Foi através da página de Facebook de James Benning que soube da notícia: Peter Hutton estava muito doente, às portas da morte. Depois de consumado o fatídico desenlace, Benning deixou uma mensagem de luto, que diz muito da importância que Hutton tinha para a sua arte e para a sua vida: “(…) today it hurts so much to realize i will not be seeing my brother, my twin, my good, good friend ever again… i want more”. Nathaniel Dorsky também deixou num blogue a sua homenagem a este cineasta “navegador”: “The world is suddenly much smaller without him”.
No New York Times, J. Hoberman descreve-o como um cineasta com uma austeramente romântica visão do mundo. O mundo, todo ele, era o principal destino do cinema invariavelmente mudo – e muitas vezes a preto-e-branco – de Peter Hutton. Este “cineasta-marinheiro”, de facto “do mundo”, partiu numa viagem sem retorno, deixando atrás de si algumas das imagens mais assombrosas que o cinema nos deu. Detalhei a minha relação com o seu cinema num artigo que publiquei na revista La Furia Umana, e que intitulei «Nova Iorque, Nova Iorque: O Fantasma da Fotografia em Peter Hutton». É esse artigo que reproduzo – e actualizo – parcialmente abaixo – enviando, desde já, os meus agradecimentos a Toni D’Angela, director da revista. Serve ele para aqui deixar a minha pequena homenagem a este realizador de quem queríamos mais, mas que nos deu tanto.
Peter Hutton é um cineasta nascido em Detroit que viveu parte da sua juventude no alto-mar, acompanhando as actividades comerciais do seu pai, pelo que regressou aos Estados Unidos já adulto. Dessa experiência – uma experiência do “longínquo”, entenda-se – resultaram duas coisas: primeiro, um interesse em Hutton pelo desconhecido e, segundo, um interesse pela redescoberta das formas que conhecia de cor (by heart). Essas formas podem ser a água, um barco, uma figura humana, uma estátua “icónica” ou um lugar de reconhecimento universal como… exacto: Nova Iorque.
Entre Images of Asian Music (A Diary from Life 1973-1974) (1974) e a sua trilogia de Nova Iorque (1979, 1981 e 1990) terá acontecido uma mudança crucial: o abandono do género – muito em voga no undergound norte-americano – do cine-diário para uma menos evidente forma de abordagem pessoal da paisagem. P. Adams Sitney nota isso num dos poucos artigos de fundo escritos sobre o cineasta norte-americano, “Le domaine de l’immanence: les films de Peter Hutton”[1], sublinhando aliás que essa passagem, que coincide com a primeira parte da trilogia, representa a conquista da maturidade do seu cinema. Sem se distanciar muito daquilo que experimentara, por exemplo, em Images of Asian Music, Hutton como que se “retira” totalmente dos seus filmes, sem que tenha atraiçoado – bem pelo contrário – uma visão muito específica – e, nesse aspecto, muito pessoal – sobre as configurações das paisagens que atravessaram a sua vida.
Se nesse filme passado no alto-mar, para os lados da Malásia, o principal objecto de (de)formação era a música na completa ausência de som, em New York Portrait Part I (1979) somos mais imediatamente assaltados pela força pictórica, ou melhor, fotográfica, ou melhor, escultórica, ou melhor, etc. das imagens que (só pelo título) reconhecemos pertencer a Nova Iorque. O gesto é semelhante: se em Images of Asian Music o título funciona como primeira proposta programática para a experiência do filme, aqui temos a ideia de retrato “tirado” à cidade mais representada, nomeadamente mais fotografada, do mundo. A tentação será fazermos todo o tipo de analogias com as fotos de Atget, Stieglitz, Steichen, Brassaï, Umbo ou Weegee: planos nocturnos interrompidos por contornos de edifícios e silhuetas de transeuntes, corpos em movimento ou prostrados no chão mostrados de cima – o olhar de Deus desarma a perspectiva humana – , reflexos “acidentais” em poças de água na estrada de alcatrão, a vida urbana filtrada pelo nevoeiro ou pela falsa transparência da janela de um apartamento que não sabemos de quem é, céus como que desenhados a carvão… tudo se dá a ver sobre a escuridão profunda, um preto-muito-preto e um branco-muito-cinza que nos “pintam” formas mais ou menos identificáveis. “Gosto da forma como o preto-e-branco abstractiza a realidade”, disse Peter Hutton em 2010 na apresentação de um dos poucos filmes a cores – ainda que não integralmente a cores – na sua carreira: At Sea (2007)[2].
Na primeira parte, produz-se a ideia que Jon Jost escreveu num artigo intitulado “Image Conscious”: “Qualquer pessoa familiarizada com Nova Iorque pode imediatamente sentir a sua presença, mesmo que muitas das imagens se aproximem perigosamente do abstracto”[3]. Contudo, é só na Part II (1981) que Hutton levanta um pouco “o véu” sobre a cidade, que se anuncia no título, mas que parece não estar lá, no filme: apreendemos melhor a agitação das ruas, reconhecemos os edifícios altos e detectamos – era inevitável – os símbolos que a Part I deste retrato tanto parecia evitar: Coney Island, a Estátua da Liberdade, o rio Hudson. Ao segundo filme, o espectador já estará convencido: isto é mesmo Nova Iorque. Mas podia não ser pela mesma razão que fez Images of Asian Music não ter som… Uma mudez fotográfica (enigmática) de que Hutton não abdica desde então. Portanto, deixo a sugestão: ponha o volume no máximo e ouça o silêncio do cinema de Hutton, isto é, ouça a música desse silêncio! Ouvi-la onde? Nas imagens, claro!
Com uma maior presença humana nesta segunda parte, Hutton começa a produzir um jogo constante com a escala; logo, com uma certa redução do homem à sua posição relativa no espaço. Na realidade, parece que a perspectiva predominante (ainda) é a dos edifícios, ao ponto de as pessoas capturadas na imagem se con-fundirem com eles. Este “devir pedra” das figuras naturais (como o Homem, a água e o céu) será, como veremos na Part III (1990), uma das mais brilhantes narrativas escondidas de toda a trilogia. A toda ela está obviamente associado o “fantasma da fotografia”, seguindo um pouco aquilo que David Campany diz ser um dos seus primeiros traços ontológicos, a saber: a sua capacidade para “animar os mortos e ossificar os vivos”[4]. O famoso texto de André Bazin, sobre «A Ontologia da Imagem Fotográfica», ressoa aqui, nomeadamente nas suas analogias entre a máscara fúnebre ou o processo de mumificação dos corpos e o gesto de fixar o instante pela objectiva. Da mesma forma, o que se passa com Hutton – que deve ser dos últimos cineastas a pensar o cinema “fotograma a fotograma” (e, para tal, o silêncio não é um pormenor) – é que ele anima o morto (por exemplo, as estátuas) e ossifica o vivo (por exemplo, as pessoas que nas ruas, provavelmente ouvindo instruções para tal, detêm os seus movimentos em frente à câmara). Nesse processo de ossificação ou congelamento do movimento há como que a transformação da cidade de Nova Iorque numa necrópole animada pela memória do cineasta, que, desse modo, se inscreve intimamente no próprio espaço.
Interrogado sobre a origem do seu cinema, Hutton recorda as viagens que fez pass(e)ando os olhos por cada uma das páginas do álbum fotográfico do seu pai: “Eu gostava de me sentar e olhar para esse álbum durante horas e mais horas; viajar para a Índia, para a China e todos esses lugares exóticos. Era uma aventura deveras interessante e depois quando comecei a fazer filmes apercebi-me de que, em certa maneira, o que estava a recriar era esse álbum de fotos”[5]. A analogia entre fotografia e cinema tem como elo uma experiência pessoal, um gesto rememorativo que se petrifica no ou que petrifica o espírito: “Assim, [o meu cinema] é muito como olhar para um livro, em certa maneira. Eu apresento uma imagem, que é habitualmente uma imagem muito estática, e olhamos para ela à medida que ela ganha vida de uma maneira muito pequena. Depois vem uma imagem de preto. E isso é como mudar de página. Depois temos outra imagem. (…) Assim, de certa maneira o álbum fotográfico é o tipo perfeito de analogia para aquilo que faço”[6].
A relação com a pedra, a matéria e a memória será um dos pontos de contacto possíveis entre o cinema de Peter Hutton e o de James Benning – este último, aliás, não tem pejo em reconhecer o valor desta amizade não só efectiva como temática e estética[7]. Apesar dela, Hutton não é tanto um cineasta da duração como é Benning, mas mais da “dura acção” da memória sobre o espaço. Benning, num filme como One Way Boogie Woogie/27 Years Later (2005), entre outros, também aprofunda a questão do tempo e sua acção corrosiva, mas Hutton – talvez menos político e mais “poético” – opera a partir da interioridade da memória, isto é, não confronta lugares no tempo, não questiona as suas transformações, ou talvez o faça mas sem sair da imagem mental/onírica do espaço… Mas que espaço é este que se (re)cria e se (re)articula nos seus planos fotogramaticais? Um espaço interior com poucas ou nenhumas referências ao exterior tipificado pela cultura, como se pela via do sonho e da memória se pudesse aceder ao espaço expurgado dos clichés que teimam em reduzi-lo a meia dúzia de imagens-postais…. Enfim, a reflexividade crítica habita o cinema de Hutton, mas não na literalidade máxima de um James Benning. Falarmos do cinema de Benning, dada a sua natureza estrutural[8], é falarmos da linguagem e do medium, ao passo que percorrermos o cinema de Hutton obriga-nos a (re)pisar as suas pegadas.
Se o cinema de Benning é o trilho, isto é, a passagem do tempo e a intromissão do medium na paisagem, o cinema de Hutton é a pegada no chão de cimento, isto é, impressão indexical de um movimento ido, só seu. Benning é o cinema (duração), Hutton é o fotográfico (“dura acção”). A distinção foi-se tornando, contudo, cada vez menos evidente. O derradeiro sopro de Peter Hutton, Three Landscapes (2013), é uma assunção da irmandade temática e formal com James Benning – ainda que surpreenda nele um rigor na captação das formas que, de novo, me remete para a fotografia, desta feita, do casal alemão Becher. De qualquer modo, na relação com Benning, são sempre mais as coisas que os juntam que aquelas que os separam.
A “dura acção” do fotográfico talvez seja mais detectável na Part III do retrato de Nova Iorque ou no retrato que fez da cidade de Budapeste, Budapest Portrait (Memories of a City) (1986), dois filmes que nos lembram – nas suas insistentes imagens de pessoas imóveis, “ossificadas”, e de estátuas – a sua paixão inicial pela escultura, quando se formava no San Francisco Art Institute. Noutro filme, Boston Fire (1979), Hutton dá-nos uma espécie de Ralph Steiner (H2O) em reverso, despertando o lado “matérico” – o “traço” ou a “não fluidez” – da água carbonosa que, num arco, liga os vultos dos bombeiros ao fumo que agita os céus… De facto, nem tudo é pedra ou “devém pedra” em Hutton, nomeadamente na sua trilogia de Nova Iorque e no hipnótico, muito stieglitziano, In Titan’s Goblet (1991): o lado gasoso, nevoento, não palpável, o “véu” sobre as formas que se fixam na película são os elementos fundamentais para emprestar a esta “visão” da cidade uma atmosfera onírica e “rememorativa” únicas – uma espécie de pátina produzida não pelo tempo, mas pela memória. Com efeito, mais em Hutton que em Benning, a paisagem que é o filme remete para uma experiência pessoal ou “de vida” (Diary From Life, Memories, Portraits são palavras nos títulos dos seus filmes que apontam para essa “escrita do eu”), algo que desmantela, face a um cinema fundamentalmente de paisagens, a ideia de que o cinema para ser ou vir “do íntimo” precisa de se basear em estratégicas de afirmação egotista do realizador.
Nos filmes de Hutton, a atmosfera nas imagens comunica esse gesto rememorativo, através de uma espécie de abstracção ou volitização da matéria que compõe a paisagem. Com a rememoração (fotogramatical) vem, como já vimos, a ideia de viagem, guiada por um olhar que simultaneamente familiariza e desfamiliariza o visto. A Nova Iorque de Hutton é irreconhecível, quase estrangeira aos nossos olhos, tal como as imagens de destinos distantes, do alto-mar por exemplo (de Images of Asian Music até At Sea), perdem muitas vezes, pela sua câmara, toda a sua carga cultural e exótica. “Estou sempre à procura de pretextos para ir para o mar”. Hutton descreve assim aquela que é a sua primeira casa: não um sítio fixo, mas a experiência de uma distância, uma lonjura que o mar lhe proporciona. A cidade de Nova Iorque, ou melhor, “a sua” cidade de Nova Iorque é, assim, o resultado de um olhar cuja casa primordial é sempre o longínquo que só a vaga marítima lhe pode trazer. Há um displacement do visto, que tende a desfocar ou distorcer o perto, em virtude de uma invocação/evocação do que está noutro lugar. Estamos aqui no domínio do vestígio, ou seja, no domínio da fotografia.
Para Walter Benjamin, o vestígio distingue-se da aura: “o vestígio é a aparição de uma proximidade, por muito removida que possa estar a coisa que a deixou para traz. A aura é a aparição de uma distância, por muito próxima que esteja a coisa que a chama para diante. No vestígio, ganhamos posse da coisa; na aura, ela ganha posse de nós”[9]. Hutton captura a memória de um lugar, deixando-o vaporizar-se pelas suas secretas vivências; preencher-se pelas suas pegadas mnemónicas, até ao ponto em que a “real” cidade de Nova Iorque passa a ser o set de uma ficção expressionista onde não há espaços, mas apenas evocação/invocação da experiência desses espaços, ou melhor, onde os espaços são as imagens dessa evocação/invocação, chamando, deste modo, à superfície dos planos fílmicos uma espécie de “inconsciente do lugar”. Como escreve Leger Grindon, “A cidade torna-se numa cidade fantasma que o realizador torna veículo para o seu sentimento pessoal (personal mood)”[10].
A morte não apaga as imagens fantasmáticas do cinema de Hutton, nem impede – bem pelo contrário – que as habitemos, ou melhor, que naveguemos nelas sem cessar – viagens que terminam quase sempre no lugar brumoso da memória. Com esta ideia, chegamos ao derradeiro plano da obra de Hutton, precipitada para o seu fim demasiado cedo – queríamos mais, de facto! É um plano do deserto, com cor – Hutton acaba a dominá-la por inteiro em Three Landscapes – e representa uma paisagem reduzida a elementos mínimos – pedras que se parecem com ossos e dromedários cujos perfis se diluem num horizonte vaporizado pelo calor intenso. É uma “vida seca”, uma imagem sepulcral que não permite raccord, que seca a possibilidade de uma “imagem seguinte”. Mas talvez seja abusivo encontrar nela uma “consciência da morte” para lá do próprio filme que dali não passa mais. Infelizmente, também o cinema de Hutton ficou ali, naquele deserto hostil. Um adeus belo e terrível.
[1] P. Adams Sitney, “Le domaine de l’immanence : les films de Peter Hutton”, Trafic, 72, Dezembro 2009, pp. 127-136.
[2] Peter Hutton, Tashmoo Lecture Series, Hampshire College, 2010: https://www.youtube.com/watch?v=bMXY4uRuKH4.
[3] Jon Jost, “Image Conscious”, American Film, n.º 3, Dezembro 1985, p. 73.
[4] Palavras proferidas no colóquio internacional Photography and Cinema: 50 Years of Chris Marker’s La Jetée, exposição intitulada “La Jetée and Cinema on Paper”, in Faculdade de Ciências Sociais e Humanadas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), Lisboa 2012.
[5] Peter Hutton, in VII Edición del Festival Internacional de Documentales, Documenta Madrid, Maio 2010: https://www.youtube.com/watch?v=JO0WqmJApBI.
[6] Idem ibidem.
[7] Scott MacDonald, A Critical Cinema 5: interviews with independent filmmakers, University of California Press, Los Angeles 2006, p. 249.
[8] P. Adams Sitney, “Structural Film”, in P. Adams Sitney (ed.), Film Culture Reader, Cooper Square Press, Nova Iorque 2000, pp. 326-249.
[9] Walter Benjamin, The Arcades Project, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge / Londres 2002, p. 447.
[10] Leger Grindon, “The Films of Peter Hutton”, Millenium Film Journal, n.º 4-5, Verão-Outono 1979, p. 177.