22 de julho de 1974. Portugal conhecia a liberdade após os regimes salazarista (linha dura) e marcelista (mais brando, mas com propostas de abertura nem sempre concretizadas) e o 25 de abril, a Revolução dos Cravos. O clima ainda era de festa e apreensão: o que virá pela frente? O fantasma do fascismo ainda estava à espreita, e os novos caminhos eram tão promissores quanto incertos. Nesse contexto, e nesse fatídico 22 de julho em que o verão castigava o país ibérico, chegava às bancas portuguesas o último número, o 37º, da revista Cinéfilo, de periodicidade semanal, iniciada em outubro do ano anterior. Na capa, sobre um fundo preto, um esqueleto parecia nos comunicar: “Este é o nosso fim”. Mais abaixo, a revista comunicava: “Este número é um número de morte”. Era com esse espírito bem-humorado, sem que a crítica estivesse ausente ou arrefecida, que se encerrava a mais interessante e apaixonada de todas as revistas publicadas em Portugal. Tão crítica quanto O Tempo e o Modo, mas menos sisuda e com muito mais espaço para cinema. Mais rigorosa cinematograficamente que a Celulóide, a Enquadramento, a Isto é Espectáculo e a Isto é Cinema. Menos fechada que a M – Revista de Cinema e a Cineclube. Mais certeira que A Grande Ilusão e a Cinema. A Cinéfilo, mesmo que não tratasse exclusivamente de cinema, era mais empolgante que todas essas e muitas outras para os amantes de cinema.
E este último foi um número que entrou para a história, ainda que essa história seja muito pouco contada. Ao abrirmos a revista, na chamada página 1, o editorial de sempre foi substituído por um duplo comunicado repartido ao meio: da redacção/da administração, que continuava na página seguinte. Na página 3, a reprodução de um comunicado antigo com a seguinte introdução: “Há 34 anos, como prova o documento anexo, o nosso antepassado CINÉFILO anunciava a ‘suspensão temporária’ da sua publicação, alegando sacrifícios provocados por um conflito armado. Também então se falou de preços e de falta de papel. O ciclo repete-se, de 1939 para 1974”. O que dizer então desses terríveis infortúnios – queda nas vendas, “falta de resposta dos anunciantes”, falta de papel – que fizeram com que uma excelente revista sobre artes e cultura se encerrasse após 37 números?
O que encerra esse último número, na verdade, é a segunda e derradeira parte de uma discussão com o escritor Álvaro Guerra, chamado pela redação do Cinéfilo de “medíocre”, em que, após uma carta do escritor, a redação respondia com um irónico e espirituoso glossário, ressalvando que seria o último número e que o diretor da revista, Fernando Lopes, estava no exterior.
Fernando Lopes dirigiu a Cinéfilo por quase dez meses com sua habitual verve crítica, e cercou-se de outros cineastas que contribuíram para a consolidação do Novo Cinema Português, sobretudo seus dois braços direitos, António Pedro Vasconcelos [que já havia filmado o longa Perdido por Cem (1973)], como redator-chefe, e João Cesar Monteiro como o redator mais duro e intransigente (ou polêmico, se preferirem).
Era uma revista que procurava responder aos estímulos culturais e artísticos de Lisboa (e, numa menor escala, do Porto e de outras cidades portuguesas) em suas diversas manifestações, com destaque para o teatro, a música e o cinema. Em alguns números, digamos, um a cada três (às vezes mais), o destaque maior era para o cinema, como que para fazer jus ao nome. O que não faltava, seja qual fosse a área de atuação, era um espírito crítico em sua mais nobre acepção. Falando da parte cinematográfica, que é o que mais nos interessa aqui, é necessário destacar o poder de síntese, em que muitas vezes, na área de serviços, um filme recebia uma crítica de poucas linhas, algo como um tweet da época, com excelentes ideias a respeito das obras. Vejamos como exemplo esta pequena pílula sobre American Graffiti (1973), de George Lucas (Cinéfilo nº 28, 13 a 19 de abril de 1974):
A imagem que George Lucas nos fornece da América de 1962 não corresponde tanto à tentativa de elaborar um documento crítico da época como à visão inconsistente que ele possui desse período. Oscilando entre um revivalismo romântico, hoje bastante credenciado junto do público, e uma nostalgia conformada, o filme nunca consegue ultrapassar o esboço superficial e inconsequente.
É sabido que muitas vezes o redator dessas pequenas pílulas que acompanhavam a seção de serviços, com os cinemas de Lisboa (e do Porto) e suas programações, era João César Monteiro. Por vezes Paulo Trancoso assumia a missão. Mas as duras linhas sugerem uma visão crítica rigorosa como a de Monteiro que, seja como for, era presença forte entre os textos não assinados da revista (como também o diretor, Fernando Lopes). Nessas linhas percebe-se o poder de síntese para definir o filme em poucas linhas, concorde-se ou não com o julgamento. Era uma das grandes forças dessa segunda encarnação do Cinéfilo.
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Não tenho o tamanho e a importância do Cinéfilo. Em matéria de talento, não chego a 1% de Lopes e Cesar Monteiro. Mas este é o fim desta crónica mensal. Este texto é um texto de morte… das Recordações da casa de Alpendre. Uma série de compromissos pessoais e profissionais me impedem de continuar. Deixo meu espaço aqui após quase três anos de comunicação com os leitores, a quem agradeço. Deixo também meu agradecimento aos editores de À pala de Walsh, pela confiança, pelo convite lá em 2020 e pelo espaço cedido. São amigos que, acredito, terei para toda a vida, mesmo com a distância.