Para mim, o filme sobre o qual escrevo neste texto sempre foi O Feitiço da Lua. Antes de os distribuidores terem começado a desprezar essa tarefa, os filmes conheciam-se pelo título português. O When Harry Met Sally chamava-se Um Amor Inevitável e o Home Alone era o Sozinho em Casa. Mesmo quando a tradução não era perfeita, a solução era criativa – O Acossado/À bout de souffle e As Quatro Cabeleiras do Após-Calypso/Hard Day’s Night, dois dos melhores exemplos. Hoje em dia, é quase impossível lembrar-me de um, a não ser que seja especialmente mau – o pior ainda deve ser Zombies Party – Uma Noite de… Morte para Shaun of the Dead (houve um período em que as reticências eram obrigatórias nos títulos das comédias estreadas em Portugal).
Moonstruck (O Feitiço da Lua, 1987) é, pois, de outra época. Há pouco mais de trinta anos, encaixava perfeitamente entre as produções coevas, dir-se-ia paradigma de um certo tipo de cinema que se fazia na altura. No termo dos anos 10 deste século, é quase inimaginável. Nenhum grande estúdio poria dinheiro numa comédia agridoce sobre desventuras amorosas, em que a maior parte do elenco tem de cinquenta anos para cima. E não são cinquentas enxutos à Tom Cruise ou Brad Pitt. Danny Aiello, Vincent Gardenia, Olympia Dukakis e John Mahoney parecem a idade que têm. Parecem velhos. (Claro que isto não se aplica a Cher, que não tem idade. Mas, mesmo ela, aparece “desfeada” pelo cabelo grisalho e roupas cansadas.)
Tinha Moonstruck como um bocado académico, mais engraçadinho do que com graça. Andava enganado. Será um bocado pateta, sim, mas de uma maneira enternecedora.
De resto, a passagem do tempo é um dos temas de Moonstruck. Ou, como diz Dukakis lá para o meio, o medo da morte, que “força” Mahoney a perseguir jovens alunas e o marido a arranjar uma amante. Ou o medo de ter deixado a vida passar, que leva Cher a aceitar um noivo insípido e entediante e Nicholas Cage a erguer a mão de madeira em fúria. Consegue-se imaginar um filme contemporâneo com estes temas, interpretado por actores naqueles quarentas que são os novos trintas. Talvez a Netflix apostasse nisso. E poria o Noah Baumbach a realizá-lo. Dificilmente deixaria um pau-para-toda-a-obra como Norman Jewison filmar o argumento de um dramaturgo não muito conhecido.
John Patrick Shanley – que, muitos anos depois, viria a escrever e realizar o excelente e bastante diferente Doubt (Dúvida, 2008) – cria em Moonstruck uma peça de câmara (ou para a câmara), na qual as personagens tragicómicas (e ele devota-se a todas elas, por mais secundárias que sejam), sob o efeito de uma lua cheia, enorme, redonda (uma lua de cinema a fazer as vezes dos duendes de um A Midsummer Night’s Dream), esquecem-se dos deveres e entregam-se completamente aos desejos (Cage, Cher) ou ficam muito perto de o fazer (Duakakis, Mahoney). Como é habitual nestas andanças, casais transmutam-se em triângulos amorosos e estes em quadrados, para, de manhã, ao pequeno-almoço, a ordem se restabelecer em pares sentados à mesa da cozinha.
Apesar da respiração realista, o universo é fantasioso, de conto de fadas. Aquela Nova Iorque – mais precisamente aquela Brooklyn dos bairros italo-americanos (a música a soar em cada canto, a comida como grande denominador) – provavelmente nunca existiu. Shanley e Jewison querem lá saber de naturalismo, de subtilezas. Intenção ainda mais evidente na representação. É uma delícia ver Cage, um dos mestres do overacting, a ser maravilhosamente absurdo e excessivo, aos gritos por tudo e por nada, frente à secura caustica de Cher, com a sua voz anasalada e grave.
Embora tenha visto Moonstruck inúmeras vezes na infância/pré-adolescência (nem sei explicar bem porquê; devia gostar, deve ser isso), durante muito tempo desconsiderei-o como um filminho de Óscares (ganhou três, para as actrizes e para o argumento), aquilo a que os norte-americanos chamam veículo para uma estrela (Cher). Tinha-o até como um bocado académico, mais engraçadinho do que com graça. Andava enganado. Será um bocado pateta, sim, mas de uma maneira enternecedora. Na veia do também já referido When Harry Met Sally (Um Amor Inevitável, 1989). Filmes que – escrevo-o sem vergonha de ser piroso – provocam um sorriso nos lábios e um afago no coração.
E agora, ao revê-lo, deu-me saudades de um período que ainda vivi. Quando um Moonstruck poderia estrear-se a qualquer altura.