De pura água um ribeiro, de poucas jeiras um bosque,
E uma segura fé na minha colheita […]
Horácio, em Odes
As duas séries de crónicas anteriores ― Se confinado um espectador e Do álbum que me coube em sorte, estabelecendo uma remissão expressa para «o cinema como metamorfose da experiência interior», já indicavam que, na origem de semelhante empreendimento se encontrava, naturalmente, essa modalidade de experiência a que, na sua singular forma de ocupação criativa do tempo, o espectador se entrega ao ver um filme, confiante na satisfação que a animação da «hora e meia de solidão especulativa» traz consigo e que as subsequentes investigações mais ou menos subterrâneas prometem acrescentar.

Sem que se trate agora de pôr de parte os traços das figuras do coleccionador, do pescador de pérolas e do rebobinador, de que me fui socorrendo com o fito de procurar compreender melhor, isto é, dar vida à actividade desse espectador, a leitura de A Montanha Viva, de Nan Shepherd[i], levou-me a levantar a hipótese de haver uma outra figura que poderia juntar-se-lhe, a saber, a do alpinista, ou mais propriamente, a do caminheiro de montanhas. A metamorfose que nessa experiência de convívio com as montanhas pode ser antecipada consiste na passagem da gratificação advinda da sensação experimentada (com a altitude, a distância, o esforço, o bem estar) a um estado em que o interesse do caminheiro se foca na descoberta da montanha em si mesma (e já não através dos efeitos produzidos nele próprio), num longo processo em que «a coisa que se deseja conhecer cresce com o conhecimento», de tal modo que a montanha em si própria, tomando sempre novas qualidades, se apresenta, já não apenas como algo que o «prendeu para sempre», mas como algo a que ele mesmo pertence por inteiro, pois «à medida que penetr[a] mais profundamente na montanha, penetr[a] também mais na [sua] própria vida».
Virginia Woolf (…) formula a questão de fundo, e que ainda não deixou de ser crucial, nos seus exactos termos: «Se o cinema deixasse de ser um parasita, como faria para caminhar de cabeça erguida?»
Ainda que mais à frente se justifique melhor as razões, devo mencionar desde já a referência à variação acolhida no título genérico ― Entre o granito e o arco-íris ― desta terceira série de crónicas, em que, com maior precisão, se pretende cotejar as condições de possibilidade de levar uma vida cinematográfica. Em dois ensaios com o título de «A Nova Biografia» (1927) e de «A Arte da Biografia» (1939), Virgínia Woolf discorre sobre o que poderá vir a ser a arte da biografia que, estando no início de carreira, «tem uma longa e activa vida à frente», mas se vê afectada «por uma elevada taxa de mortalidade». Para atingir o objectivo tão precisamente definido, «a transmissão da verdadeira personalidade», trata-se de pensar como realizar a fusão entre a «verdade como algo de solidez granítica, e a personalidade como algo de intangível como um arco-íris». Em vez da modalidade de relação que noutro passo do ensaio é designada por «estranha amálgama» (de sonho e realidade), ou «casamento perpétuo» (do granito com o arco-íris), preferirei guardar alguma distância e, até prova em contrário, manter o «entre», sustentando a hipótese que é o que mais convém para atingir «aquele elevado grau de tensão que nos dá a realidade»[ii].
De cada vez que, perante o vastíssimo e multidimensional universo de imagens em que estamos banhados, de entre as fabricadas pela mão do homem, o comummente dito espectador, que reserva um lugar de eleição para as imagens cinematográficas, está a tomar à sua conta a incumbência, havendo a mesma de ser transposta para o cinema, que Virginia Woolf formulava relativamente aos livros, a saber, «Como Se Deve Ler Um Livro?»[iii]
De múltiplos géneros e diferentes durações, acessíveis em suportes físicos ou através de plataformas de streaming, os filmes potencialmente à disposição como é que eu os vou ver? «O que hei-de fazer para tirar deles o máximo prazer possível? E é prazer, ou proveito, o que devo procurar?»
Levando na devida conta que o título do ensaio de Virginia Woolf tem um ponto de interrogação no final, desde logo deixará de haver a veleidade de pensar que o seu objectivo fosse «ditar leis» sobre «como poderemos aprender a arte da leitura». Se cada um «já tem dentro de si o que vai fazer corresponder ao que lhe é dado pelo poeta ou romancista», a questão será como chegar lá, desde logo não esquecendo que há dois tempos na leitura. No primeiro, correspondendo ao acto de leitura propriamente dito, em que se requer uma atitude de «empatia e compreensão», a tarefa é seguir o autor lendo «o livro tal como o escritor o escreveu», aceitando que «se tentarmos acompanhar o escritor na sua experiência da primeira à última palavra, sem lhe impormos o nosso plano prévio, então teremos uma boa hipótese de agarrar a ponta certa da meada». No segundo tempo, que é o do processo da pós-leitura, não raras vezes na sequência da desorientação que sobrevém quando chegamos ao fim, ora porque diferentes passagens do livro disputam a primazia, ora porque aquilo que foi objecto da nossa maior atenção se esvanece diante dos nossos olhos, torna-se indispensável enveredar por outro caminho, até que «a fazer uma coisa diferente, o livro surge inteiro à superfície da mente», assumindo uma forma definida: é então que esse livro «bem claro, bem seguro e completo», suscitando em nós uma emoção profunda e duradoura, fica entregue à nossa própria opinião, num tempo que é de «crítica e julgamento». Afinal, o «prazer ― misterioso, desconhecido e inútil como é ― é quanto basta» para justificar o envolvimento na aprendizagem de uma actividade de que nada mais se retira e que até o mais sábio é incapaz de descrever, mas esse é um segredo cuja revelação Virginia Woolf deixou para as últimas linhas do texto: «a razão pela qual evoluímos […] não é mais do que isto: adorámos ler».
Poderá, com os filmes, não ser bem assim?
Virginia Woolf, num outro ensaio desta mesma época, a que deu o título de «O cinema» (1926)[iv], deixa uma primeira observação, segundo a qual «o olho lambe tudo num instante, e o cérebro, agradavelmente estimulado, acomoda-se e vê as coisas acontecer sem se dar ao trabalho de pensar». E mais à frente, depois de uma apreciação crítica relativa à forma como o cinema até então lidara com a literatura, ao persistir numa relação de rapacidade com o romance mutuamente desastrosa, esquecendo que «o olho e o cérebro são separados violentamente ao tentarem, em vão, trabalhar em conjunto», formula a questão de fundo, e que ainda não deixou de ser crucial, nos seus exactos termos: «Se o cinema deixasse de ser um parasita, como faria para caminhar de cabeça erguida?»
A via apontada parte da convicção de que para que as imagens em movimento possam ser «mais reais, ou com uma realidade diferente daquela que percepcionamos no quotidiano», e o cinema consiga realizar as suas potencialidades permitindo-nos ver «a vida como ela é quando nós não estamos lá», é necessário que sejam as imagens a tomar a dianteira, a serem a fonte sensível da imaginação para que «o pensamento p[ossa] ser transmitido mais eficazmente pela forma do que pela palavra», e o cinema ora servindo-se dos «inúmeros símbolos para emoções que até aí não encontravam forma de expressão» que tem ao seu dispor, ora aproveitando «a exactidão da realidade e o seu surpreendente poder sugestivo» para produzir algo abstracto como os «sonhos que por vezes nos visitam o sono ou nos assaltam na penumbra das salas» ― é esta via que augura ao cinema a possibilidade de dar uma resposta de cabeça erguida a estas outras perguntas deixadas por Virginia Woolf:
«Haverá, perguntamos nós, alguma língua secreta que possamos sentir e ver, mas nunca falar, e, se existir, poderá ela ser tornada visível aos olhos? Haverá alguma característica do pensamento que possa ser tornada visível sem a ajuda das palavras?»
Por esta mesma altura, tratando-se, porventura, de mera coincidência temporal curiosa, Boris Eikenbaum, um destacado formalista russo, num texto intitulado «Problemas do estilo cinematográfico» (1927), defende com grande convicção que tal como «a cultura cinematográfica se opõe à cultura livresca e teatral do século anterior», assim também «o espectador cinematográfico se encontra em condições de percepção completamente novas, opostas às da leitura».
O texto de Eikhenbaum, para além de refutar vigorosamente o erro que consistiria em considerar a possibilidade de um cinema «mudo», afirma, a partir da análise das novas condições de percepção, a nova relação entre palavra e objecto: «o espectador cinematográfico (…) move-se do objecto, do movimento visível, para a compreensão, para a construção do discurso interior», sendo que a recepção e a compreensão do filme estão intimamente ligadas «ao processo do discurso interior na mente do espectador»; por contraposição à palavra no teatro, a nova dominante, o movimento visto nas suas particularidades, constituindo uma espécie de linguagem mimada, «obriga o espectador a um trabalho mental» indispensável à construção do filme e à sua «tradução na linguagem do seu discurso interior»[v].
Emilio Garroni que, em «Linguagem verbal e elementos não-verbais na mensagem fílmico-televisiva», um texto publicado em francês em 1973, propõe uma releitura de Boris Eikhenbaum, prefere a designação de discurso interno, para melhor a cotejar com a noção de «linguagem interna» proposta pelo Círculo de Praga, sublinhando o facto de ser indispensável um suporte material ou substancial para funcionamento de uma actividade semiótica como tal, donde resulta que, para Eikhenbaum, «pensar consiste em organizar o nosso discurso interno segundo modalidades e condições específicas, como quando pensamos de uma forma original, quer dizer, não repetitiva (…)»[vi].
Quando em Agosto de 1983, ficámos a saber graças a Serge Daney, num artigo no Libération[vii], que entre os filmes de que fora em busca na Arménia, encontrou os de um cineasta, cuja sorte fora como a de outros Arménios, pois como lhe repetiram lá, «nós somos um povo estranho, mas generoso: demos Mamoulian aos Estados Unidos, Verneuil à França e Pelechian ao cinema soviético», como não haveríamos de querer adivinhar o que o próprio Artavazd (dito Arthur) Pelechian teria intenção de «dar», assim houvesse tempo, quando no regresso Daney o encontrou em Moscovo e aquele lhe confiou ao despedir-se: «poderia apresentar-lhe pessoas interessantes […] que não procuram nenhuma publicidade, são pintores, artistas, e nem sequer são dissidentes, quando muito são monges». O artigo de Serge Daney teve, indiscutivelmente, o efeito de uma revelação, de cujo alcance o próprio deu conta nos seguintes termos: «Tive de imediato o sentimento (agradável) de me encontrar diante de um elo perdido da verdadeira história do cinema» já que «o cineasta, um autêntico, inclassificável», de quem fora em busca, trabalhava na montagem, «sobre, com e contra a montagem». Pelo próprio saberemos com que ambições: “Para mim, a montagem à distância abre os mistérios do movimento do universo. Posso sentir como tudo é feito e colocado em relação; posso sentir o seu movimento rítmico.”








Tendo tido uma breve carreira de desenhador industrial na Arménia, onde nasceu em 1938, a partir de 1963, estudou durante cinco anos no VGIK, a escola de cinema de Moscovo, ocupado por uma questão de que não pode desfazer-se: «Será que o cinema precisa de mim? É que eu preciso do cinema».
A razão pela qual o cinema precisava de Pelechian advinha da necessidade de «retomar o cinema onde Eisenstein e Vertov o tinham deixado», mas ultrapassando o «impasse» em que caíra: «Vertov e Eisenstein inventaram uma nova máquina, mas montaram-na em carris de caminho de ferro». E quanto à montagem, ao contrário da montagem segundo Eisenstein, Vertov ou Kulechov ― cujos processos, fossem eles designados montagem associativa, montagem vertical ou montagem contrapontística, consistiam sempre em colocar lado a lado duas imagens ―, Pelechian propõe: «Na prática dei-me conta que esses elementos colocados lado a lado não me interessavam. Não desejava colar duas imagens. Pelo contrário, se há duas imagens que me interessam coloco-as em pontos diferentes. Separo-as. Compreendi que os elementos colocados à distância falam melhor entre si do que se estiverem lado a lado. Esses elementos funcionam não só à distância, mas também em relação às imagens que ficam entre eles».
Uma montagem que, aliás, destrói a montagem: «A montagem que pratico, ao contrário da montagem clássica, não “quer” dizer nada. A minha montagem cria um campo emocional à volta do filme. O filme ganha um contacto com nossa esfera emocional e essa conexão destrói a montagem»[viii]. No núcleo fundamental da sua obra ― Skizbe (O Início, 1967), 10’; Menq (Nós, 1969), 30’; Obitateli (Os Habitantes, 1970), 10’; Vremena goda (As Estações, 1975), 29’; Mer dare, (Nosso Século, 1983), 30’; Verj (Fim, 1992), 9’; Kyanq (Vida, 1993), 6’ ― de que, por ocasião da sua vinda à Cinemateca Portuguesa em Maio de 2019, foi feita uma retrospectica, o filme Vremiena goda (As Estações) é, porventura, aquele em que, sem ultrapassar a duração de meia hora, mediante a utilização de imagens em câmara lenta, repetições, sobreimpressões, rotações rápidas e os muitos recursos da montagem, a depuração é extrema, e, seguindo a natureza o seu curso fortuito e irregular e os homens a sua faina «que quanto mais se vai menos é dura», a revelação do mundo, épica e lírica, atinge no cinema o seu mais alto grau.




Durante a rodagem do filme, confirmou Pelechian (desfazendo uma dúvida de J.-L Godard), «chovia, mas nós ajuntámos mais chuva», pois «tudo o que só às palavras é acessível deve ser evitado pelo cinema», augurara Virgínia Woolf.
Haverá, no entanto, uma última razão pela qual o cinema precisava de Artavazd Pelechian, pois, evitando quase totalmente o recurso à palavra, com este filme extraordinário que
«[…] ensina a cair / sobre vários solos / […] ao encontro/ do cabo onde a terra abate e / a fecunda ausência excede // até à queda vinda / da lenta volúpia de cair»[ix],
indica a razão da preferência de atravessar a vau:
«Oh, feliz é quem encontrou o vau / de tão alpestre e rápida torrente / chamada vida»[x].
[i] Nan Shepherd, The Living Mountain (Edinburgh: Canongate Books, 2014); Tradução portuguesa: Nan Shepherd, A Montanha Viva, trad. Jorge Melícias (Lisboa: Edições 70, 2022).
[ii] Virginia Woolf, «A Nova Biografia», em 48 Ensaios, trad. Ana Maria Chaves e Catarina Ferreira de Almeida, Antropos (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2022), 272–79; Virginia Woolf, «A Arte da Biografia», em 48 Ensaios, trad. Ana Maria Chaves e Catarina Ferreira de Almeida, Antropos (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2022), 420–28.
[iii] Virginia Woolf, «Como Se Deve Ler Um Livro?», em 48 Ensaios, trad. Ana Maria Chaves e Catarina Ferreira de Almeida, Antropos (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2022), 229–42.
[iv] Virginia Woolf, «O Cinema», em 48 Ensaios, trad. Ana Maria Chaves e Catarina Ferreira de Almeida, Antropos (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2022), 223–28.
[v] Boris Eikhenbaum, «I Problemi dello stile cinematografico», em I Formalisti Russi nel Cinema, ed. Giorgio Kraiski, [1927] (Milano: Garzanti, 1971), 22–24.
[vi] Emilio Garroni, «Langage verbal et éléments non-verbaux dans le message filmico-televisuel», em Cinéma: Théorie, Lecture (Paris: Éditions Klincksieck, 1973), 116.
[vii] Serge Daney, «À la recherche d’Arthur Péléchian», Libération, 11 de agosto de 1983; Claire Déniel e Marguerite Vappereau, eds., Artavazd Péléchian: Une symphonie du monde (Crisnée – Belgique: Yellow Now / Coté Cinéma, 2016), 19–22.
[viii] Claire Déniel e Marguerite Vappereau, eds., «Entretien avec Artavazd Péléchian par Pierre Dreyfus», em Artavazd Péléchian: Une symphonie du monde (Crisnée – Belgique: Yellow Now / Coté Cinéma, 2016), 162.
[ix] Luiza Neto Jorge, «O Poema Ensina a Cair», em Os Sítios Sitiados (Lisboa: Plátano Editora, 1973), 162–63.
[x] Francesco Petrarca, Trionfi, ed. Guido Bezzola e R. Ramat, Letteratura italiana Einaudi (Milano: Rizzoli, 1957), [versos 46-48], 57, http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_2/t44.pdf; Vasco Graça Moura, Os Triunfos de Petrarca (Lisboa: Bertrand Editora, 2004), 211.