O cinema não cria apenas a possibilidade de inscrição histórica, ele é também a possibilidade de redenção dessa mesma história. Se é certo que cada filme de Pedro Costa contém já o germe do próximo filme, é igualmente certo que cada filme seu se constitui como um universo autónomo. A autonomia advém da individualização, da circunscrição do actor e seu universo, de um trabalho irrepetível que tanto tem de vampírico como de confessional. O vampírico não deve ser entendido de modo negativo, ele é antes a dimensão que permite o além vida, o cambio de fluxos vitais. Vitalina Varela deu a Pedro Costa a matéria do seu filme, as suas imagens e rituais, e Costa faz de Vitalina a sua essência. Assim como o confessional nada tem de religioso, é antes a entrega de uma vida, de um segredo que Costa trabalha à medida do que lhe é contado, daquilo que ele pode pensar através de imagens. Porque Vitalina não sai apenas do invisível – o negro da noite, a casa – para o visível – o passado em Cabo Verde, o exterior da casa -, para se inscrever na história; simultaneamente Vitalina enquanto constrói a sua história, faz um trabalho sobre essa mesma existência. Vitalina, ao recontar a sua vida, não é apenas uma possibilidade de inscrever um rosto, de trazer à visibilidade os que votados ao esquecimento se viram sempre invisíveis, é de igual modo um gesto de amor, de conferir sentido à sua experiência e sobretudo um movimento de luto.

Nenhum objecto de Pedro Costa foi até Vitalina Varela (2019) uma tão grande elegia à humanidade, um verdadeiro vislumbre do seu lado renoiriano. Porque, tal como Renoir, Pedro Costa aplica a célebre fórmula de que “não é possível acompanhar a vida de um personagem para no fim matá-lo”. Pedro Costa soube perscrutar o íntimo de Vitalina Varela, o mesmíssimo íntimo que esta mais tarde confessa ao jornal Público: “o meu marido morreu, fiquei sozinha e agora sou livre”. A liberdade de Vitalina é o que há de mais extraordinário no filme, porque conscientemente Pedro Costa optou por resgatar Vitalina da casa, da dimensão hermética para o qual o filme caminhava. Vitalina merece então viver, porque só agora é livre. Apenas a crueldade de Deus-cineasta vingativo poderia subjugar a vida de Vitalina ao constrito da casa, ignorar os clarões de luz que trespassam a porta, a vida que lá fora chama por ela. Mesmo num mundo de espectros, Vitalina é uma presença luminosa, uma intensidade que quer viver. O choro de Vitalina ou o momento em que esta expulsa os homens de sua casa são a marca indelével de uma vontade de vida.
Vitalina Varela é uma história de sombra e luz, lado que adquire pela primeira vez no cinema de Costa uma dimensão religiosa. Mas Costa nunca deixa o religioso tomar conta do filme e imprimir sobre as luzes e trevas uma característica barroca. Pelo contrário, é essa luz sagrada e as trevas demoníacas que descem ao profano para se fazerem cinema. Pedro Costa, tal como Caravaggio, compreendeu esse difícil equilíbrio, o êxtase pagão. A missa proferida por Ventura é talvez o momento mais significativo desse encontro, em que se interligam excertos da Bíblia com canções cabo-verdianas e a poesia de Antero de Quental. Há ainda um outro elemento que confere um aspecto singular a esta obra: o lado feminino. Pois o cinema de Pedro Costa sempre foi pautado maioritariamente pela vivência masculina e Vitalina é o primeiro caso onde este universo tem um reverso, um duplo. Vitalina Varela constitui assim um díptico com Juventude em Marcha (2006), dedicado à vida de Ventura. Vida que Vitalina nunca viveu e pela qual esperou – foram 25 anos a aguardar por um bilhete de avião que nunca obteve. É certo que não podemos ignorar a figura de Vanda na cinematografia de Costa, mas esta tem somente correspondência em Tina, personagem principal de Ossos (1997). A figura de Vanda não é em nenhum momento o outro lado, o feminino, porque ela é a totalidade, um ser fechado em si mesmo. Vanda está circunscrita à dimensão do quarto, Vitalina é a superação dessa dimensão. Ao estar no mundo, Vitalina pode então ser mulher, pode constituir-se como o outro lado.
Só o esquecimento pode fazer Vitalina viver e se livrar dessas memórias que a arrastam para um universo de sombras, de espectros, de amargura pelo não vivido.
Vitalina não regressa apenas para enterrar o homem com quem casou, ela regressa sobretudo para enfrentar a vida em Portugal que não viveu, essa vida que nunca lhe chegou sequer por carta. À chegada ao aeroporto dizem-lhe que “aqui não há nada para ti”, mas nenhuma daquelas mulheres poderia compreender que aquele nada na verdade era tudo para Vitalina. O seu marido tinha sido enterrado três dias antes, mas tal como lhe relembra o padre, os mortos não estão realmente mortos, mas antes “adormecidos”. O filme sobre Vitalina Varela é nada mais do que a história da sua libertação, do exorcismo sobre o adormecido que nega morrer em seu espírito. Por esse motivo, o filme de Costa dá início com o funeral do marido e não com a chegada de Vitalina, porque a morte do marido não é necessariamente o mote, mas sobretudo o signo. O altar, os antigos companheiros – esses homens “bêbados e tristes” –, a casa de proporções erradas, o telhado em ruínas – reflexo do desleixo em que viveu e que contrasta com a memória do jovem esposo que durante 45 dias trabalhou arduamente para construir a casa em Cabo Verde – testemunhos de uma vida errante consumidos pelo fogo… Tudo reflecte a marca da sua presença e acentuam o negro que envolve Vitalina.
Mas todo o filme de Costa é pontuado por elementos que recusam ceder às trevas, ao adormecer mortífero. Vitalina escava na noite para criar fruto e vida, para erradicar do sono o adormecimento da alma. A acção de Vitalina é uma perpétua e desigual luta contra as entidades espectrais que a circundam. A morte espera por Vitalina a todo o momento, mas Vitalina atravessa o rio Estiges – um dos planos mais extraordinários é quando Costa transforma o túnel de esgoto numa passagem celestial – para se libertar do passado, dos espectros. Talvez Vitalina não cruze apenas este rio, mas antes a totalidade dos subterrâneos de Hades e por fim encontre o precioso Lete e dessa água beba para viver. Só o esquecimento pode fazer Vitalina viver e se livrar dessas memórias que a arrastam para um universo de sombras, de espectros, de amargura pelo não vivido.
À medida que a luz conquista a tela do filme, o rosto de Vitalina vai perdendo a sua fixidez, o silêncio dá lugar às palavras, as roupas enlutadas dão lugar à sensualidade da carne, a tristeza dá lugar à acção, o rancor dá lugar à paz. Vitalina não parte para Portugal para morrer, mas antes para poder viver. O que vemos em Vitalina Varela é a derradeira conquista pelo lugar que sempre lhe foi negado na casa. Ao tomar a casa, Vitalina (re)toma a sua condição de mulher e a possibilidade de idealizar. Porque as memórias de Cabo Verde – esses dois espantosos planos que rompem a tela – só são possíveis em Portugal quando este deixa de ser fantasia e se torna realidade. É necessário Vitalina estar na Cova da Moura para pensar sobre Cabo Verde, para conferir sentido à sua existência até então vivida, porque tudo antes foi espera.
A história de Vitalina termina então num cemitério, o único lugar possível que lhe pode conceder a vida. É lá que Vitalina deve enterrar as memórias do morto junto ao lugar do cadáver, é lá que Vitalina pode libertar-se da noite e encontrar o dia. Num dos mais espantosos planos do filme, antes da ida ao cemitério, Vitalina é acordada por um imenso barulho. Os homens que trabalham para consertar o telhado são os mesmos homens que parecem arrastar a negritude das nuvens para longe. O vislumbre daquele intenso azul é o sinal pelo qual Vitalina esperava. Talvez o parente fílmico de Vitalina Varela seja o improvável Il Grido (O Grito, 1957) de Antonioni. Ambos são filmes dominados pela atmosfera, porém enquanto a invariável negritude do céu conduz Aldo ao seu trágico destino, as cambiantes do céu em Vitalina permitem a sua transformação e libertação.