Como filmar algo imaterial, que é apenas uma ideia? Como capturar algo que não é visível, que entretanto perdeu-se, ou que ainda não aconteceu? Como registar um conceito intangível ou incorpóreo, ou do que está em falta? Estas dúvidas e outras questões semelhantes surgiam recorrentemente ao longo dos filmes presentes na mais recente edição do Porto/Post/Doc, como uma linha central de pensamento que, persistente, ocupava o espaço aberto por cada filme. O festival continua assim a sua missão de redefinir o próprio conceito de documentário, apresentando variações temáticas e formais, rasgando novas hipóteses na fronteira entre a realidade e a ficção. No ano passado escrevi “se em edições anteriores o festival apresentou filmes que situando-se no campo do documentário, estavam dispostos a basearem-se em ficções, este ano alguns dos filmes seleccionados ultrapassam mesmo essa fronteira, para colocarem-se do lado do filme de ficção, apenas filmado como se fosse um documentário”; esta edição confirmou esse caminho, que começa a afirmar-se como o rumo do próprio festival.

Antes disso porém, o festival apresentou na sessão de abertura e fora de competição The Beguiled (2017), o mais recente filme de Sofia Coppola. Se o filme aparece deslocado num festival dedicado a documentários, desperta alguma curiosidade pelo rigor histórico na recriação de um período específico, mesmo que não seja sequer uma ficção filmada como um documentário. A primeira impressão é mesmo a fidelidade aos detalhes de um filme de época, a guerra civil americana, durante um cenário muito particular: um soldado ferido é resgatado por um grupo de mulheres que ocupa uma mansão isolada da guerra, sem qualquer outra presença masculina. Este grupo diverso de mulheres é encabeçado pela matriarca da casa, uma professora e cinco estudantes, num elenco de luxo que conta com Nicole Kidman, Kirsten Dunst e Elle Fanning, e que se vê perante o dilema moral de ajudar um debilitado soldado inimigo. Vê-se assim também perante a perturbação de um quotidiano até aí pacífico, na relação entre as mulheres e entre elas e uma presença masculina. É porém o que filme revela através de um estudo subtil, de inferência a partir de comportamentos, a par de um ponto de vista afastado, de observador imparcial, que o transforma numa obra complexa, como um thriller psicológico de lenta combustão. A construção de personagens num ambiente fechado e quase teatral, as mudanças de personalidade e reacções inesperadas, algum humor menos óbvio, mas sobretudo a importância dos pequenos gestos, situam esta obra na filmografia de Coppola como um regresso à sua melhor forma. Longe dos dramas melancólicos e existencialistas, há aqui uma urgência do presente, que ganha domínio em relação ao resto.
Fora de competição foi também possível assistir a An Inconvenient Sequel: Truth to Power (2017), uma actualização ao filme – desta vez a cargo de Bonni Cohen e Jon Shenk – que ajudou a iluminar a questão iminente das alterações climáticas e os esforços de Al Gore em informar a opinião pública. Dez anos depois, as preocupações continuam as mesmas, os sinais de alerta continuam a exasperar, e se desta vez, o tempo para reagir parece estar a esgotar-se, começam a surgir alguns sinais encorajadores, mesmo que frágeis. Tal como o primeiro filme, este continua a ser um documentário tradicional (de linguagem próxima da televisiva), mas cuja mensagem e discurso directo o transformam num instrumento essencial de educação, sobre o activismo e a persistência.

Com as mesmas preocupações ecológicas mas muito diferente, foi exibido fora de competição Voyage of Time: Life’s Journey (2016) de Terrence Malick, um projecto no qual o elusivo realizador texano trabalha há décadas, e que aproxima-se em parte de algumas sequências cósmicas que vimos em The Tree of Life (A Árvore da Vida, 2011). De âmbito ambicioso, não tivesse como missão contar a história do nosso planeta, é um documentário não linear sobre uma história linear, no sentido em que sabemos desde o início para onde caminha, algo que é sublinhado pelas intervenções da voz narradora. O filme começa com imagens de figuras humanas, imagens que surgem ao longo do filme para quebrar a linearidade e lembrar-nos do resultado final, no que é o conceito mais interessante do filme, como se esse final, essa intervenção humana, pairasse sempre sobre tudo o resto. É também um documentário pouco convencional, de livre associação de ideias, de contexto mínimo, onde as imagens dominam completamente o texto escasso e poético que pontua ocasionalmente a interpretação visual das várias etapas desta jornada: o início do universo, a formação do planeta, o aparecimento da vida na água, a passagem para terra, o surgimento e evolução do homem.
Se é por vezes monótono na sua execução, é um filme de outro tempo, que pede paciência ao espectador, próximo de Koyaanisqatsi (1982) de Godfrey Reggio. Porém, é intrinsecamente ligado à obra de Malick, pela beleza que este encontra na natureza, na submissão a uma escala que coloca a existência humana em perspectiva, na forma como o simples embate entre lava e água, a luta pela sobrevivência entre espécies subaquáticas ou a formação de um ecossistema, são utilizados para criar uma ideia de tempo. O filme começa assim a responder a algumas das questões que levantei no início do texto, onde imagens contemplativas, de fenómenos naturais ou comportamento humano ganham uma qualidade hipnótica, que embalam e cativam, quer pela sua beleza extraordinária, quer pela sua outrora banalidade transformada agora em algo sublime. Como uma forma de transe apaziguado ou de vazio reconfortante, deixa o espectador sozinho com os seus pensamentos, até ser conquistado por um ritmo diferente, onde o tempo é estendido: é um filme-meditação, de abstração de tudo o que é exterior.
Já na secção da competição oficial do festival, encontramos filmes com a mesma preocupação da ocupação do tempo, em tornar algo intangível ou abstracto em material. The First Shot (2017), primeiro filme da dupla Federico Francioni e Yan Cheng, é uma exploração visual de um sentimento de alienação de uma parte da população chinesa, nascida depois dos protestos de Tiananmen em 1989, o último movimento na China que conseguiu ter algum impacto político e que teve origem na geração mais nova. O filme acompanha três jovens no seu dia-a-dia permeado por uma ideia de ausência, de pouco contentamento com a sua situação mas também de incapacidade em saber o que fazer. Desligados do mundo e da cultura a que pertencem, estes jovens lutam por encontrar o seu lugar, por exprimir-se num ambiente onde não existem muitas formas de o fazer: um dos jovens passa dias seguidos sem sair de casa, a olhar pelas janelas do seu apartamento num prédio alto, a observar as pessoas que passam na rua, como se procurasse algo que lhe escapa; uma rapariga que passou um ano a estudar em Londres, regressa a casa para visitar a família, mas parece reagir com letargia perante o regresso às suas origens, com o torpor que encontra. O filme tenta gravar a passagem do tempo perante a enfermidade de uma geração à deriva, e que perante uma incapacidade de expressão emocional, perante uma ideia de impossibilidade de participar activamente no seu destino, é tomada por paralisia. Se se torna evidente que é um primeiro filme, e até que não existia uma ideia bem definida do fim ao longo do projecto, não deixa de oferecer uma reflexão incisiva.

É curioso encontrar o mesmo sentimento de imutabilidade perante o destino, e da ausência de algo que parece escapar, num filme sobre a América interior, como é o caso de Gray House (2017), de Matthew Booth e Austin Jack Lynch. À medida que ouvimos um tanque de água a encher-se, instala-se a melancolia e uma espécie de incapacidade de sair do sítio, um estado-efeito de hipnose paralisante. Sem qualquer diálogo durante grande parte do filme, através do uso de planos fixos ou de movimentos muito lentos, o filme investe na construção de um ambiente de desolação. Dividido em partes diferentes mas semelhantes, o filme mostra cinco cenários que são filmados de modo a parecer iguais através de várias vinhetas, como se tratasse de uma actualização dos quadros de Edward Hopper ao industrialismo moderno americano, que transforma a tal desolação em algo transcendental. Os escassos depoimentos que vão surgindo ao longo do filme, de pessoas que estão presas ao seu destino, contrastam com as imagens desprovidas de qualquer humanidade: os campos de petróleo da primeira parte, das máquinas a funcionarem sozinhas, os edifícios vazios, jogam com a prisão da segunda parte, dos corredores sem ninguém, filmada da mesma forma, em cores deslavadas, variações de castanhos e cinzentos; as cenas do quotidiano banal ganham mais uma vez uma dignidade esplendorosa, mesmo na sua vacuidade. Se este é um filme sobre a ocupação de espaço, sobre o que pode ser considerado um lar, é um filme para ser habitado, para encontrarmos o nosso espaço, num dos melhores filmes do festival.
Nas primeiras imagens de Meteolar (Meteoros, 2017) de Gürcan Keltek, a fotografia a preto e branco transforma as montanhas que vemos em algo fora deste mundo, como se tratasse quase de um cenário intangível, local de uma história de ficção científica, em particular pela forma como a câmara acompanha vultos encobertos pelas formações rochosas. Estamos no sudeste Turco, em pleno território do Curdistão, e em pouco tempo as perseguições a animais revelam postos militares e soldados, trocas de tiros e explosões. Pouco depois, chegados a uma cidade, as explosões que encontramos são primeiro de fogo de artifício e de celebrações da população, mas não demora muito a surgirem novos confrontos e novas trocas de tiros, sem grande distinção entre lados ou contexto, mas antes a guerra filmada como raramente a vimos, aqui de forma poética e sensorial. Uma voz feminina acompanha as imagens com um texto-lamento, com a câmara a filmar o corpo desta actriz em seu redor, enquanto os disparos lá fora continuam a surgir de direcções indistintas, numa cidade rodeada por montanhas. Como diz o próprio filme, a zona é como uma placa tectónica, feita de pessoas, animais e montanhas, de terrenos perdidos, ganhos e recuperados: as imagens dos confrontos quase parecem inventadas ou coreografadas tal é a sua escala e geografia. A forma como o filme quebra com esse sentimento etéreo, desligado da realidade mundana, com depoimentos recolhidos nas ruas sobre testemunhos dos danos da guerra, funciona como um travão: não podemos ignorar a tal realidade. Mas mais tarde, os gritos de desespero dão lugar a gritos de celebração e assombro quando a realidade volta a ser interrompida por uma queda de meteoritos, uma espécie de trégua celestial sobre o conflito, que aparecem como uma nova invenção, algo exógeno. É a vida como um carrossel, que vai alternando entre estados, sempre num círculo de altos e baixos.

Outros dois filmes em competição destacaram-se pela sua proximidade temática, pela forma particular como exploram o que pode ser definido como um documentário de ficção científica. Esse “mergulho” na ficção científica é muito mais profundo no filme de de Adirley Queirós, Era Uma Vez Brasília (2017), que se desenrola num cenário pós-apocalíptico e minimalista, de elevada carga política: “um documentário gravado no ano d0 P.G. (Pós Golpe)”. O filme dedica a maior parte do seu tempo à jornada de um viajante de outro planeta encarregue da missão de assassinar o presidente brasileiro, sequência durante a qual sobressai a inventividade low-budget de Queirós em criar um ambiente artesanal e futurista, onde o fumo que preenche a imagem é afinal de vários cigarros, em que a nave é apenas o interior de uma velha carrinha, em que o rádio transmite notícias e discursos a partir do Brasil. O outro segmento é dedicado a Ceilândia, um dos subúrbios-dormitórios de Brasília, aqui filmado como um deserto ocupado por resistentes. Na junção entre estas duas ideias, o filme mimetiza o desamparo e abandono sentido pela população destes espaços esvaziados. É o maior mérito do filme, e não é pouco, tratar uma situação real como se fosse apenas possível num cenário fictício, recontextualizar a existência como uma ficção distópica, isolando assim a estranheza dessa realidade, como um conto de fadas distorcido (“era uma vez”). Porém, apesar de uma tentadora capacidade de abstracção e de uma imaginação distintiva, não ultrapassa a ideia inicial de se tratar da exploração de um conceito, que vive mais da estilização formal do que do conteúdo e da ambiguidade do que é evocado.
Como filme-conceito, Qing Ting Zhi Yan (Dragonfly Eyes, 2017) de Xu Bing, é mais acutilante, pela iminência das perguntas que levanta. A partir do pressuposto que o criador do filme ganha acesso a um sem número de gravações e a câmaras de vigilância que observam o comportamento da população, é uma reflexão sobre os tempos modernos, em que tudo é registado, partilhado, imediatamente disponível, consumido e atirado para fora: em suma, efémero. O filme constrói uma narrativa através das imagens retiradas da esfera pública, e acrescenta outras filmadas como se tivessem sido capturadas, para sublinhar como é difícil manter relações pessoais neste contexto, a artificialidade de tudo e as ligações perdidas – são imagens verdadeiras, falsas ou isso não importa? Esta narrativa imaginada acaba por ser o menos interessante do filme, porque deixa de ser um filme de montagem ou de associação de ideias, já que procura assim (d)escrever o filme para o espectador, retirando espaço para a imaginação. O filme começa com um texto sobre como estas câmaras e este olhar contínuo e colectivo acaba por revelar novas verdades que o olho humano não consegue detectar, e é precisamente nos momentos de encadeamento delirante de imagens aleatórias, e em particular, de carácter violento (agressões na rua, acidentes de carro, desastres naturais e demolições), que o filme chega ao seu estado de meditação, de capitulação às imagens. Como diz alguém no filme: “se finges a realidade, então a realidade é falsa” – resta saber em que plano ficamos.
City of Ghosts (2017), pré-selecionado para o Óscar de Melhor Documentário, surge no contexto do festival como um documentário mais convencional, que passa ao lado das ideias até aqui descritas. É o segundo filme de Matthew Heineman presente no festival depois do excelente Cartel Land (2015), e se segue o método mais tradicional da mistura de entrevistas com material de arquivo, aposta na força do tema que aborda. O filme conta a história recente de Raqqa, uma cidade síria que começou por ser um dos palcos iniciais da contestação ao governo de Assad e que despoletou uma guerra civil, para ser mais tarde invadida por membros da ISIS, encurralando assim tragicamente os seus habitantes entre dois regimes hostis. Mais especificamente, o filme acompanha um grupo de locais, que perante o silenciamento do governo sírio sobre o que estava a acontecer, transformam-se em activistas e utilizam as redes sociais para expor o que ia acontecendo longe dos olhares do resto do mundo. O filme conta assim uma história de luta contra o esquecimento, contra um apagão da memória. Como mostra Heineman, é um esforço considerável e arriscado, cujas consequências são ameaças e perseguições que eventualmente forçam ao exílio os fundadores deste movimento. Mesmo assim, estes activistas não desistem e coordenam a partir do estrangeiro a divulgação dos crimes que continuam a ser cometidos em Raqqa, com dois resultados encorajadores: perceber que esta persistência tem resultados práticos, e que o mundo começa a prestar atenção. É o maior atributo do filme: um papel pedagógico que se cola às intenções do grupo, que ajuda a entender o que está em causa naquela região.

Uma das maiores descobertas reveladas pelo festival foi o cinema de Peter Mettler, pouco conhecido realizador canadiano que teve aqui direito a uma retrospectiva, com belos exemplos do documentário como filme-meditação, na tentativa de registar algo intangível, fugidio. Picture of Light (1994) é paradigmático desse estilo introvertido, de aventureiro do desconhecido, com um monólogo interior a ocupar-se das imagens de uma natureza poucas vezes domada, não muito longe dos documentários de Werner Herzog. Logo no início deste filme, Mettler confessa que “we were answering a question which we didn’t know yet what it was”, antes de partir para as temperaturas negativas de uma cidade perto do ártico canadiano, à procura de registar em película as luzes da aurora boreal. Nessa cidade que parece uma espécie de twilight zone no fim do mundo, nos habitantes que encontra, na experiência da espera das condições ideais para registar as tais luzes, Mettler descobre uma pergunta e uma resposta: “is film a surrogate for a real experience?” / “something doesn’t exist until it’s captured as an image”.
Este método de auto-descoberta, de pesquisa partilhada com o espectador ao longo do filme, está também presente em The End of Time (2012), no qual Mettler apresenta um estudo metafísico do efeito da passagem do tempo sobre o mundo, das diferentes formas de encarar essa passagem do tempo, e de como representar e até como (re)interpretar o próprio conceito de tempo. Mettler parte numa investigação-contemplação que contrasta diferentes perspectivas na definição do conceito temporal, que acompanha personagens como os cientistas que habitam os túneis infindáveis do laboratório CERN, um eremita que vive sozinho numa casa rodeada pelos avanços da lava, uma equipa de astrónomos à procura de pistas no passado ou uma família que aprendeu a olhar de modo diferente para o tempo. Estas sequências são intercaladas com imagens de reverência pela natureza, pelo que falta ainda descobrir. Estão todos à procura de resposta, todos à procura de algo que ainda não sabem exactamente o que é, num processo imitado pelo realizador, que leva o espectador consigo numa jornada recompensadora.
O grande prémio do Porto/Post/Doc 2017 foi atribuído a Meteolar (Meteoros, 2017) de Gürcan Keltek; a menção honrosa foi atribuída a Qing Ting Zhi Yan (Dragonfly Eyes, 2017) de Xu Bing e o prémio Realizador Emergente a Ziad Kalthoum por Taste of Cement (2017). O palmarés completo pode ser consultado neste link.