Em Cinémas d’avant-garde (2006), Nicole Brenez procura sistematizar o cinema de vanguarda e identifica nele quatro características fundamentais: liberdade formal, rebelião política, emancipação técnica e emancipação económica. São aspectos nublosos, é certo, e procurar identificá-los pode dar origem a uma cristalização dos modos e das formas de um cinema que se caracteriza, exactamente, pela máxima disrupção. Convencionou-se chamar a este cinema de experimental de modo a reduzir a uma só palavra uma infinidade doutros termos que foram sendo usados ao longo dos anos pelos próprios cineastas, críticos e historiadores desta área artística (cinema puro, integral, absoluto, surrealista, abstrato, geométrico, marginal, maldito, cine-poema, cinema de poesia, art film, visionary film, film as film, etc. – lista recolhida por Frederico Lopes no muito recomendável artigo de 2012, Cinema Experimental Português. Perspetivar o futuro).
A prática da experimentação é querida ao cinema português como um todo, uma vez que ele é, como o caracterizou uma vez o realizador Paulo Rocha a Henri Langlois, em três adjectivos: anárquico, artesanal e visual. Ainda assim, existiram aqueles que procuraram desenvolver uma prática de experimentação mais intensa e, a partir dos anos 1960, influenciados pela segunda vanguarda norte-americana, sempre paredes meias com as outras artes, surgiram uma série de artistas que trabalharam a imagem em movimento: Ernesto de Sousa, António Palolo, Ernesto Melo e Castro, Noronha da Costa, Helena Almeida, Vasco Lucena, Julião Sarmento… – está ainda, no entanto, por fazer uma história do “filme de artista” português. Sendo que com o vídeo, e depois mais ainda com o digital, essa realidade estilhaçou-se em dezenas de diferentes olhares.
A sensação que vem ficando, nos últimos anos, é que Pêra, de tão único, não faz filmes, antes, pratica um estilo.
Serve este intróito para melhor enquadrar o trabalho de Edgar Pêra, aquele que Jorge Leitão Ramos denominou, não sem ironia, “o nosso experimentalista oficial”. Acrescentando, “O que, a bem dizer, significa apenas uma marca ® onde a procura de novas rimas e contrastes, entre imagens, sons e respetivas manipulações vale por si e menos como tijolo de uma linguagem. No fundo, procura-se o insólito, à espera que algo aconteça. As mais das vezes não acontece nada que valha a pena. Mas, às vezes, surpreendemo-nos deveras” (in Dicionário do Cinema Português 1962-1988). Caminhos Magnétykos (2018) é um objecto hiper-activo, mesmo frenético, como todos os seus filmes. Pêra é, afinal, um realizador espantado, que se deslumbra uma e outra vez com as imensas possibilidades do cinema (e, infelizmente, sempre com as mesmas possibilidades do cinema).
O excesso do seu costumeiro uso – a rebentar em encadeados fundidos intermináveis (ao longo do filme parece não haver um único raccord, todas as imagens se desfazem e diluem umas nas outras) e num trabalho de som quase barroco (cheio de ecos e distorções) – parece ter-se cristalizado. Este talvez seja o paroxismo de um modo de fazer hiper-singular. Mas a sensação que vem ficando, nos últimos anos, é que Pêra, de tão único, não faz filmes, antes, pratica um estilo. A pergunta que me imponho, diante de Caminhos Magnétykos é: o que sobra dos actores (Dominique Pinon e Ney Matogrosso a darem o litro para quê?), da fotografia (o olhar de Jorge Quintela é mastigado pela montagem e pela pós-produção) e da trama (inspirado na obra de Branquinho da Fonseca, autor de cabeceira de Pêra, pouco ou nada se agarra da torrente de cores e sons – uma espécie de melodrama sem fundo dramático)? A resposta: muito pouco.
O turbilhão cinestésico (e sinestésico também) de Pêra não deixa pedra sobre pedra por onde passa; é, literalmente, um cinema arrasador. Mas o que fica depois da tormenta, além do charme do seu vanguardismo virtuoso, é a terra ardida do solipsismo.