um clube sempre por nomear. Certo que grande parte do elenco é composto por caras novas que nem as novelas nem o cinema se têm visto – são alunos de um curso de actores que o próprio Alves do Ó ministra -, mas também é certo que os secundários não deixam de marcar uma presença essencial. Aliás, Maria Rueff é o único nome com caixa alta no cartaz.
Mas se tudo isso incomoda, há outro aspecto que incomoda mais – algo que se vem tornando cada vez mais evidente na cinematografia de Alves do Ó – a forma como este representa as mulheres que sempre protagonizam os seus filmes. Depois da boneca de louça platinada de Quinze a replicar a misoginia hitchcockiana e do arquétipo televisivo da artista infeliz de Florbela, chega-nos agora esta Severa contemporânea que mimetiza na perfeição a imagem da mulher que a OMEN (Obra das Mães para a Educação Nacional) e a MPF (Mocidade Portuguesa Feminina) fizeram por fixar durante o Estado Novo também no cinema. A figura da camponesa, exemplo de fidelidade, honestidade e trabalho árduo, que conhece os males da grande cidade, encontra-se neste filme com a figura da artista (quase sempre fadistas) que, embora se mostre independente e senhora de si, converte-se aos bons costumes pelo matrimónio: o desenlace habitual das comédias à portuguesa dos ditos anos de ouro. Em O Amor é Lindo… Porque Sim tudo isso se re-encontra com roupagem moderna. Não é pois por acaso que a menina abandona o sucesso artístico e económico por uma esperança de amor ténue.