Os nossos walshianos choram a morte de uma das maiores divas do cinema moderno. O seu rosto era enigmático, desenhado por Deus, numa noite de inspiração como teve poucas. E depois, pela mãos dos mestres italianos, em que se destaca, naturalmente, Michelangelo Antonioni, o anjo ganhou asas de pedra, caindo num impasse existencial que tanta tinta fez correr – Vitti e a sua extasiante beleza, e o seu olhar combativo. Mas há ainda a faceta cómica de Vitti a recordar, a celebrar e a descobrir. Esta homenagem não exclui nenhum dos rostos desta magnífica actriz que partiu.

Foi comovente, quase pungente, passear pela rede social no dia 2 de Fevereiro, onde tantos partilharam memórias de encontros com Monica Vitti. Também aí deixei o último e ainda fresco encontro com ela, em Camera d’ Albergo (1981) assinado por Mario Monicelli, divertida e irónica antecipação do big brother e da televisão de Berlusconi, que haveria de moldar a Itália das gerações seguintes. Comédia à italiana, em que dois jovens realizadores se propõem revolucionar o cinema espreitando um quarto de hotel, por onde passa Vitti, dividida entre a volúpia e uma relação apontada ao matrimónio. O que consegui assinalar, então, foi a versatilidade da actriz, uma das grandes figuras da comédia, que para muitos de nós fora durante muito tempo “apenas” a intérprete de Michelangelo Antonioni.
Marquei um reencontro com ela, pensei em L’eclisse (O Eclipse, 1962), que a memória me dizia que tinha sido a nossa primeira vez. Mas, as várias passagens por lá deixaram-me recordações ainda vívidas: o ruído da bolsa e da modernidade a impedir a comunicação entre Vitti e Delon, que Antonioni traduzia na última sequência, em que o encontro entre os dois era substituído pelas ausências, por lugares, por planos-sequências preenchidos de paisagens de ruas quase desertas, pontuados por copas de árvores e água a vazar de reservatórios, por fachadas geométricas de blocos de apartamentos e passadeiras iluminadas por candeeiros que testemunhavam o passar do tempo, o cair da noite.
Optei, então, por L’Avventura (A Aventura, 1960), onde Lea Massari desaparece numa ilha, talvez a concretizar o que dissera a Monica Vitti ainda em terra, que há mais virtudes que problemas em relações afectivas assentes na distância e na separação. No desaparecimento de Massari, Antonioni deixa-nos durante largos minutos ainda na ilha, para depois a desorientação se estender para terra, com diálogos e acções que nada resolvem. Vitti é a única que escapa a uma aristocracia corrupta e tomada pelo tédio, e o seu rosto será o protagonista de uma aventura sentimental, numa viagem entre a jovialidade inicial e a melancolia. A sua Claudia terá de acomodar a perda de Anna (uma das suas melhores amigas), enquanto sustém os avanços de Sandro (companheiro de Anna), que rapidamente vê nela uma opção de troca, para mais tarde lidar com a culpa de partilhar Sandro com o fantasma de Anna. E se o cinema dos lugares de Antonioni parece corroborar com a ideia do arquitecto Sandro de que agora se constroem edifícios para 10 ou 20 anos justapostos ao edificado da antiguidade, as linhas que o júri do Festival de Cannes juntou ao prémio atribuído ao filme permanecem: “(…) por uma nova linguagem cinematográfica e pela beleza das suas imagens”.
Vítor Ribeiro

É na sua configuração jovem que, habitualmente, os rostos de actrizes se cristalizam na memória colectiva. Já eu acarinho o hábito de passar muito tempo a olhar para fotografias das minhas actrizes depois de ter passado o período áureo (em termos cinematográficos) das suas vidas. Algumas destas mulheres, como Jeanne Moreau ou Bulle Ogier, continuaram a fazer filmes até à idade madura, e, por conseguinte, ficaram-nos muitas imagens—tanto fixas quanto móveis—dos seus rostos envelhecidos. Outras, como Delphine Seyrig ou Romy Schneider, morreram antes de as marcas do tempo nos seus rostos poderem ser captadas por uma objectiva. Outras, ainda, como Setsuko Hara, viveram por muitos anos depois de abandonarem a profissão, sem que, porém, tenham sido tornados públicos registos dos seus rostos velhos.
Este é, também, o caso de Monica Vitti. Morreu com noventa anos, e é como se, para nós, nunca tivesse passado dos quarenta. Porque mantenho este gosto especial pela velhice das minhas actrizes, perturba-me não conhecer o rosto enrugado de Vitti. Por outro lado, conforta-me saber que terei, durante os cinco, dez, vinte, trinta anos que me restam, acesso permanente a pelo menos uma mão cheia de filmes em que a Vitti se pôde imortalizar numa juventude moderna e vibrante. Que era das mais belas, todas sabemos. Que tinha uma das vozes mais singulares, também é de conhecimento comum. Mas o que poucas vezes se refere é que o riso de Monica Vitti é um dos mais felizes acontecimentos que uma câmara já teve a oportunidade de captar.
José Bértolo

Acho que foi Richard Peña, em um comentário de áudio da Criterion para L’eclisse (O Eclipse, 1961), que nos chamava a atenção para a percepção atenta e atenciosa de Monica Vitti na “trilogia da incomunicabilidade”, percepção esta na minha opinião disléxica que se apropriava pouco a pouco do mundo (mas jamais totalmente, pois porosas e abertas permaneciam a inquietação hermenêutica e o espanto epifânico, implicadas todas por uma infantil curiosidade em conhecer aquilo que se dava através de seus olhos inquietos). La Vitti sempre foi este olhar audaz que se lançava no mundo de esguelha e na ausculta de um possível, mas geralmente improvável, estreitamento identificatório com ele, fusão ou unção extática. O que Vitti buscava, nestes filmes transcendentais sobre o ato de perceber percebendo com atenção de prece natural da alma (Malebranche), era talvez um espelho, uma experiência a partir dos limiares ou superfícies sempre, mas o mundo sempre recuou e exigiu uma atenção redobrada, e ei-la em outro assalto para frente e para sempre, tentando sempre e ainda captá-lo sem, no entanto, jamais possuir a pretensão de capturá-lo, porque o que estava em jogo nos filmes de Antonioni capitaneados por ela era justamente esta irredutibilidade do imponderável do mundo às suas lindas e torneadas mãos de musicista polonesa: nec plus ultra; esta impossibilidade, erógena como a noção de fresta cintilante de Barthes, este flerte convulso e por natureza inconcluso com o mundo, que ocasionalmente se encarnava nos entes masculinos Alain Delon ou Rabal, mas que era antes de tudo um tratado fenomenológico sobre as inúteis mas belamente coreografadas tentativas de uma mulher de se apropriar do mundo, de imprimir sobre ele a empreinte (de vérité, mas também de ruse, de estratagema voluptuoso) de suas pegadas.
Em L’eclisse, talvez meu filme favorito da trilogia, ela se dá ao trabalho e ao luxo (mais-valia do investimento libidinoso escópico) de seguir pela cidade um banqueiro arruinado pelas oscilações da Bolsa, observá-lo desolado a fazer contas e beber uma Perrier num bar à esquina, para logo depois de sua partida se apropriar do bilhete escrito e tocado pelo homem, lavrado por sua presença. Sim, talvez isso: Vitti foi aquela presença, atenta e atenciosa, que lavrou com sua luxuriante percepção a todos os espaços atônicos e reservados dos filmes neutros em aparência mas ressoantes de profundas inervações mediúnicas de Antonioni: um sismógrafo encarnado da alma e dos lugares onde esta habitou.
Luiz Soares Júnior

E se a esfíngica Monica Vitti dos filmes de Michelangelo Antonioni fosse, afinal, uma fogosa e estrambólica actriz de comédias? Podia ser boutade, mas não é. Para o bem e para o mal, Monica Vitti está cristalizada no imaginário do cinema europeu do pós-guerra como essa figura queer (no sentido original do termo e, quem sabe, até nos que lhe sucederam), alienígena, inalcançável. Um ser de quem o espectador nunca compreende exactamente em que medida a sua alienação é motivada “apenas” por razões do foro psíquico ou se há algo mais, um mal de vivre existencial que, não se encaixando inteiramente nos parâmetros da patologia médica, parece dialogar com outras realidades (espirituais? Transcendentais? Muda, a esfínge…). E, porém, se perguntarmos por Vitti aos italianos comuns que tenham frequentado os cinemas do seu país nas décadas de 60-70-80, eles falar-nos-ão justamente dessa tal fogosa e estrambólica actriz de comédias – falar-nos-ão de Alta infedeltà (1964), Il disco volante (1964), Le bambole (Quatro Casos de Amor, 1965), Ninì Tirabusciò, la donna che inventò la mossa (1970), Gli ordini sono ordini (Golpe de Ancas, 1972) ou Io so che tu sai che io so (1982). Ou de Dramma della gelosia (tutti i particolari in cronaca) (Ciúme, ciúmes e ciumentos, 1970) de Ettore Scola, que abordei a latere num outro texto desta casa. São apenas exemplos de um acervo cómico imenso. Se o nosso interlocutor for um italiano comum nascido nos anos 90 em diante, então – experiência própria – ele nada nos dirá. Sobre Vitti, Antonioni, sobre a era dourada do cinema do seu país (da mesma forma, sejamos justos, que o português médio dessa mesma geração coisa alguma terá a dizer sobre Manoel de Oliveira que não a sua provecta e castiça idade). O que diz algo (ou tudo) acerca da relação entre o cinema (a sala de) e o espectador dos últimos 30, 40 anos. E, porém, gente não falta (não a comum, a cinéfila mesmo) a assegurar-nos de que, enfim, problema algum existe com o cetrimingue, o que interessa verdadeiramente são os filmes onde quer que eles possam ser vistos. Dizem-no porque, inconscientemente, a sua funda crença é a de que as salas nunca desaparecerão; veremos o que dirão quando, se, um dia tal vier porventura a acontecer. Podemos ouvir já os ecos das elegias mais solenes, mais revoltosas…
Digamo-lo de forma clara: Vitti foi uma grandiosa actriz cómica (Claudia Cardinale, embora sem o mesmo brilho, é outro exemplo de uma actriz que a cinefilia guarda na memória como a actriz de filmes “sérios”, “autorais”, mas que também protagonizou diversos papéis cómicos). Aliás, dá-se o caso de as personagens que desempenhou nos filmes de Antonioni conviverem, no mesmíssimo período (no mesmíssimo ano, até!), com as personae cómicas dos “outros filmes”. Podemos, pois, imaginar que o espanto de um espectador que saísse da sala de Il deserto rosso (Deserto Vermelho) no ano de 1964 e no dia seguinte visse a mesma Vitti em Il disco volante tenha sido da mesma ordem de grandeza daqueloutro que pela primeira vez testemunhou o som da voz de Greta Garbo em Anna Christie (1930) (“Garbo Talks!”, exortavam os posters promocionais ao filme)…
As personagens que Vitti interpreta em muitos dos filmes italianos dos 60-80, frequentemente ladeada por outros grandes actores e actrizes da commedia, partilham quase sempre de duas ou mais destas características: divertidas, despropositadas, inteligentes, feministas (sem que isso naturalmente implique os actuais puritanismos woke da “sexualização do corpo” e afins), livres, sensuais, sexualmente desassombradas e politicamente (lato sensu) questionadoras, cáusticas, repentinas, ternurentas, enérgicas (quando não em esteróides). Isso mesmo se podendo até constatar naquela que é uma das raras comédias [outra é La femme écarlate (Dilema de uma Mulhver, 1969)] por si protagonizada fora de Itália, o falhado Modesty Blaise (A Mulher Detective, 1966), de Losey.
As Feiticeiras (Le Fate, 1966) é um exemplo, entre muitos, que poderíamos aqui trazer. Insere-se num tipo de produção então muito em voga no cinema europeu (Itália, Inglaterra, França) que consistia no convite a 3 ou 4 realizadores diferentes (mas com afinidades) para realizarem pequenos filmes (médias-metragens, normalmente à volta dos 30 minutos) sob um motto comum (geralmente, humorístico). Neste caso, nada mais, nada menos do que Mauro Bolognini, Mario Monicelli, Antonio Pietrangeli e Luciano Salse. No cast, além de Vitti (protagonista do segmento “Fata Sabina”, assinado por Salce), pontificam, entre outros, Cardinale, Raquel Welch, Alberto Sordi, Jean Sorel [o marido de Deneuve em Belle de jour (A Bela de Dia, 1967)]. Pela sua parte, Salce faz uma coisa muito démodé, hoje passível de gerar os mais siberianos opróbios: brincar com coisas sérias. Por outras palavras, um filme a que as brigadas censórias dos nossos dias chamariam um figo. Em traços simples, o filme inicia-se com Vitti num repelão fugindo de um homem que a quer violar num bosque; a certa altura, um carro passa e Vitti, chamando por socorro, é salva pelo condutor. Aproveita a boleia (e um gelado de baunilha e limão) e, às preocupadas perguntas do socorrista sobre o sucedido, vai reproduzindo oral e visualmente – com muito, muito pormenor – como tudo aconteceu: que veio de uma festa para a qual usou aquele vestido muito curto, que apanhou boleia de um desconhecido bem apessoado (“Diplomata!”) que aí havia conhecido, que rebateu o banco de passageiro para trás de forma vagarosa, que… Não saberemos mais porque a reconstituição dos factos de Vitti é tão exacta (libidinosa) – deliberadamente ou não, o espectador que se desemalhe – que o seu salvador vira predador e o e no plano seguinte já o estamos a ver a reproduzir a perseguição no bosque do início do filme. O terceiro acto arranca da mesma forma: Vitti novamente salva por um condutor de passagem, de quem volta a aceitar boleia. A meio do caminho até Roma – a estrada, sempre a mesma, sem carros e ladeada por graciosas árvores cuja forma, semelhante a um cogumelo, vai para além do mero “fálico” –, o condutor estaciona momentaneamente para fazer um telefonema. Sem que ele se aperceba, Vitti aproxima-se da cabine e escuta a conversa. Promessas de amor, sussurros de prazer, lascívia que não acaba… Quando se apercebe da sua presença, o homem prossegue a conversa olhando Vitti directamente nos olhos, insinuando-lhe as mesmas palavras que são ouvidas pela pessoa do outro lado do telefone. Quando a chamada termina, Salce corta para o bosque e quem agora persegue ferozmente este desgraçado homem é ela mesma, Vitti em pessoa… Che figata!
Devo a Monica Vitti – a ela e a Michelango Antonioni – o meu verdadeiro mergulho no cinema. A sua presença como coisa consciente e obsessiva na minha vida. La Notte (A Noite, 1961), cuja capa do DVD na prateleira de casa dos meus pais há muito me inquietava, foi o portal. Jamais esquecerei. E não descanso enquanto não vir o (único) filme que Vitti realizou, em 1990 (há outro realizado para a televisão em 1983, espirituosamente intitulado La fuggiDiva). Chama-se Scandalo segreto e reza assim: “… While reviewing her video diary, a woman finds footage of her husband cheating on her with her female friend. In desperation, she contemplates suicide, but her male film-director friend suggests that they make an actual film about her”… Hitchcock [imagino os filmes que Marnie (1964) ou The Birds (Os Pássaros, 1963) poderiam ter sido com Vitti no lugar de Tippi Hedren] e Antonioni rondam por aqui, claro. Devo-lhe muito, imenso. A minha vida tomou literalmente outro rumo depois de ver um filme consigo. Chamava-se Valentina e deslizava deitada, cabeça levantada e olhar em frente, por um tabuleiro de xadrez. … E ainda nem sequer disse que é a segunda actriz mais bela da história do cinema.
Grazie mille, tesoro.
Francisco Noronha