O essencial é que toda a diferença entre ficção e vida quotidiana se apaga. Lá (na América), até a Literatura e o Cinema, a ficção do ecrã, fazem parte do continente.
Jean Baudrillard
Depois de um percurso de curtas-metragens, 1957 foi o ano em que Robert Altman se estreou nas longas, com um gang juvenil em Kansas City – The Delinquents, e com o documentário The James Dean Story, montado em cima da morte trágica do actor e da estreia de Giant (O Gigante, 1956). Os restantes anos 50 e 60 seriam de trabalho intenso na televisão, em séries como Alfred Hichtcock Presents ou Bonanza. É bastante curioso, então, esse inicio de filmografia de Altman, à volta da inquietude da juventude e do star system, ele que seria uma das figuras de proa da Nova Hollywood, um dos mavericks que destronou a Hollywood clássica, que substituiu esse modus operandi por outras formas de produção e de experimentação, onde o realizador forçava a condição de autor, também à boleia das novas vagas que chegavam da Europa. Esta condição, que da parte de Altman chegou com M.A.S.H. (1970) e McCabe & Mrs. Miller (A Noite Fez-se para Amar, 1971) duraria uma década até ao edifício ruir com Heaven’s Gate (Às Portas do Céu, 1980), de Cimino, sendo que Altman também foi arrastado pelo furacão, no mesmo ano, com o incompreendido Popeye (1980). O insucesso desse filme levou-o a uma sabática em Paris e uma década a penar em pequenos projectos, como o outro filme que abordaremos nesta crónica, Secret Honor (1984), rodado com o apoio da Universidade de Michigan – onde Altman leccionava – e a colaboração dos alunos do cineasta.
O narrador de The James Dean Story informa que o filme foi construído a partir de registos pré-existentes e de que os personagens se representam a si mesmos, nessa procurar de dissecar a curta biografia do actor, de separar a lenda da realidade, privilegiando os depoimentos de pessoas com quem Dean se cruzara. Encontramos, então, os tios com quem viveu em Fairmount (Indiana) até aos 18 anos, depois de ali ter chegado nove anos antes num comboio que também trazia o corpo da mãe dentro de um caixão. O documentário baliza, depois, um percurso já conhecido de Dean, numa primeira fuga para Los Angeles e para a UCLA, que seria apenas um intermezzo até às ruas, os lugares, as pessoas e os cinemas de New York, onde matava o tempo e fitava a fachada e os nomes escritos em néon, um lugar para onde ele ascenderia em breve.
Hollywood seria o próximo e o mais perigoso campo de batalha, onde tudo podia ser corrompido e destruído. Elia Kazan tinha pensado em Brando, em Montgomery Clift, em Paul Newman, mas talvez se tenha recordado da passagem fugaz mas ruidosa de Dean pelo Actors Studio: o actor era, desde logo, o protagonista de East of Eden (A Leste do Paraíso, 1955), e tal como Cal, era solitário, desconfiado, até vingativo, na forma como lidava com as peças desgastadas pela sua memória, pela perda precoce da mãe. Esse vínculo com o personagem prolongou-se em Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, 1955), onde podia expressar com brado o que até aí ocultara com receio de ser magoado, mas onde emergiria outro paradoxo: o temor de que fosse um vazio, alguém que só poderia existir, constituir um interesse para os outros, nas luzes projectadas no ecrã.
Cronenberg encenou o acidente fatal de James Dean como um espéctaculo clandestino, numa estrada ladeada por um bosque saído do orwelliano 1984, onde o funcionário Winston se ocultava para ler e sonhar.
Mas são os primeiros cinco minutos de The James Dean Story que o tornam uma peça documental notável, como um pedaço eloquente da história de Hollywood e como demonstração da noção ballardiana de media landscape de que falávamos na crónica anterior. Depois de um genérico em que um cordel descontrolado dá lugar, através do raccord do som de um motor, a um automóvel numa estrada a preto e branco, há uma data que assoma no ecrã – 10/SET/1955 e uma voz, que narra de forma solene: “James Dean morreu hoje”.
As imagens seguintes documentam a estreia de O Gigante, uma estreia evidentemente mais poderosa devido à morte de James Dean, que cimenta o acidente de automóvel como algo fertilizante, na criação de um mito, em cima das cinzas de um semideus, conforme o enunciado de J.G. Ballard em Crash, romance de 1973, que David Cronenberg adapta para cinema em 1995. A rua, em volta daquela fachada forrada a néons que desenham os nomes dos actores, está tomada por uma multidão de fiéis em delírio de gritos e gargalhadas, uma catedral a céu aberto, como uma celebração de umas exéquias estendidas por um ano, a contar da morte do actor numa colisão de dois automóveis, quando Dean conduzia o seu Porsche 550 Spyder num solitário troço de estrada de duas faixas na Califórnia.
O star system esteve bem representado: o então casal Natalie Wood e Dennis Hopper (que participaram do elenco de Fúria de Viver, sendo que Wood foi seleccionada por Nicholas Ray depois de um médico a ter designado por delinquente juvenil na sequência de um acidente de automóvel em que ela seguia embriagada), Rock Hudson (rival de Dean em O Gigante); até que sai de uma limusina uma loira platinada, que a princípio pensamos ser Marilyn Monroe, mas que é afinal Jayne Mansfield, outra das protagonistas do calendário de colisões automóveis do panteão de Hollywood.
No interior da sala de cinema, de cada vez que o rosto de Dean enchia o ecrã nos close-ups de George Stevens, o público ovacionava, como um espéctaculo em que se celebrava a superação da morte, a transformação de um sujeito, um individuo, em objecto de desejo, resgatado para sempre do outro lado do espelho. A narração de The James Dean Story é um epitáfio, mas escrito no ecrã como um coro devoto de centenas de vozes de jovens que se afirmavam herdeiros daquela energia, daquela revolta, expressa no modo de vestir e de procurar respostas impossíveis de encontrar: “Eles criaram-no e eles não o deixarão morrer. Para o manter por perto, converteram-no numa lenda”.
Cronenberg encenou o acidente fatal de James Dean como um espéctaculo clandestino, numa estrada ladeada por um bosque saído do orwelliano 1984, onde o funcionário Winston se ocultava para ler e sonhar. Vaughan murmura – “o ano… 1955, o dia… 13 de Setembro, a hora… agora”. Crash desenrola-se num emaranhado de desafios morais e paródia, mas trabalha o simulacro como algo mais poderoso do que o acontecimento, uma réplica que garante a singularidade do evento.
Depois de apresentar os três interpretes, condutores e passageiros dos dois automóveis – o estudante Donald Turnupseed que regressava a casa em Fresno, o mecânico Rolf Wutherich que assessorava Dean, a caminho de uma corrida de carros em Salina (Califórnia) – Vaughan informa a comunidade: “eles não usam capacetes, nem qualquer género de protecção de segurança, os carros não estão equipados com gaiolas nem cintos, confiam unicamente na capacidade dos condutores, para garantir a segurança e para oferecer a suprema autenticidade”. Os automóveis arrancam e o “Little Bastard”, o Porsche de corrida de Dean, embate com estrondo no outro automóvel. Fumaça liberta-se dos automóveis, são corpos metálicos vivos que soltaram das entranhas um dos maiores mitos da paisagem do século XX. Vaughan, que interpretara o mecânico, arrasta-se da carcaça amolgada e murmura: “Rolf Wutherich foi projectado do Porsche…e passou um ano no hospital…a recuperar das lesões. Donald Turnupseed foi encontrado a vaguear pela zona, mas praticamente incólume. James Dean partiu o pescoço, morreu e tornou-se imortal”.
Jayne Mansfield, que encontramos, então, na estreia de O Gigante, foi uma das actrizes mais populares de Hollywood nos anos 50, olhada mais como símbolo sexual, uma playmate, do que como uma actriz de composição, na sombra de Marilyn Monroe, como se exemplifica talvez na que será a sua interpretação mais recordada, em The Girl Can’t Help It (Uma Rapariga com Sorte, 1956), de Frank Tashlin, em que contracenava com Tom Ewell, que no ano anterior tinha sido o vizinho de baixo de Monroe em The Seven Year Itch(O Pecado Mora ao Lado, 1955), de Billy Wilder.
“Depois de ter sido interminavelmente bombardeado com propaganda de segurança rodoviária, é quase um alívio ter estado eu próprio envolvido num acidente”
O que rendeu, então, a imortalidade a Mansfield foi a morte num violento acidente de automóvel em 1967, quando a sua carreira estava em notória decadência, aos 34 anos. A colisão frontal do Buick Electra da actriz com um camião numa madrugada em Louisiana matou Mansfield, o motorista e o namorado, tendo poupado os três filhos que seguiam no banco traseiro. Este acidente terá sido uma das coordenadas fundamentais para Ballard trabalhar a ideia de media landscape que conduziu à escrita, primeiro do balão experimental Atrocity Exhibition (1970), a que se seguiu três anos depois Crash, num registo mais próximo do romance. O Crash de Cronenberg também guarda uma das sequências para Mansfield: o duplo e antigo piloto Colin Seagrave, que conduzira a réplica do Porsche de Dean, antecipou-se ao estratega Vaughan, que já o encontrou envolto em pedaços de vidro e sangue nos estofos, a mimetizar Mansfield, na sua habitual indumentária cor de rosa, com um generoso decote.
Há pelo menos uma outra rima entre The James Dean Story e Crash. No documentário, Altman recupera a participação de Dean numa campanha de prevenção rodoviária, dias antes do acidente fatal. Dean diz que o seu Porsche alcança os 170 km/h, que as corridas de automóveis são perigosas, mas prefere arriscar na pista do que nas estradas, para concluir com um conselho para os jovens: conduzam com cautela. Num dos seus saltos morais, o Ballard escritor coloca o protagonista James (com quem partilha o nome) deitado na cama do hospital do aeroporto após a primeira colisão de Crash. Em conversa com a mulher, Catherine, diz-lhe: “Depois de ter sido interminavelmente bombardeado com propaganda de segurança rodoviária, é quase um alívio ter estado eu próprio envolvido num acidente”.
Este filme é uma meditação ficcional à volta dos acontecimentos da história de Richard M. Nixon, que surge representado no filme. A imaginação do drama criou alguns acontecimentos fictícios num esforço para iluminar o personagem Nixon. Este filme não é um trabalho histórico ou de recreação da História. É um trabalho de ficção, usando como um personagem de ficção um personagem real, o Presidente Richard M. Nixon, numa tentativa de a perceber.
Nota introdutória a Secret Honor
No ano anterior a Secret Honor, Robert Altman, também na adaptação de um texto dramatúrgico, encenou Streamers (1983), colocando quatro homens num contentor, na porta de embarque para o Vietname, a lidar com tensões racistas e homofóbicas. Baseado em Secret Honor, the Last Will and Testament of Richard M. Nixon, um filme encenado também em apenas um espaço, com parcos recursos, procurando aclarar e compreender Nixon, um dos vilões da História da política americana, um dos rostos da guerra do Vietname, por entre várias máculas.
A nota introdutória ao filme, calha bem ao paralelo com as paisagens de Ballard, que orientou uma boa parte da sua obra na procura de iluminar a sua biografia, perceber e seguir em frente, uma catarse como a que Altman oferece a Nixon, conduzida por Philip Baker Hall que para lá de impersonator, mimetiza o político, quando este acabara de renunciar à presidência dos EUA. O subtítulo de Secret Honor – a political myth – também alinha com as paisagens dos media, um simulacro da actuação de um político, espécie de arquirrival – adversário de acordo com a terminologia bíblica (o diabo), de John Fitzgerald Kennedy (JFK), figura maior do universo de mitos do século XX, partilhada por actores como James Dean, como uma actualização do Monte Rushmore, escarpa no Dakota do Sul, esculpida entre o final dos anos 20 e os anos 30, dos rostos de quatro presidentes iconoclastas da América.
Aparentemente, Secret Honor é uma inversão de James Dean Story. Aí uma lenda, um jovem idolatrado, um morto na aceleração da juventude, projectava-se para sempre no firmamento dos ecrãs; aqui, um homem caduco, derrotado, humilhado e corrupto projecta-nos o seu interior caótico.
As primeiras imagens de Secret Honor apresentam um conjunto de monitores ligados a câmaras de vigilância, que traçam um percurso desde o exterior, passando por corredores, onde há-de aparecer Nixon, a inaugurar o simulacro. Na sala, os primeiros objectos a que o intérprete se dedica são uma garrafa de whisky, uma câmara pronta a filmar e um revólver carregado, que estabelece, desde logo, uma relação de uma História de violência a uma saturação das imagens, que neste período era algo já muito presente no quotidiano das famílias americanas, que recebiam pela televisão as imagens de violência e de morte dos seus jovens no conflito do Vietname. Outro objecto, que Nixon começa a manusear, é um gravador de cassetes áudio, que relata o acto de gravação que é também retórica de ficção, mas que revela da parte dele uma evidente falta de jeito no domínio do dispositivo, como se isso fosse uma metáfora, uma extensão da falta de tacto político na relação com o povo americano, de um dos mais longos percursos na politica do século XX. Essa obsessão pelo registo é evidente pois, a cada cinco minutos, Nixon deixa instruções no gravador para que um dos seus acólitos apague toda ou quase toda a gravação, como se aquelas acções lhe pudessem permitir refazer toda a biografia e a História da América.
Kissinger, os seus antecessores na Casa Branca, a vitória esmagadora na sua eleição de 1972 (apenas derrotado em um dos estados), ou os “grandes líderes” Castro e Mao, tudo é convocado para a argumentação de Nixon perante um juiz imaginário, mas com um assunto como eixo: o escândalo Watergate, o assalto em 1972 ao edifício-sede dos Democratas por um grupo afecto a Nixon, desmascarado pelos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, que rendeu um dos grandes filmes políticos da Nova Hollywood, All the President’s Men (Os Homens do Presidente, 1976).
Diz-se condenado sem ter sido julgado, que foi tudo uma farsa, pois concederam-lhe um indulto, sem ter havido uma condenação. Ficou, então, num limbo: nem perdão, nem castigo, forçado a um tormento, a bem da nação. Lembramos, então, que na sequência do dilúvio da paisagem dos media, com permanentes revelações sobre Watergate a aparecerem em jornais, revistas e televisão, Nixon na eminência de um processo favorável ao impeachment resignou à presidência em Agosto de 1974.
Numa sala pontuada pelos quadros com os retratos dos presidentes, como posters no átrio de uma sala de cinema, JFK é uma presença recorrente no discurso incoerente de Nixon, que equipara o seu caso ao Relatório Warren – o assassinato do seu rival em Dallas e o consequente benefício da liquidação de Oswald por Jack Ruby: se toda a verdade fosse revelada, o povo americano não aguentaria, por isso ele ficará condenado a um labirinto, que ele próprio teceu, dependurado na obsessão de um perdão impossível de alcançar. Recorda a derrota em 1960 (nas eleições presidenciais, depois de ter sido vice de Dwight D. Eisenhower), sonegada pelos Kennedy, que aparecem sempre como uma oposição: John era bonito (aquele cabelo…), elegante (as mulheres saltavam como doidas à sua volta), participava do estrelato de Hollywood, partilhava Monroe com Sinatra. E gritará que apesar da popularidade dos Kennedy é ele, Richard, o coração da América, pois perdeu todas as batalhas sem perder a guerra, é o verdadeiro representante do povo, é o sistema, e por isso não pode ser o pesadelo da América, nem um simples underdog, quando comparado com os príncipes Kennedy.
A gramática de Altman acompanha os movimentos ferozes e as mudanças de tom de Nixon, para depois o replicar em todos os monitores, com alterações subtis nos enquadramentos, através da montagem ou de zooms vagarosos. Ele gesticula, por vezes de costas para a câmara. A constante presença dos monitores permite, em simultâneo, a variação de pontos de vista, de ângulos, mas também a indicação de que as câmaras, as imagens, cercam os mitos da América, passam a constituir a sua verdade, uma hiper-realidade: as imagens devolvidas pelos ecrãs acentuam a ideia de simulacro, de sobreposição de ficções. Os movimentos de corpo de Nixon que terminará os 90 minutos de filme exaurido, da secretária para o piano, são socorridos de whisky e viagens no tempo, com transições abruptas entre passado recente e longínquo, que desliza para a infância, para a universidade e o oficio de advogado, sempre à procura de um Nixon vencedor que nunca se confirma.
Uma biografia que é História da América, mas também narrativa individual, de memórias e frustrações, que impedem o desenho de um monstro: quando o vemos a folhear um álbum de fotografias, pensamos – dir-se-ia que até Nixon é humano. Mais do que a podridão de um homem corrupto, uma frustração quase infantil de um destino por cumprir; ou antes, uma frustração por um destino que nunca poderia estar ao seu alcance, uma vez envolto em corrupção só poderia participar da construção de uma nação corrupta e, assim, todos participaram, também, da ruína dele. Esse turbilhão incoerente de argumentos, de insultos aos seus adversários, de laivos de racismo e homofobia, apenas cessa nas recordações da mãe, espécie de referência que o pacifica por escassos momentos, quando o olhar dele encontra o seu pequeno retrato entre os posters dos presidentes.
Aparentemente, Secret Honor é uma inversão de James Dean Story. Aí uma lenda, um jovem idolatrado, um morto na aceleração da juventude, projectava-se para sempre no firmamento dos ecrãs; aqui, um homem caduco, derrotado, humilhado e corrupto projecta-nos o seu interior caótico, que a princípio pode causar repulsa, mas em que se destapa uma possibilidade de revelação da natureza humana, como Altman também procurara na biografia de Dean. Um professor de Nixon no liceu dizia que ele era o Hamlet mais melancólico que ele encontrara. Nessa existência, nesse espectáculo que é a cabeça transtornada de Nixon, coexistem uma peça de teatro, uma soap opera, uma tragédia humana, um filme no ecrã gigante de Hollywood. A única forma de contar a História da América, ou pelo menos a mais verdadeira, é através da ficção.