Não, caro leitor, o subtítulo em cima não é um clickbait. Este seu desumilde criado crê convictamente de que o último Godfather se trata do melhor da trilogia. Antecipando eventuais controvérsias, e pondo a sublinhado para assegurar que a mensagem passa, é uma apreciação pessoal com que ninguém tem de concordar, e sei que, dada a sua impopularidade, a possibilidade deste texto obter a simpatia do leitor estará, provavelmente, já perdida. Mas garanto-lhe, não é tão impopular quanto isso. De facto, grandes críticos como Serge Daney [neste momento de Serge Daney: Itinéraire d’un ‘ciné-fils’ (1992)] ou João Benárd da Costa (que, como nos diz neste texto, prefere os Godfathers por ordem crescente) também o destacaram positivamente face aos que o antecederam. Isto sem esquecer o carinho especial que Jean Douchet lhe dedicou [seleccionando-o para um curto ciclo do Leffest em torno de algumas obras cinematográficas de seu enorme apreço]. Se é verdade que quem defende The Godfather: Part III (O Padrinho: Parte III, 1990) como apogeu da saga está do lado de uma minoria, não menos verdade é que se encontra em muito boa companhia. Por isso, caro leitor, se porventura você é um desses casos e nunca o admitiu por medo de ser julgado pelos seus amigos cinéfilos, dou-lhe uma sugestão lúdica: da próxima vez que estiver com os ditos amigos, assuma a sua predilecção e divirta-se no modo como os risos iniciais darão origem a genuínas expressões de pasmo, à medida que procede numa enumeração relaxada de quem mais está consigo.
Não posso falar por nenhum dos críticos referidos, mas posso falar por mim. Sempre preferi o derradeiro Godfather por ser o mais operático, o mais trágico, o com mais pathos. Se os dois primeiros falavam de uma família, o último fala de um homem, um pecador atormentado à procura de redenção e determinado em limpar o historial de sangue cravado no seu nome e no seu espírito, tentando fugir ao passado sem consegui-lo. Se Michael Corleone era um anti-herói nos dois primeiros tomos, no terceiro é um herói trágico, estando mais vulnerável fisicamente (os ataques diabéticos) e emocionalmente (as lágrimas vertidas na confissão), submerso no lago de culpa e remorso enchido pela chuva dos anos. É uma obra mais concentrada nele, onde já não ocorre a divisão de protagonismo com os irmãos ou o pai (seja em velho ou em novo), deliberadamente afastada da narrativa de matizes clássicas que caracterizou os dois primeiros para se aproximar de um profundo e tocante character study de quase três horas. É, por isso, o filme da saga mais psicológico, pungente, reflexivo, complexo e empático.
A violência mais avassaladora deste filme não vem de fora, mas de dentro, não de tiroteios ou esfaqueamentos, mas da incapacidade de um homem em lidar com a sua decadência moral.
Como não ficar preso ao rosto cansado e voz rouca de Al Pacino, levando o filme aos ombros na personagem de um monarca envelhecido a reflectir sobre o futuro do reino e o legado deixado aos herdeiros, qual Rei Lear à beira de descer do trono? Sim, porque se a aura de tragédia shakespereana foi frequentemente associada à saga, é aqui onde ela se encontra mais vincada. Se Corleone é Lear, Mary é (logicamente) Cordélia e Connie não está muito distante de uma Lady Macbeth vingativa. Mas chega de Shakespeare. Afinal, a julgar pela forma como Michael é confrontado com o destino inexorável, sofrendo o inevitável castigo pelos crimes de que escapou ileso, qual herói mortal punido pelos deuses incompassíveis, The Godfather III parece estar mais próximo da tragédia grega.
Falemos então da queda de D. Corleone pela abordagem da cena nuclear da terceira parte: a confissão no jardim do Vaticano. Nela, um cardeal (e futuro papa) começa por pegar numa pedra que está dentro de uma fonte. Parte-a ao meio e diz que, apesar de ela ter estado sempre rodeada por água, o seu interior manteve-se seco. E elabora uma analogia: tal como a pedra com a água, assim são os homens com o Cristianismo – estão circundados por ele, mas Cristo não lhes penetra os corações. E assim foi a vida de Michael, criado num ambiente católico, rodeando-se de rituais religiosos e funcionários clericais, mas por dentro permanecendo sempre um imutável pecador. Este confronto indirecto com a sua hipocrisia, associada a uma momentânea crise diabética, deixá-lo-á fragilizado diante do cardeal, algo a que este responderá pelo incentivo à confissão. É por esta altura que a mise en scène de Coppola faz com que os dois se desloquem para junto de uma coluna com vegetação agarrada, passando a usá-la como separador visual entre os dois homens, cada um com o seu plano fechado isolado e semi-escurecido, um tratamento do espaço gerador da mesma intimidade de um confessionário. E aqui Michael cede, enuncia os crimes provocados e o seu sincero arrependimento, principalmente pela morte do irmão. “A sua vida pode ser redimida. Mas sei que não acredita nisso”, diz-lhe o cardeal. E absolve-o, apesar de saber da inutilidade do gesto. É a cena que melhor explicita o grande desejo de Michael: o de ser perdoado. Só que o perdão não é uma mercadoria, e por maior que seja o número de absolvições, de cheques dados a instituições de caridade ou de medalhas atribuídas pela Igreja, ele será sempre afligido pela sua consciência. Porque a violência mais avassaladora deste filme não vem de fora, mas de dentro, não de tiroteios ou esfaqueamentos, mas da incapacidade de um homem em lidar com a sua decadência moral. Se Michael alcançou estatuto, poder e dinheiro, fê-lo sacrificando algo mais importante: a alma.
Esta dicotomia entre pecado e redenção torna o filme no mais católico do trio, abundando, por isso, em elementos de iconografia, liturgia e arquitectura cristã. Todos os Godfathers os têm, mas é aqui onde Coppola parece incrementar e fortalecer as suas conexões simbólicas com a saga Corleone: a estátua de Nossa Senhora (1), no primeiro plano, junto ao lago onde o assassínio de Fredo ocorreu, como que a pressagiar a punição do protagonista pelo infame sacrilégio cometido; o fratricídio recordado em flashback no decorrer da cerimónia na igreja (2), esse espaço onde tanto se discursa sobre actos imorais (como o que Michael recorda) e expiação (como a que Michael necessita); o contra-picado que junta um arranha-céus a uma catedral (3), uma intersecção visual que simboliza a colisão entre negócio e religião explorada pelo filme; a estátua de Cristo a ser levada na procissão da ópera (4) que se segue imediatamente à descoberta de João Paulo I envenenado, sugerindo como o papa foi tornado mártir para a legitimação dos Corleone; ou essa imagem arquetípica de sofrimento materno pela morte de um filho que é a pietà, neste caso feita de Kay a segurar nos braços a falecida Mary (5).
Mas The Godfather III é também sobre o envelhecimento e a perda de estatuto que implica, trazendo à cabeça um outro filme: Il gattopardo (O Leopardo, 1963). Para além de citações visuais como uma dança entre o protagonista e uma mulher nova ou o plano em que este se barbeia, ao espelho, enquanto um jovem aliado surge-lhe por trás (uma imagem que reforça a necessidade de cumplicidade entre eles), D. Corleone remete para D. Fabrizio (a personagem de Burt Lancaster na magnum opus de Visconti) na forma como pressente a sua impotência e aniquilação quando confrontado com as mudanças ao seu redor – históricas e sociais no caso de Fabrizi, profissionais e geracionais no de Corleone. Michael sente essa impotência no massacre do hotel de Atlantic City orquestrado por Zasa, de onde só sai ileso graças à acção de Vincent, uma cena que demonstra bem a sua vulnerabilidade face à nova geração de mafiosos e o perigo em que a Família fica colocada com um Padrinho antiquado e inadaptável. E como Vincent conhece bem o tipo de jogo sujo praticado e como demonstra, na cena referida, possuir a força necessária para vencê-lo, esta atitude valida-o enquanto sucessor lógico e necessário da posição do veterano. “O novo derruba o velho, é a ordem natural”, diz Michael. E por isso, por essa ordem natural, é tão comovedor o instante em que finalmente cede o lugar de chefia a Vincent, saindo pela porta curvado, entristecido, minguado por esta transição, mas também resignado por reconhecer o seu lugar para que a permanência de poder, influência e segurança da Família se mantenha firme. Se no fim do primeiro filme uma porta fechava-se para Kay, agora é a vez de uma outra fechar-se para Michael, fazendo-o passar do interior para o exterior dos negócios da Família, marcando assim o término do seu reinado e o início do de Vincent.
E o que dizer do final, o momento mais extraordinário do filme, da trilogia, de toda a obra de Coppola? Se há uma sequência a recordar da saga inteira, esta não é a de Bonasera a pedir auxílio a Vito Corleone, não é a da cabeça do cavalo nos lençóis de Jack Woltz, não é a daquele magoado e veemente “You broke my heart, Fredo”, não são as tantas outras infinitamente referenciadas, mimicadas ou parodiadas das duas primeiras partes. É mesmo aquele desfecho que tem tanto de belo quanto de doloroso, a tragédia no seu ponto paroxístico, que vai daquele devastador grito mudo nas escadas da ópera onde repousa o corpo sem vida de Mary, passa pelos curtos flashbacks das danças de Michael com todas as mulheres que amou (e perdeu), e acaba nessa morte solitária e sem glória ao som das últimas notas do Intermezzo de Cavalleria Rusticana, a única paz encontrada em anos e anos de memórias amarguradas e de culpa corrosiva. Com toda a violência, remorso e sensação de vazio que dela adveio, a morte física de Mary foi também a espiritual de Michael, tornando-o condenado de um longo purgatório de recordações e luto, um cadáver vivo e abandonado que, quando por fim cai, já só será chorado pelos seus pequenos cães. Poderá soar a um elogio hiperbólico, mas é sentido: para mim, todas as 9 horas somadas de saga que o antecedem não se equiparam ao superlativo, inesquecível e inefável impacto dramático dos últimos 5 minutos de The Godfather III.
Há tantos outros momentos memoráveis que poderia referir: o passeio reconciliador de Kay e Michael por Sicília (neste filme regressa-se às raízes, para que tudo possa acabar onde começou); o espectáculo de marionetes onde um fantoche-pai apunhala o fantoche-filha por causa de um namoro não aprovado, comentando melodramaticamente a relação Michael-Mary quanto a Vincent; o plano onde Kay olha para Michael pelo espaço de uma porta aberta enquanto este trata dos “negócios” (a evocar o último do primeiro filme, só que, desta vez, Kay desiste e vai-se embora); Michael a ouvir a canção local tocada pelo filho, olhando para a filha e Vincent com receio de que aquele amor encontre o mesmo futuro fatídico que o dele e de Apollonia encontrou; a meia-hora de montagem paralela – derivação da sequência do baptismo do primeiro Godfather mas levada a um nível mais ambicioso, barroco e operístico – com excertos da ópera (que espelham os temas de violência e retaliação do filme) intercaladas com a preparação e execução dos assassinatos dos que prejudicaram a Família; sim, o “Just when I thought I was out, they pull me back in”, mas também o “Give me a chance to redeem myself and I will sin no more” e “When they come, they come at what you love”.
E antes que surja o argumentum ad sofia coppolem, mesmo que o desempenho da actriz fosse o pior do mundo (o que não é, nem de perto nem de longe), o filme tem imensamente mais do que isso e não será, com certeza, uma personagem secundária com pouco tempo de ecrã a arruiná-lo. A forma como Sofia Coppola foi publicamente humilhada para deitar por terra o trabalho do pai é só reveladora da enorme preguiça crítica de que o último Godfather foi alvo na altura e continua, na sua essência, a ser. Não só não é o pior desempenho, como até é defensável. Porque é graças à sua falta de experiência, à sua inexpressividade, à sua inocência que o homicídio de Mary é tão marcante. Explico-me. Quando o tiro fatal atravessa o peito de Mary e o pânico se instala na escadaria, o seu rosto está inerte, acarretando a expressão alva de uma vítima quase inconsciente do que lhe aconteceu, conforme manifesto naquela simples palavra dita de maneira calma: “Pai?”. E por isso, por essa calma inocente que contrasta com todo aquele cenário de lágrimas, gritos e correrias, colocando-o em suspenso por segundos, o momento sente-se como verdadeiramente trágico.
Esqueça-se, portanto, o que a opinião popular veio a instituir, esqueçam-se as listas redutoras de “melhores filmes de sempre” que salientam exclusivamente as Partes I e II, esqueça-se (por favor, esqueça-se) a lamentável nova versão lançada por Coppola. Apague-se o estigma de vez e veja-se o filme por aquilo que é. Não estou a tentar impor a minha opinião, mas peço que se compreenda: a única razão pela qual The Godfather III permanece criminosamente subvalorizado deve-se ao simples facto de ele não ser semelhante aos dois que o antecederam. Mas isso não quer dizer que seja inferior, tal como não quer dizer que seja superior, quer dizer apenas que é diferente. Cada um é uma obra estética com os seus méritos individuais ao qual a sensibilidade de cada espectador manifestará uma maior ou menor adesão, “o melhor” e “o pior” na sua perspectiva. Sucede apenas que as divergências dos méritos do 3º com os anteriores são mais numerosas e menos reconhecidas. Mas se o leitor, caso não as tenha ainda encontrado, for capaz de ver o último de mente aberta e deixá-lo falar por si, poderá ser mais recompensador do que aquilo que pensa. Quem sabe, talvez até possa ver nele aquilo que me é: uma obra-prima injustiçada, um clássico mal-amado e incompreendido, um momento primoroso de grande cinema que aguarda pacientemente a entrada no cânone. E, claro, o melhor da trilogia.