A arte é triunfante quando consegue usar a convenção como instrumento para seu próprio proveito.
W. Somerset Maugham, O Fio da Navalha (1944)
Para os meses de Verão, reservamos espaço nesta crónica para algumas caçadas, motivo largamente explorado pela história da arte e à qual a Hollywood clássica não podia escapar, desde logo num ambiente, agora da ordem da mitologia, que capturava actores, realizadores, guionistas e demais pessoal técnico e criativo, em armazéns e em vínculos com os grandes estúdios que os convidava a contribuir para esse colosso de produção, que se pretendia formulaico nos processos mas inventivo nos resultados. Era um jogo do gato e do rato, que impunha convenções e censuras, ao que os autores respondiam com pontos de fuga, significações, símbolos e representações que participaram da estruturação da linguagem do Cinema.
Um conjunto de espingardas apontam ao céu, homens e cães expectantes e envoltos por um pântano. De súbito, um homem empurra outro; no plano seguinte, percebemos que, apesar de alvejado, aquele impulso salvou Wade (Robert Mitchum) da vingança de um homem, a quem o protagonista seduzira a companheira: logo na abertura de Home from the Hill (A Herança da Carne, 1960), Mitchum é, simultaneamente, caçador e presa.
Minnelli dividirá o filme em três actos, num palco sem tempo do Texas, numa oscilação entre o melodrama e o peso da tragédia, que a pouco e pouco se anuncia. Antes da cena central do primeiro acto, já nos fora esboçado o personagem de Mitchum: um aventureiro, que acumula mulheres, armas e cavalos. A primeira vez que Wade partilha uma cena com o filho Theron (17 anos), este acabara de ser conduzido, por uns rendeiros de Wade, numa caça aos gambozinos, por isso, de um lado o maior predador do Texas, do outro uma presa fácil. Wade leva, então, o filho a ver como um homem vive: numa sala pintada a vermelho sangue, Wade sentado num cadeirão e rodeado por cães de caça, armas e cabeças de animais embalsamados, afirma-se como um senhor feudal, com 40.000 hectares de produção de algodão, carne e madeira.
Wade é um homem que anda sem nada nos bolsos: sem identificação, pois todos sabem quem ele é, sem dinheiro porque todos se dispõem a emprestar-lho, sem chaves porque não precisa de fechar as suas coisas e sem relógio porque o tempo espera por ele. Wade diz ao filho que vai deixar de ser um menino, que irá para os bosques, à caça de si próprio, e termina a lição ensinando-o a empunhar uma arma. O rapaz tornar-se-á, então, num trofeu de caça, disputado pela mãe (Hannah, que até então o protegera) e pelo pai, entre a urbanidade da educação e a ancestralidade do sangue. Será Rafe, que mais tarde descobriremos ser filho ilegítimo de Wade, e que o salvara na primeira sequência, como um irmão mais velho, que acompanhará a educação de Theron, o ilegítimo a guiar o legitimo, a selva a educar a escola.
Os travellings, a câmara ágil de Minnelli, que nos relembra os seus incontornáveis musicais, acompanhará o jovem caçador na captura de um javali à solta nas propriedades de Wade, uma missão para legitimar a sua chegada à idade adulta, que será celebrada com toda a comunidade, à volta do javali no espeto, como se fosse uma arena na Roma Antiga, e que fechará o primeiro acto expondo, num plano que junta várias crianças negras a observar o festim (com Theron num canto, a antecipar o seu destino), uma dupla temática que se combina: a diluição do tempo e o fosso entre classes.
Minnelli prega-nos uma partida quando parece fechar o melodrama num possível happy ending, pois o caçador será caçado por uma sombra, vítima de um erro.
Há automóveis e carroças, senhores e negros serviçais, divagações de dois séculos na História sulista, que inclui supermercados com enlatados e congelados, como uma cápsula de um tempo diluído, uma história sem tempo, de todos os tempos, em que no segundo acto Minnelli arranjará tempo e lugares para todos os personagens, pais e filhos, como a disposição de uma sinfonia, em que a princípio se apresentam os motivos, os temas, para depois os desenvolver e interpolar.
Hannah (Eleanor Parker) vive com Wade, mas apartada dele, enclausurada e apenas entregue à educação e à felicidade do filho. É com Hannah que começamos a conhecer Rafe, na primeira cena no cemitério, espaço para explicitar a diferença de classes: na cota mais alta, dispõe-se um relvado bem tratado e lápides imponentes; na cota baixa, um espaço ao abandono, com pequenas pedras a assinalarem a presença das sepulturas, onde se inclui a da mãe de Rafe, que a pequena inscrição apenas informa que morreu de pneumonia. Se nesta cena é esboçada uma equivalência entre o estatuto do renegado Rafe e da população negra que cerca a família da casa no topo da colina (o titulo do filme traça o privilégio), Theron começa a receber a herança da carne (feliz titulo português), quando é impedido pelo pai de uma rapariga de a levar a um baile, devido à fama de Wade, situação que determinará o plot, no desencadear dos ciclos de violência.
Os personagens transformam-se à nossa frente, à excepção de Hannah, que devido à extensa clausura, se mantém gélida perante as investidas do impassível Wade que, também devido à carga da persona de Mitchum, bad boy dentro e fora dos ecrãs, alarga a concepção redonda que tínhamos do personagem, para assumir a importância da educação e do progresso na relação com o filho que pensara ter conquistado, e da afectividade, para lá das aventuras, cortejando a frígida Eleanor Parker.
Se os pais parecem estar sempre em cenas diferentes, característica da ficção que o melodrama incrementa, a dinâmica de transformação dos filhos de Wade é ainda mais preponderante, assistindo-se a uma permuta, uma mutação entre eles: Theron, após enfrentar Wade para exigir o reconhecimento da paternidade de Rafe, corta com as vantagens da sua classe, envereda por um trabalho no fabrico de algodão, ao lado dos trabalhadores negros, perde a ingenuidade e a figura cândida, para se tornar num homem obstinado e feroz que não encontra o seu lugar; em sentido contrário, Rafe renuncia progressivamente ao estatuto de rebelde solitário, de incivilizado, para encontrar o apaziguamento através de um acto de compaixão que o juntará a Libby, engravidada pelo filho legítimo do senhor feudal.
Mas são as caçadas que nos trouxeram aqui, Minnelli prega-nos uma partida quando parece fechar o melodrama num possível happy ending, pois o caçador será caçado por uma sombra, vítima de um erro, o que reformulará a sorte da primeira cena e rebentará na tragédia que várias vezes o filme prenuncia. Não chegamos a ver o tiro, estamos no quarto do filho legitimo quando nos chega o estouro, como uma herança, renovando a época da caça, que o filho do caçador empreenderá uma vez mais, para vingar o pai, seguindo a presa na floresta. Como num drama shakespeariano, o túmulo de Wade surge pintado a vermelho sangue, num epílogo que concretiza a ironia da operação de troca de posição entre o filho renegado e o filho legitimo, com a arte de Minnelli a baralhar a imposição da estruturação das classes, que o progresso e o tempo pareciam incapazes de impor.