Carlos Natálio, Ricardo Gross e Carlos Alberto Carrilho fazem o seu balanço inicial sobre os primeiros dias do IndieLisboa, festival que continua até ao próximo dia 12 de Maio.
A Casa e os Cães (2019) de Madalena Fragoso e Margarida Meneses
A colocação desta longa com cabeça de média-metragem na secção Novíssimos permite pensar numa questão que valerá a pena reflectir. À partida, os filmes desta secção serão primeiras obras, em teoria, de jovens cineastas em busca de uma dada forma, de apuro de um certo olhar. Nesse sentido, A Casa e os Cães (2019), pela sua dimensão de experimentação – seja com a textura e a luminosidade das imagens, pelo split screen, pela moldagem da noção de plano, as diferentes câmaras, telemóveis e webcams, os registos no interior e no exterior, as notas escritas no ecrã, etc., etc. – acaba por funcionar dessa maneira. Como se o espaço da casa, que durante cinco anos aqueles jovens partilharam, e os seus três cães funcionassem como pólos gravitacionais de atracção para as suas imagens, como forma de dar direcção ao grande caudal dos registos que iam fazendo ao longo do tempo. Talvez uma leitura apressada possa ver no filme uma certa dimensão informe, um frankenstein de momentos sem grande coesão. Contudo, como se reflecte a dada altura, pode dar-se o caso de a vida ser apenas isso: uma soma de momentos, de formas de aceitação do caos, de produzir obra a partir dessa fugacidade.
Se assim é, se é de uma forma-informe que estamos a falar, que justiça haverá de a qualificar como um exercício próprio de um novíssimo? Percebem onde quero chegar? [Quanto mais não seja também porque esta obra de grupo, embora assinado pela Madalena Fragoso e a Margarida Meneses, seja, quanto a mim, superior a quase todas as longas da competição nacional que vi até agora]. Talvez que apenas formalmente estejamos perante esse afinar da pontaria da arma do realizador: a observação. Talvez que estejamos afinal a assistir a uma outra forma da condução da relação entre o cânone e o caos. E é preciso assumir isso: que as mudanças, os choros, os cansaços, a emoção, a galhofa, os passeios (com e sem cão), as conversas entre o filosófico e o brega sejam a obra. Obra de um certo existencialismo tardio, despido de matéria polida, retomando as obras diaristas de Jonas Mekas, Ross McElwee ou Jonathan Caouette. Um espaço e um tempo a várias mãos, num diário colectivo, que deu forma, registou, esses momentos de crescimento das suas vidas. Mas cujo crescimento não abdica de querer transformar o paradigma, de querer ver a Praça de Londres como uma Montanha Mágica, de arrastar para debaixo do tapete os grandes desenlaces e ficar com um brilho do sol numa árvore, um contraluz forever, um espaço mítico e único que, quem veio habitar depois a casa, nunca chegará a saber o que era.
Carlos Natálio
Jessica Forever (2018) de Caroline Poggi e Jonathan Vinel
Parceiros recentes de Bertrand Mandico e Yann Gonzalez na sessão conjunta de curtas-metragens Ultra rêve e no manifesto Flamme, lançado nas páginas dos históricos Cahiers du Cinéma, o IndieLisboa dedica à dupla Caroline Poggi e Jonathan Vinel uma retrospectiva integral da sua obra, incluindo a sua primeira longa-metragem, Jessica Forever. Como Yann Gonzalez confirmou numa entrevista recente ao À pala de Walsh, o que reúne este grupo de cineastas é uma partilha de interesses, “uma constelação, em que diferentes planetas flutuam no mesmo espaço, alimentando-o com luzes diferentes”. O lançamento de Jessica Forever completa a série de primeiras longas-metragens para todos os elementos do grupo, num momento em que os Cahiers du Cinéma escolheram Les garçons sauvages (2017) de Bertrand Mandico como o melhor filme do ano. Como se posiciona Jessica Forever perante as primeiras obras de Mandico e Gonzalez, ambas apontando para uma ideia de excesso, marcado pelo barroco, surrealismo e psicadelismo? Isolando todo o excesso até uma espécie de esqueleto, despojamento em que são introduzidos efeitos digitais subtis que perseguem a mesma ideia de onirismo.
Nos primeiros planos de Jessica Forever, um rapaz lança-se contra uma vitrina de uma pequena moradia. Por momentos, ficamos suspensos entre o enorme buraco na casa, como uma ferida grave incapaz de sarar. Comandados por Jessica, alguns jovens em fatos militares resgatam o rapaz, antes que chegue um conjunto de drones, força especial que tem a missão de os perseguir até à morte. Jessica é a salvadora destes jovens perdidos e solitários, órfãos perseguidos que nunca experimentaram a linguagem do amor, o que dinamitou os seus laços sociais e os transformou em monstros. Rainha, mãe, feiticeira, deusa, estrela ou mito, Jessica é uma figura que quase nunca está visivelmente presente, mas que serve de elemento aglutinador e estabilizador para o grupo de rapazes. Impecavelmente conservado mas destituído de presença humana, com os espaços desertos e sem outras personagens para além das pertencentes ao grupo, o cenário tem pinceladas de um ambiente pós-apocalipse, reminiscente de um videojogo ou de uma série televisiva de zombies. Exercícios de treino militar são intervalados por tarefas de manutenção e momentos de lazer. Como os membros da Legião Estrangeira Francesa estacionados na superfície árida de Djibouti, em Beau Travail (1999) de Claire Denis, os órfãos de Jessica Forever são esvaziados de qualquer funcionalidade, para além da sobrevivência, tornando-os num grupo de fantasmas. Como em Denis, resta filmar a coreografia dos corpos e da sua rotina, assombro que a tela grande da sala de cinema vem fomentar.
Carlos Alberto Carrilho
Flesh Memory (2018) de Jacky Goldberg
Em 1993, quando vimos Jennifer Jason Leigh no Short Cuts (Short Cuts – Os Americanos, 1993) de Robert Altman, com a criança ao colo, a ter uma conversa de teor sexual pelo telefone com um cliente, isso era quase novo e a nossa memória guardou o momento até hoje. Em Flesh Memory existe sexo pelo telefone e também com recurso a uma câmara web, o que não constitui motivo de espanto. O negócio do sexo virtual é uma extensão da vida de exposição nos média sociais da protagonista, Finley Blake, de 33 anos, acossada por um ex-companheiro que lhe quer retirar a custódia do filho de ambos.
Trata-se de um documentário e Jacky Goldberg é bastante respeitador no grau de exposição, quer física quer emocional, que dá de Finley que tem o corpo coberto com tatuagens cujo significado o filme não desvenda. Existe apenas um momento em que Finley se refere a um cancro de pele que obrigou a um procedimento cirúrgico em cima de um dos desenhos. Os momentos de maior emoção são situações domésticas banais, pausas no trabalho sexual e nos dramas familiares, que acentuam a vulnerabilidade de Finley, que é afinal comum a qualquer pessoa. O ser humano e as suas circunstâncias.
Ricardo Gross
Campo (2019) de Tiago Hespanha
As ironias são mui belas. O melhor filme que vi na competição nacional até agora começa, depois da névoa, das árvores dormindo, dos planos William Turner, com a célebre frase: “e no início era o caos”. Ironia pois Tiago Hespanha está muito longe da noção de caos, procurando através de um dispositivo rigoroso, de pontual voz off, pausada e reflexiva, discorrer sobre as várias noções da palavra campo, enquanto abre os espaços da base militar de Alcochete. Aliás, se prolongarmos a ironia, podia mesmo dizer – trazendo aqui o outro filme nacional de longa metragem que mais me chamou a atenção nesta primeira metade do festival, A Casa e os Cães (2019) de Madalena Fragoso e Margarida Meneses – que o que falta a cada um dos filmes, sobra ao outro. Isto é, que a Campo falta-lhe ser um nadinha menos “casa” (casa enquanto estrutura marcada e, por vezes, um tanto rígida) e que a Casa e os Cães precisava ser um pouco menos “campo” (campo enquanto espaço aberto, sem forma estanque). Dito isto, a obra de Tiago Hespanha cativa pela inteligência da sua abordagem.
Entre os muitos pontos interessantes pensei em Campo como a filmagem de um documentário sobre uma ficção – presente sobretudo nos reenactments dos exercícios militares – como se assistíssemos a um Starship Troopers (Soldados do Universo, 1997) sem inimigos visíveis, uma battle in the stars (é esse o nome da música que o rapaz, vizinho do campo militar, compõe ao piano) transformada em fogo de artifício de fim de ano, uma cartografia da galáxia ensaiada nas matas dos arredores de Lisboa, com reféns-stand in e com alvos de brincar. A esta “guerra estelar” não faltam mesmo a destruição de portas, a queda “mágica” de árvores (são os planos que elidem a queda ora que filmam a queda sem vermos o corte), o mapeamento de navezinhas naturais como os pássaros com os seus pios de contacto ou as abelhas que ameaçam mecanizar-se. As referências ao mito de Protágoras e ao “homem sem qualidades” (além do fogo), os planos intemporais e ancestrais da natureza ajudam a compor o argumento de que a acção militar (com os seus sistemas de autoridade, as suas regras “vazias”) faz parte de um ímpeto da natureza humana que vai transformando mitos e ficções (o Grande Inimigo como uma ficção) numa história oficial. No fundo, constituindo campos delimitados de batalha e conquista da terra. Basta pensar na leitura de Agamben sobre a noção de campo, e no modelo carcerário das cidades contemporâneas. Claro que em Portugal, um país periférico e de certa forma subjugado, uma investigação wisemaniana acerca dos espaços e rituais da “instituição militar” – como é, em alguns momentos, o filme de Tiago Hespanha – não deixa de ganhar um cunho muito irónico. São as tais ironias belas.
Carlos Natálio
Nice Girls Don’t Stay for Breakfast (2018) de Bruce Weber
O filme de Weber dá-nos um banho de masculinidade de onde se sai limpinho, por dentro e por fora. Abre com uma citação de Johnny Cash que disse que detestaria que fizessem um filme sobre ele mas que o iria ver duas vezes. Ficam dados o mote e o molde. A personalidade de Mitchum é de um carisma gigantesco, todo em subtracção e acutilância, que deixam em alerta permanente qualquer um ao redor do mítico actor. Weber não teve tarefa fácil, foi conquistando Mitchum como quem conquista a pessoa amada, cercou-o com presentes e mulheres bonitas, e tirou partido das sessões de gravação de um disco nunca editado.
Nice Girls Don’t Stay for Breakfast é a aproximação possível a alguém que está sempre em fuga (de si próprio). Weber faz dos obstáculos poesia jazz, vai improvisando, junta depoimentos de gente do cinema e de antigas companheiras de Mitchum, e ninguém diz mal dele, elas em particular, apesar de terem sido todas trocadas umas pelas outras. Porque o Bob é como o Bob foi: “a man’s man and a ladies man. Cool as they get.”
O filme tem hoje, dia 8 de Maio, pelas 19h00, na Cinemateca Portuguesa uma segunda exibição.
Ricardo Gross
Ama Romanta – Uma Utopia que Fazia Discos (2019) de Vasco Bação
No inicio da segunda metade da década de 1980, em Lisboa, João Peste reuniu um conjunto de músicos e bandas na compilação “Divergências”, que se tornaria na primeira edição da Ama Romanta – um álbum duplo que tinha a particularidade de ter uma entrevista a Paquete de Oliveira a abrir o lado B do primeiro disco. O sociólogo cita Pier Paolo Pasolini para reflectir sobre a ameaça das novas ditaduras culturais: “o fascismo das ditaduras culturais será aquele imposto pela opressão das populações, mantidas na ignorância ou na ausência de um novo saber, na falta de uma consciência critica”. Estas palavras tornar-se-iam numa espécie de manifesto para uma editora que explorava uma série de propostas estranhas a grande parte do contexto musical português da época. A editora Dansa do Som, ligada ao clube Rock Rendez-Vous e aos seus Concursos de Música Moderna, abrira o caminho e por lá passaram alguns protagonistas da história da Ama Romanta. Centrada na figura carismática de João Peste, a Ama Romanta alcançou um capital autoral inédito em Portugal, o que inspiraria o nascimento de outros projectos semelhantes noutras cidades do país.
Esta é a história que se propõe contar o documentário Ama Romanta – Uma Utopia que Fazia Discos (2019) de Vasco Bação. Ao longo de duas horas, enquadrados por registos da época, maioritariamente obtidos nos arquivos da RTP, por lá passam alguns investigadores e muitos dos músicos ligados aos projectos mais importantes da editora – Pop Dell’Arte, Mão Morta, Telectu, Sei Miguel, Mler Ife Dada, Nuno Canavarro, Anamar, Santa Maria, Gasolina em Teu Ventre!, João Peste & O Acidoxibordel ou Tózé Ferreira – que reflectem sobre o inegável pioneirismo de João Peste e a exuberante pluralidade estética da Ama Romanta. No entanto, a Ama Romanta também foi palco de urgentes polémicas de ordem estética que o documentário esquece ou simplesmente aflora sem desenvolver. Faltam as vozes criticas, as palavras das polémicas ou os palcos da discórdia, como os semanários Expresso (Ricardo Saló e João Lisboa) e Blitz (Rui Monteiro e Miguel Santos). Por outro lado, entre as poucas sequências de imagens que procuram criar um contexto, ao lado do Portugal dos três efes – Fátima, Futebol e Fado – é colocado o incêndio no Chiado, como agente regenerador que estabeleceria o cenário para o despontar de uma certa modernidade representada pela Ama Romanta. Porém, para além de outras facetas da editora, como o cuidado desenho gráfico, fica por traduzir de que modo fenómenos como a Música Moderna Portuguesa também eram produto de uma florescente cultura urbana, desenvolvida durante o dia em bairros de classes média e alta, como as Avenidas Novas, Alvalade ou Campo de Ourique, e ao cair da noite no Bairro Alto, onde novos clubes de dança, lojas de discos e estabelecimentos de estilistas estavam situados, próximos dos velhos bordéis e dos espectáculos de transformismo do Príncipe Real.
O filme é exibido dia 9 de Maio, às 19h00, na Sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge.
Carlos Alberto Carrilho
Filomena (2019) de Pedro Cabeleira
Ficaria com problemas na consciência senão começasse por descrever a abertura deste Filomena (2019). Sons e rangeres metálicos de cabos e barcos. Ecrã ainda negro e um fade in lento sobre um plano aberto do mar (que segundos depois saberemos ser rio). Depois um cross fade com outros dois planos: um travelling sobre uma silhueta que caminha reflectida, invertida, sobre os azulejos brilhantes de um chão que vai aos poucos tomando o lugar do rio; e o plano absorto do rosto de Sandra Hung, a Filomena. O plano seguinte, aberto, vai desfazer a ilusão da viagem longínqua que se nos estava a formar na imaginação (e não é esse um dos temas do filme?). Já com os sinais sonoros típicos, percebemos que Filomena parou para apertar o sapato e que está numa estação fluvial e que veio trabalhar, como todos os dias.
Depois da orgia de sons e cores de Verão Danado (2017) esta curta de Pedro Cabeleira é certamente mais clássica. Tendo por base a relação amorosa entre uma empregada de limpeza e o homem que se presume engenheiro, que lhe pede para partirem para longe (o Brasil), o jovem realizador procura reflectir, formal e tematicamente, sobre um conjunto de oposições. Entre o já referido fechado e a revelação do plano aberto (talvez isto já esteja, a seu modo, presente no filme anterior), mas também entre o longínquo e o distante e entre o alto e o baixo. O longínquo do oceano que separa o Brasil de Portugal, mas sobretudo do jet lag dos aviões da patroa por oposição com as viagens constantes de comboio da colega, e do rio que Filomena atravessa diariamente. No final, as majestáticas panorâmicas ascendentes e descendentes filmam a décalage, a escada social, ou também o plano do andar de cima onde está a patroa e as escadas a separar o espaço, cá em baixo, que as empregadas limpam. Contudo, a música lírica e efusiva que, em certos momentos acompanha Filomena, parece ser uma bonita proposta de superação dessas oposições.
Segunda exibição dia 10 de Maio pelas 21h30 no Cinema São Jorge.
Carlos Natálio
Teddy Pendergrass: If You Don’t Know Me (2019) de Olivia Lichtenstein
Existe uma gramática que pode ser mais ou menos bem aplicada a este tipo de documentários, que mesmo quando não têm na origem uma produtora televisiva é para a televisão que se encaminham, com uma arrumação de conteúdos que visa dar muita informação aos interessados. Teddy Pendergrass: If You Don’t Know Me é um objecto convencional feito de depoimentos, reconstituições e material de arquivo, que dá conta da extraordinária produção deste músico soul de Filadélfia, cujas origens tinham tudo para o empurrar para o lado errado da lei.
Pendergrass começou a fazer-se notar nos Harold Melvin & The Blue Notes e rapidamente se tornou muito maior que os restantes elementos. Os seus discos a solo vendiam mais de um milhão de cópias, os concertos ora se faziam para plateias mistas ora para um público exclusivamente feminino, e o fenómeno só conheceu uma brusca interrupção quando os travões do Rolls Royce de Pendergrass falharam, e do acidente resultou que o cantor ficasse numa cadeira de rodas o resto da vida. O Elvis negro voltou a cantar e a gravar mas passou a ser escutado por um público de olhos fechados.
Segunda exibição dia 11 de Maio pelas 18h45 no Cinema São Jorge.
Ricardo Gross
Poder Fantasma (2019) de Afonso Mota
Na entrevista a Afonso Mota, que publicámos por ocasião da sua longa-metragem Aos Nossos Amigos (2017), o jovem realizador, quando confrontado por Ricardo Vieira Lisboa sobre se as personagens dos seus filmes andavam à deriva respondeu isto: “Não usaria a expressão “à deriva”, diria mais “sem pressa”. Porque havendo um objectivo não tens que estar sempre a trabalhar para lá chegar, “à deriva” parece que não tens objectivo.” Esta sua última curta, instalando-se docemente no poder fantasmático do som, ilustra bem esta diferença. As personagens parecem deambular por um quotidiano lisboeta, uma viagem entre jogos de futebol “boring”, entre vinis interrompidos, um cigarro, uma página de um livro de
McLuhan. Um “sem pressas” que nem por isso é deriva ansiosa. Um sem pressas que é mais o tempo de auscultar o fantasma da criação, do apuro do ouvido, da procura. Procura quer dos sons parasitas que não se sabe de onde vêm [a fazer lembrar o momento cómico de Vasco Pimentel no final de Aquele Querido Mês de Agosto (2008)], quer dos sons certos das folhas, dos gatos ronronantes, que uns procuram e outros perdem.
Vindo dos seus filmes anteriores está esta bonita e dolente presença dos amigos e colegas de Mota (Diogo Baldeia, Duarte Coimbra, entre outros), algo que, mais do que uma homenagem, é uma forma de filmar o trabalho do cinema, individual e colectivo, pleno de inter-penetrações e influências mútuas. O tempo em comum, as conversas em torno desse trabalho, a procura conjunta, têm esse flow de uma novissíma vaga serena, sem o frenesim metralhador daqueloutra. Num dos momentos mais preciosos de Poder Fantasma, o som da conversa entre Afonso Mota e Rafael Cardoso esvai-se em fade e ficamos com a música lenta de “Forever” de Pete Drake. O tempo da juventude, o cinema estende-a ao máximo e percebemos que nem só o som tem essa presença invisível e fantástica que o filme procura trabalhar: também a amizade habita esse espectro do indizível. É entre toda esta doçura, mas também nesta solidão nocturna da caça que o fantasma se revela. Belíssimo.
Segunda exibição dia 9 de Maio pelas 21h30 no Cinema São Jorge.
Carlos Natálio
Synonymes (2019) de Nadav Lapid
Talvez inspirado pelo conceito de um qualquer reality show, Nadav Lapid coloca o seu protagonista, Yoav (Tom Mercier), a “começar do zero”. Ao sair do duche num apartamento parisiense vazio por ele ocupado, o jovem dá pela falta de todos os pertences e enceta uma corrida desesperada pelo prédio onde parece não viver mais ninguém. Começa aqui o elenco de situações entre o realismo e o absurdo com que Lapid como que namora com os estereótipos do cinema francês cosmopolita, ao mesmo tempo que tece uma crítica a Israel e aos valores do país, nacionalidade que Yoav partilha com o realizador, que também não sai da troça feita de lugares-comuns.
Yoav parece permanentemente desajustado na capital francesa, o seu corpo encarregue da execução de uma performance simiesca que glorifica os atributos naturais de Mercier, pontapeando qualquer possibilidade de uma coerência interna adulta para o filme. Trejeitos de sátira, esgares ficcionais, caprichos de quem se tem na conta de autor e dá largas à auto-condescendência. Synonymes venceu o Urso de Ouro e o Prémio da Crítica na última edição do Festival de Berlim e foi escolhido para a sessão de encerramento do IndieLisboa.
O filme é exibido dia 12 de Maio, às 18h, no Grande Auditório da Culturgest.
Ricardo Gross
Temporada (2018) de André Novais Oliveira
Mera hipótese académica. E se André Novais Oliveira fosse o Ozu de Belo Horizonte e o quintal o seu jardim zen? Temporada é todo ele muito zen, estudo de personagem feminino, Juliana (bela presença e que calor de voz tem Grace Passô), e um retrato de conjunto de gente que leva o dia-a-dia à espera de dias melhores. E no meio deste quase nada que acontece, acontecem grandes coisas, como alguém ter conhecimento de uma paternidade de três anos, ou o final de uma relação antiga que fica por explicar, mas que decorrido o tempo suficiente irá abrir espaço para uma nova ligação.
Onde o filme, por assim dizer, “destoa” da sua veia Ozu é quando as ruas de Contagem são fumegadas para eliminar o mosquito que transmite o vírus da Dengue, e aí Novais Oliveira revela uma segunda veia, a de potencial realizador de filmes série B de género fantástico. Temporada é um filme bonito na sua pacatez e no aperfeiçoamento formal que oferece grande liberdade ao olhar do espectador.
Segunda exibição dia 8 de Maio pelas 20h30 no Cinema Ideal.
Ricardo Gross