Yesterday, upon the stair,
I met a man who wasn’t there!
He wasn’t there again today,
Oh how I wish he’d go away!
Antigonish, William Hughes Mearns
Muito se fala de Charade (Charada, 1963) de Stanley Donen como réplica do cinema de Alfred Hitchcock. Fala-se menos de Arabesque (Arabesco, 1966), também de Donen e que joga no mesmíssimo campeonato. A certo ponto da sua carreira, depois de ter abandonado o musical, o realizador norte-americano dedicou-se à homenagem (imitação) ao inglês – que, por sinal, estava vivinho da silva e a fazer filmes porventura não tão hitchcockianos quanto estes óptimos pastiches.
Contudo, olhando para a ficha técnica dos dois filmes de Donen, outro nome salta à vista como provável autor (do furto): Peter Stone, o argumentista. Se Brian De Palma e Dario Argento tomaram de Hitchcock a maneira de filmar, levando ao extremo a sua técnica visual, Stone especializou-se em emular os enredos dos seus filmes: as voltas e reviravoltas, as falsas identidades, a psicanálise de pacotilha, o macguffin, a (i)lógica do sonho (pesadelo). As apropriações de uns e outro foram quase caricaturais, as características mais reconhecíveis do cinema do rotundo realizador distorcidas e exageradas em mãos alheias, criando um género que se poderia designar über-Hitchcock*.
Em Mirage (Enigma Alucinante, 1965), Peter Stone vai ainda mais longe do que em Charade – um caleidoscópio de intrigas, identidades trocadas e enganos vários – e Arabesque [das obras mais conhecidas de Stone, a única que foge a estas contas é The Taking Pelham One Two Three (1974), a qual já abordei nesta rubrica faz alguns anos]. Rouba não só o tema da amnésia associada ao sentimento de culpa a Spellbound (A Casa Encantada, 1945) como o actor principal, Gregory Peck. Em ambos, Peck não se lembra bem quem é, que faz ali, que lhe aconteceu. A sua falta de memória é o buraco por onde o espectador entra no filme, e por lá anda tão perdido quanto ele, à procura de respostas e esclarecimentos – escolha inteligente de Stone, pois se a história fosse contada a direito dificilmente entusiasmaria alguém.
A opção de obscurecer a narrativa surge logo na primeira sequência. Mirage abre com um apagão num arranha-céus em Nova Iorque. A descida de Gregory Peck e Diane Baker, desde o vigésimo sétimo andar, faz-se às escuras, num jogo entre a luz da lanterna e o breu circundante que o realizador Edward Dmytryk, versado no film noir, trabalha com perícia. Nele, Baker e Peck vão-se reconhecendo (a voz dele) e desconhecendo (o rosto dela). Mal chegados ao rés-do-chão, Baker, assustada por Peck não saber quem ela é, foge escadas abaixo e ele persegue-a pelos quatro níveis do subsolo. O grande problema é que, como Peck vem a descobrir, o edifício nem sequer tem cave. Como assim? Mas ele não acabou de passar por aquelas escadas?
Será Mirage dos primeiros filmes norte-americanos abertamente pós-modernos? Em certo sentido, sim. Desde logo por ser uma colagem de várias referências.
Lá para diante, em mais uma situação meio improvável, uma menina dos seus seis anos serve aos protagonistas um belo bule de café imaginário. Este tipo de fantasmagoria é um fenómeno recorrente em Mirage: o frigorífico ora não tem nada, ora está cheio; o mesmo para a pasta de negócios; um escritório e respectiva empresa desaparecem completamente; personagens saem de cena como se deixassem de existir. Nada é algo realmente, nenhuma memória é de confiança – a dado momento, Peck é acometido de um flashback, em que se vê a si mesmo a falar com alguém ao longe, mas como é que uma reminiscência sua poderia ter aquele ponto de vista?
A dicotomia não é tanto loucura vs. sanidade, antes realidade vs. simulacro. Peter Stone, propositadamente ou não, filia ainda Mirage à ficção-científica, mais concretamente, à família de We Can Remember It for You Wholesale de Philip K. Dick, que daria origem a Total Recall (Desafio Final, 1990) de Paul Verhoeven, e Simulcaron-3 de Daniel F. Galouye, no qual Rainer W. Fassbinder se basearia em Welt am Draht (O Mundo no Arame, 1973). Objetos e personagens servem sobretudo para conjurar o espectro de normalidade, de uma verdade impossível – poderosa analogia da tensão entre o artifício do cinema e o prosaico mundo lá de fora, que David Fincher exploraria em The Game (O Jogo, 1997).
Será Mirage – surgido no período de transição entre a antiga e a nova Hollywood, quando se começou a filmar mais na rua do que em estúdio – dos primeiros filmes norte-americanos abertamente pós-modernos? Em certo sentido, sim. Desde logo por ser uma colagem de várias referências de Peter Stone. Além de assaltar descaradamente Hitchcock, o argumentista não se coíbe de rapinar ideias a outros, aqui e ali, como o discurso do vilão sobre os humanos que parecem formiguinhas vistos do alto de um arranha-céus, parafraseado do de Harry Lime de Orson Welles em The Third Man (O Terceiro Homem, 1949). No fundo, importa mais a citação, a brincadeira, o divertimento do que qualquer explicação para a narrativa, que, de qualquer forma, não faz sentido nenhum.
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* Dentro deste “género”, é curioso verificar a contaminação de actores entre filmes. Mirage é um excelente exemplo: Walter Matthau e George Kennedy vêm de Charade; Diane Baker entrara poucos anos em The Prize (O Prémio, 1963) de Mark Robson, uma espécie de remake de Foreign Correspondent (Correspondente de Guerra, 1940), assinado por Ernest Lehman, também argumentista de North by Northwest (Intriga Internacional, 1959); e, claro, Gregory Peck protagonizara Arabesque, ao lado de Sophia Loren.