There may be trouble ahead / But while there’s moonlight
And music and love and romance / Let’s face the music and dance
Fred Astaire em Follow the Fleet (1936)
Paris ocupa um lugar especial no imaginário do cinema, em particular no género da comédia musical, nomeadamente em An American in Paris (Um Americano em Paris, 1951), de Vincente Minnelli, e Funny Face (Cinderela em Paris, 1957), de Stanley Donen: nestes filmes, a cidade das luzes transforma-se num palco onde se entrelaçam múltiplas intrigas solitárias, românticas ou coletivas, coreografadas ao ritmo de melodias nostálgicas ou eufóricas que pautam o espaço urbano estilizado em Technicolor. A partir de 1960, os cineastas da Nouvelle Vague procuram dar a ver uma outra Paris, supostamente mais autêntica, despida pela fotografia a preto e branco, mas nem por isso menos emblemática. Assim, a capital cristalizada por Jacques Rivette desde Paris Nous Appartient (1960) apresenta-se aos olhos do espectador com uma geografia íntima e labiríntica de múltiplas camadas. Se os locais prediletos do cineasta francês para pôr em cena encontros fortuitos e inesperados são espaços a céu aberto onde tudo é possível, nomeadamente os telhados dos edifícios haussmanianos e os parques em elevação permitindo vistas panorâmicas sobre a cidade, é frequentemente no interior de moradias burguesas e de caves sombrias que se “joga” o destino das personagens dos seus filmes.
Trinta e cinco anos após a primeira longa-metragem de Rivette, Paris continua a pertencer-lhe plenamente. Depois de dois desvios particularmente ambiciosos no início dos anos 1990, tanto em termos de temática quanto de expectativas comerciais — imersão no atelier de um pintor em La belle noiseuse (A bela intrigante, 1991), reconstituição do grande palco da História nacional em Jeanne la Pucelle (1994) —, o antigo crítico dos Cahiers du Cinéma regressa à sua Paris dos “altos e baixos” com Haut bas fragile (1995), uma “comédia musical de verão parisiense” que recupera e revigora vários ingredientes das suas realizações das décadas anteriores. Numa entrevista para o jornal francês Libération, em 1995, quando interrogado sobre o que o levara a realizar uma comédia musical perto dos seus setenta anos, Rivette respondeu que o interesse pela dança era um prolongamento lógico do seu trabalho de cineasta em torno das relações entre os corpos.
Depois dos duos e quartetos femininos de Céline et Julie vont en bateau (1974), Duelle (une quarantaine) (Dualidades, 1976), Le Pont du Nord (1981) ou La Bande des quatre(O Bando das Quatro, 1988), é a vez de um trio que Rivette faz convergir por momentos sobre a pista de dança. Haut bas fragile nasce da colaboração do cineasta com os seus argumentistas habitués (Christine Laurent e Pascal Bonitzer), bem como com as três atrizes principais que criam os seus próprios papéis. Cada termo do título corresponde a uma das protagonistas: em cima (Haut), está Louise (Marianne Denicourt), uma jovem de boas famílias que retoma a vida na capital após cinco anos em coma; embaixo (Bas), encontra-se Ninon (Nathalie Richard), vigarista em part-time numa empresa de entregas durante o dia e frequentadora assídua dos dancings parisienses à noite; por fim, a tímida bibliotecária Ida (Laurence Côte) ocupa uma posição incerta (fragile), desconhecendo as suas origens e tendo por única companhia um gato chamado Henri. Cada personagem pode também ser associada a um género cinematográfico: o conto de fadas, a Louise, a princesa que desperta de um longo sono; o film noir a Ninon, perseguida pela sua antiga vida de criminosa; e o melodrama, a Ida, em busca da sua mãe biológica, de quem guarda como única lembrança a melodia da canção que esta lhe cantava.
Ao longo do filme, os termos do título acabam por se revelar permutáveis: o que vai definir as vivências de cada personagem não são as origens familiares ou a classe social a que pertencem, mas o modo como circulam no espaço urbano e se relacionam com aqueles que se cruzam nos seus caminhos.
A única figura masculina remotamente comum às três jovens é o cenógrafo Roland, (André Marcon): este tem em sua posse certos documentos incriminatórios sobre o passado do pai de Louise (László Szabó, de quem ouvimos apenas a voz nos seus insistentes telefonemas), e é também testemunha de um dos roubos cometidos por Ninon, antes de se tornar o seu interesse romântico; por fim, é Roland quem revela a Ida o nome da intérprete da canção que não lhe sai da cabeça. É esta música que conduz Ida ao Saloon de Sarah, interpretada por Anna Karina. Sem surpresa, a simples presença deste ícone da Nouvelle Vague, num papel que evoca o da sua personagem Angela em Une femme est une femme (Uma Mulher É Uma Mulher, 1961) de Jean-Luc Godard, é suficiente para dar ao espectador a convicção de que descobriu a chave de um dos enigmas centrais do filme.
No entanto, para Rivette, a questão de saber se Sarah é ou não a progenitora de Ida tem pouca importância; assim como, à grande escala do filme, a origem das personagens é finalmente tão irrelevante quanto o seu destino. O que interessa ao cineasta são as trajetórias que estas executam e os encontros que têm pelo caminho, com as suas hesitações, reviravoltas e passos em falso. Por isso, Rivette leva o seu tempo até estabelecer as regras dos jogos de sedução que tecem a teia de intrigas de Haut bas fragile.
Assim, ainda que a música e a dança ocupem um lugar central no mundo noturno que Ninon frequenta desde o início do filme, e no qual convergem as várias personagens, a primeira vez que os diálogos derivam em canções e que os gestos se tornam passos de dança amadores, o espectador é apanhado desprevenido, tanto essa transição é prolongada no tempo e desencadeada com uma fluidez lógica e natural. Efetivamente, todo o filme explora esse momento liminar da comédia musical em que se opera a passagem da vida quotidiana para o mundo do espetáculo ou da fantasia, como observa Gilles Deleuze:
É o movimento de verdade em que o dançarino, já sonâmbulo, ainda está empenhado, mas que vai ser possuído pelo movimento que parece chamá-lo: encontramo-lo em Fred Astaire no passeio que, insensivelmente se torna dança (The Bandwagon [A Roda da Fortuna, 1953] de Minnelli) assim como em Kelly, na dança que parece nascer da desnivelação do passeio (Singing in the Rain [Serenata à Chuva, 1952] de Donen). Entre o passo motor e o passo de dança, há por vezes o que Alain Masson chama um ‘grau zero’, como uma hesitação, uma discrepância, um retardamento, uma série de pequenas falhas preparatórias (Follow the Fleet [Siga a Marinha, 1936] de Sandrich), ou, pelo contrário, um brusco nascimento (Top Hap [Chapéu Alto, 1935]).
Ora, enquanto que a economia narrativa das comédias musicais clássicas implica que esse momento de transição dure apenas alguns instantes, Rivette prolonga ao máximo o movimento banal que precede e conduz à dança… a tal ponto que o primeiro momento musical simultaneamente dançado e cantado surge quase uma hora após o início do filme! Trata-se de um pas de deux entre Ninon e Roland no atelier deste: a coreografia minimalista é composta por uma sucessão de poses estilizadas, orbitando em torno um do outro. Outros duetos se produzirão nas cerca de duas horas restantes: é através da música e da dança que emerge uma aliança inesperada entre Ninon e Louise, e que mais tarde esta última cai nos braços do misterioso jovem que a espia no seu dia-a-dia; só Ida se mantém à parte, mas até o seu número musical é um dueto com o seu próprio reflexo no espelho. Em termos mais globais, todo o filme de Rivette pode ser situado nessa espécie de “grau zero” da comédia musical a que se referia Deleuze reportando-se a Masson.
Segundo o próprio cineasta, Haut bas fragile teve por modelo as pequenas produções da Metro Goldwyn Mayer dos anos 1950, em particular a comédia musical Give the Girl a Break (Casanova Júnior, 1954) de Stanley Donen, filmada em relativamente pouco tempo, com números musicais simplificados e aproveitando cenários já construídos para minimizar os custos. Porém, o respeito de Rivette pelas durações reais e pelos momentos vazios, bem como a simplicidade das performances cantadas e dançadas, seriam impensáveis num musical clássico, mesmo menor, produzido pela MGM, nos anos 1950.
Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que Rivette não pretendeu nunca realizar uma comédia musical à Hollywood, nem mesmo à Jacques Demy. O seu filme propõe menos uma viagem nostálgica a um passado idealizado, do que uma alternativa à aceleração da sociedade a partir dos anos 1990 (evocada pelo nome da empresa de entregas ao domicilio onde trabalha a personagem de Nathalie Richard, Vitébien, “rápido e bem”). Praticante de um “cinema-in-progress“, assente no trabalho de improvisação com os atores e num exercício de observação demorado sobre o mundo que o rodeia, o cineasta concebe o seu filme como um corpo orgânico, autónomo mas imperfeito; um corpo que sente o chamamento da dança mas, ao invés de se precipitar numa coreografia pré-estabelecida, improvisa uma curva subtil no espaço-tempo; um corpo anónimo que percorre Paris “de alto a baixo” e que recebe de braços abertos todos os encontros que a cidade lhe propicia, mesmo que estes se revelem ser becos sem saída.
Por tudo isto, quem critica o filme pela sua longa duração, pelo amadorismo das performances ou pelas intrigas deixadas em aberto, só pode ter passado ao lado da essência do cinema rivettiano e desta obra em particular: Haut bas fragile é, assim, a prova de que os passos em falso e as deambulações são, ainda e sempre, matéria de vida e matéria de cinema.