Um automóvel não é o cume da alta tecnologia. Mas afectou-nos e transformou-nos mais do que qualquer outro objecto, nos últimos cem anos. Nós incorporamo-lo. A estranha privacidade em público que nos permitiu, a liberdade sexual concedida, que nos anos 1950 nem era subtil: o primeiro gajo a ter um descapotável no secundário era o primeiro a ter sexo. Poderia levar as raparigas para o campo e fazer-lhes coisas. Nós teríamos de ir de autocarro e não é o mesmo. Era uma cama móvel, e esse elemento ainda não mudou. Talvez seja por isso que as pessoas resistem a utilizar os transportes públicos. Se tivéssemos pequenas e isoladas camaratas no metro, talvez funcionasse melhor. E também incorporamos o automóvel no nosso entendimento de tempo, espaço, distância e sexualidade. A vontade de nos fundirmos com isso literalmente, de um modo mais físico, parece uma boa metáfora. É a concretização de um desejo de fusão com a tecnologia.
David Cronenberg
O romance de J. G. Ballard, Crash, publicado em 1973, estabelecia a sua narrativa em Londres, na órbita do aeroporto de Heathrow, mas poderia situar-se noutra grande cidade; o leitor pensa recorrentemente nas cidades norte-americanas, nas descrições daquelas estradas cercadas por outdoors, que no final do livro apontam aos céus, em rampas metalizadas que transformam automóveis em aviões, num delírio fomentado a LSD. Aliás, os automóveis conduzidos pelos personagens são predominantemente americanos, com destaque para o Lincoln de 1963 (o modelo onde seguia JFK quando foi assassinado em Dallas) conduzido por Vaughan, espécie de cientista louco e renegado (uma variante de Dr. Frankenstein) que lidera uma comunidade subterrânea que, como confirma Chris Rodley (Cronenberg on Cronenberg), “parece ser no futuro, mas estabelece-se no presente: a visão distópica do romance parece tão contemporânea nos anos noventa como fora nos setentas”, numa suspensão do tempo que muito agradaria a Ballard. O romance colocava no centro James Ballard e a sua mulher Catherine, para quem a diversidade de parceiros e de experiências sexuais não bastava para quebrar o torpor, o tédio da vida moderna, expresso em apartamentos que replicavam o design das melhores lojas de mobiliário ou em “estradas de múltiplas faixas” de um “mundo sombrio e desapaixonado”. Após um acidente, uma colisão frontal entre o automóvel de James e o de Helen Remington, do qual resultou a morte do marido, os dois envolvem-se sexualmente, com mediação de Vaughan, o cientista envolvido num projecto particular de registo de embates rodoviários e encontros sexuais em parques de estacionamento, que ele pretende mesclar, a antecipar uma fusão. Vaughan ministrará, então, uma intensa actividade sexual que é aliciada pela interação homem-máquina, metal-carne, “por metal distorcido, belas formas cromadas, estilhaços de vidro do pára-brisas e sangue no painel de instrumentos”, na ambição de atingir o “orgasmo definitivo”, no embate do seu Lincoln com o Rolls Royce de Elisabeth Taylor, a representante que restava do star system de Hollywood, em algo que o filme Crash (1996) de Cronenberg boicotará, removendo a actriz, numa das poucas alterações que o cineasta promoveu na narrativa do romance. O livro de Ballard foi um dos momentos mais desafiantes e confrontantes da Literatura da época, com a particularidade de o protagonista partilhar o nome com o escritor, como aconteceria com Império do Sol (1984), que assume, assim, um autor “totalmente honesto sobre a sua vida imaginativa”.


Chris Rodley assinala que Crash era desde logo um “material perfeito para Cronenberg”, pois o romance ambicionava um realinhamento da “mente humana”, em que a “tecnologia dominante” moldava “os corpos e a sexualidade”, estabelecendo, também, “um eco” que satisfazia “um interesse pessoal do cineasta no automóvel”, como tinha ficado expresso em Fast Company (1979). A inserção nesse “universo paralelo”, ditado pelo romance, impeliu um retorno do cineasta ao início da sua obra, na partilha com Ballard de um olhar “não diluído e francamente provocador”. Para Rodley é como se Cronenberg, “ao embarcar em Crash”, vislumbrasse “no seu espelho rectrovisor” os seus primeiros filmes e ao vê-los “recuar rapidamente”, e tivesse a percepção de “uma paisagem que não queria deixar para trás”. Talvez, continua o editor, ele tenha observado os “Apartamentos Starliner” de Shivers (Os Parasitas da Morte, 1975), “a desaparecer como um sol de betão e vidro abaixo do horizonte”. Nesse percurso em “marcha-atrás”, Cronenberg, mesmo “colidindo com os seus próprios braços”, renovará as mesmas vontades, “vinte anos depois”: “eu quero mostrar o que não pode ser mostrado”.
No regresso a casa de Cronenberg, depois da rodagem na China de M. Butterfly (1993), o filme estabelecerá a narrativa em Toronto, “a mais arquétipa das cidades da América do Norte”, que surge, então, como o “perfeito pano de fundo”, um cenário de quase ficção científica, “em lado nenhum”, “em tempo nenhum”, concretizando a evidente relação do romance com os EUA e “na relação particular” desse território “com o automóvel e o seu desenvolvimento”, conclui Rodley. Cronenberg alinha nessa associação ao regresso a casa e ao espírito dos primeiros filmes, pois ao contrário dos três filmes anteriores, maioritariamente fabricados em estúdio, Crash foi rodado em “locais de Toronto” e com a “luz disponível”, pois “não havia forma de financiar o custo da iluminação de três milhas de estrada”. Teriam de “absorver e incorporar” as condições proporcionadas pelos lugares de Toronto, como quem “encontra a arte”, em algo que relembra ao cineasta a rodagem de títulos como Scanners (1981). Como o cineasta conduzia todos os dias para os locais da rodagem, o processo tornou-se “maravilhoso” e “satisfatório”, na medida em que permitiu que o filme “fosse fisicamente tangível a uma parte do seu quotidiano”, um cruzamento do mundano com a vida artística que há muito não experienciava. Na equivalência de tom apontada por Rodley que compara Crash a Shivers e a Rabid (1977), pela “intransigência” e a têmpera “sombria”, Cronenberg completa e aponta semelhanças entre os personagens de Crash e algumas das suas próprias criaturas, como Darryl Revok de Scanners, com notórias afinidades com Vaughan, até porque as criaturas dos dois (escritor e cineasta) “estavam a emergir” em espaços temporais afins e em contextos semelhantes, nos anos setenta.
O guião foi estruturado “sem restrições”, em torno das cenas de sexo, que Rodley classificou na oscilação entre a “perversidade”, “a melancolia” e o “pungente”, mas sempre com a premissa de que o sexo é a narrativa. Tal como nos primeiros filmes, e “apesar da natureza tórrida do material em bruto”, o guião foi concretizado com “a precisão de um bisturi”, nas mãos de um “cirurgião experiente e especializado”, que assenta a sua acção ao “evitar o desperdício” (o guião era curto, com apenas 77 páginas), numa “frieza” e numa “recusa em excitar-se em demasia”, que contraria “grande parte do cinema contemporâneo, que está em permanente estado de ejaculação prematura por nada”. E então, continua o editor, numa toada calculada, o realizador “consigna” o espectador “a um estado inquietante de total consciência em face de comportamentos delirantes”, para fazer emergir pontualmente “uma emoção arduamente conquistada” em apenas um plano, como no melhor da sua obra.
Cronenberg diz que, apesar de o romance parecer “hermeticamente selado”, teria de “confiar no seu instinto” e assim que começou a escrever o guião ficou “surpreendido” pela forma como aquele material se prestava a ser “destilado”. Por isso, rapidamente verificou que não seria necessário “inventar outros personagens” ou “alterar a estrutura do romance”, pois o material destilado para o guião manifestou-se como “um organismo vivo” projectado a partir da “essência do livro”. Se em Naked Lunch (Festim Nu, 1991) o cineasta se fundiu com a obra de Burroughs e as linhas do guião pareciam poder participar de um próximo livro do autor norte-americano, para fazer do romance Crash um filme de Cronenberg, ele empreendeu uma “fusão amorosa com Ballard”, facilitada pela sincronia: “os dois compreendiam exactamente o que o outro estava a fazer”; e exemplifica com o entendimento relativamente ao nome do protagonista do romance, que colhia o nome do autor do romance: “o personagem de Crash poderia facilmente chamar-se David Cronenberg”. O cineasta também concorda com as vizinhanças entre a peculiar forma de ficção científica de Ballard e os mundos de Shivers, Scanners e Videodrome (Experiência Alucinante, 1983). Cronenberg indica o âmago da abordagem de Ballard na antecipação da “psicopatologia futura”, que já “está em desenvolvimento”, mas que o escritor nos decifra como um oráculo: algo que ele colheu “já desenvolvido no futuro”, para depois implementar já “completamente formada” no passado que corresponde ao nosso tempo. Se procurarmos compatibilizar a “psicologia normal” do cinema a estes personagens, os espectadores ficarão “confusos, perplexos e frustrados”, pois não encontram qualquer traço de empatia ou “domesticidade reconhecível”, no casal James e Catherine. O cineasta utiliza como exemplo o filme Fatal Attraction (Atracção Fatal, 1987), com quem os distribuidores gostariam de comparar Crash, pois entendem que os “personagens deveriam ser normais a princípio para que pudéssemos observar onde eles erraram”. No entanto, em Crash não é “o acidente de automóvel que introduz e encaminha estas pessoas a condutas erradas”, pois elas estão desde logo “vulneráveis” e “disponíveis para irem mais adiante”. E o cineasta remata: se “o romance é intransigente nisso, porque é que o filme não o seria?” .
O filme arranca com três cenas de sexo consecutivas, numa atitude de confrontação com o espectador, enquanto se explicita a tentativa do casal James (James Spader) e Catherine (Deborah Kara Unger) sacudir o tédio da conjugalidade e da vida moderna. O hangar é o primeiro dos lugares da mitologia ballardiana presentes em Crash. Por entre aviões, Catherine encosta o seio desnudo ao metal de um dos aparelhos voadores, até que é abordada, silenciosamente e por detrás, por um homem (talvez um desconhecido) que a acaricia e a penetra numa cena tão efémera quanto inconclusiva, pois em sequência o filme encontra James Ballard já durante o acto sexual com uma jovem mulher (membro da equipa de filmagem), que o produtor penetra por detrás numa pequena sala interior, com os olhares dos dois direcionados para a câmara, até que são interrompidos por uma solicitação do set. Uma nota para reconhecer a intencionalidade no trabalho do personagem James Ballard, um produtor de filmes ou de séries para televisão, alguém que trabalha com imagens, o grande gerador da desordem que povoava o mundo nos anos 1960 e 1970 e que conduziu ao cerne da obra do escritor J. G. Ballard. Durante o filme, despontarão várias vezes sets de filmagens, grandes produtores de simulacros. A encerrar a sequência tripla, na varanda do domicilio conjugal, Catherine e James relatam entre si as cenas de sexo anteriores como um preliminar para mais uma cena de sexo, como um antídoto à rotina do casal, que procura sexo com vários parceiros, alguns desconhecidos, mas que se revela ainda assim insatisfatório e inconclusivo, pois perante a ausência de orgasmos relatados, Catherine oferece-lhe o sexo e projecta um “talvez para a próxima”, em algo que se repetirá até à derradeira sequência do filme. James penetra Catherine por detrás, numa varanda dependurada nas várias faixas de estradas e arruamentos, de olho no trânsito, a antecipar o primeiro embate rodoviário. Para Cronenberg, a disposição das três cenas de sexo seguidas na abertura do filme estava “a replicar o tom, absolutamente implacável e confrontacional”, do livro. Segundo o realizador isso provoca reacções inusitadas no público, que por vezes “explode numa gargalhada”, derivada da “descrença ou da exasperação”, de quem não quer “acreditar que terá de olhar para mais uma cena de sexo”. A opção deliberada de colocar os actores a olhar a câmara, ao invés de se olharem, serviu para intensificar a “desconexão” dos personagens, a exprimir “como é que temos sexo quando não estamos a fazer sexo um com o outro”.


Cronenberg contraria a ideia de que uma “série de cenas de sexo não é uma narrativa”, também ao justificar a razão de as cenas de sexo raramente se disporem de forma isolada. Numa abordagem convencional, as cenas de sexo são “pequenos e líricos interlúdios”, que podem ser removidas sem que a narrativa e a construção dos personagens padeçam. Já em Crash, as cenas de sexo são dos mais relevantes contributos para o “plot” e o “desenvolvimento das personagens”, pelo que não poderiam ser extraídas. Segundo o cineasta, “não são relações sexuais do século XX ou relações amorosas”, “são outra coisa”: são possibilidades, “no contexto de um casal de classe média alta”, para uma “norma” num “futuro não muito distante”.
O primeiro acidente rodoviário de Crash surge na sequência de uma atitude transgressora de James Ballard, que lê enquanto conduz. Na cama do hospital, o protagonista escoriado dirá a Catherine uma frase aparentemente desconcertante, mas que revela coerência na tentativa de experienciar uma vida que se quer libertar da moral, da segurança e das regras, parentes do tédio: “Depois de ser interminavelmente bombardeado com propaganda de segurança rodoviária, é quase um alivio ter estado envolvido num acidente”. Como consequência, então, da negligência de James, o seu automóvel galga um separador da estrada e acabará a embater com um veiculo que circulava em sentido oposto. A colisão é potente e do outro automóvel é expelido um corpo de um homem que aterra no habitáculo de James, depois de atravessar o para-brisas. Num campo/contra-campo, a primeira vez que James e Helen (Holly Hunter) se olham, mediados pelo fumo que exala dos automóveis estáticos, a mulher desaperta o cinto e o seu seio esquerdo fica visível. Esta exposição é um prelúdio para o primeiro encontro sexual entre os dois que ocorrerá algumas sequências depois num parque de estacionamento, com o sexo a ser precedido por uma panorâmica desde os lugares de estacionamento até às manobras dos aviões no exterior. Numa rima evidente, Helen mostra a James o mesmo seio exibido no acidente, como se o embate tivesse já participado daquele encontro sexual. A cena de sexo é rápida, brusca como um acidente rodoviário, resolvida com um raccord que coloca James em outra cena de sexo, mas agora com Catherine, na cama do domicilio conjugal.

O parque de estacionamento é intensificado por Cronenberg como um dos lugares decisivos da mitologia ballardiana, muitas vezes na vizinhança do aeroporto, que surge como um templo, de onde gravitam muitas das acções dos personagens, um eco das memórias vívidas do campo de prisioneiros de Xangai, que Ballard ficcionou em Império do Sol (1984). O encontro prévio ao sexo, de James e Helen, aconteceu também num parque de estacionamento, onde se dispunham as carcaças dos automóveis acidentados, que surgem como um depósito de pathos, de memória e da matéria, transportados pela máquina do século XX. Enquanto observamos Helen de bata branca (é médica) a deambular por entre a sucata acomodada nos vários lugares, numa atitude provocadora que as acções seguintes legitimarão, James está sentado no habitáculo do seu automóvel acidentado a tentar tocar um pára-brisas que já não está lá. No plano seguinte, vemos no tapete do habitáculo um conjunto de revistas pornográficas e fotografias de mulheres, por entre vidros estilhaçados e fluidos orgânicos, no simulacro aliciador do sexo, proporcionado, como veremos depois, por Vaughan (Elias Koteas), o cientista renegado. A primeira vez que o protagonista toca na médica é quando ela passa a mão pela chapa amolgada do automóvel dele; ele diz-lhe que pode rasgar a luva e Helen recolhe a mão, como se aquilo fosse a primeira caricia, o primeiro preliminar do sexo. Como acontecera em Naked Lunch e outros filmes de Cronenberg, os personagens mergulham numa espécie de zona. Uma conversa entre James e Helen replica uma outra que o protagonista mantivera com Catherine após sair do hospital: numa concepção alternativa da realidade, os personagens descrevem um acentuado avolumar do trânsito, como se os automóveis estivessem a ser encaminhados para uma ocasião irrepetível, que os personagens concebem, como parte de uma psicopatologia do quotidiano.

O corpo de James, na cama do hospital, coberto de escoriações e de dispositivos mecânicos cravados nas pernas, é a continuação da interacção homem-máquina, após a colisão dos automóveis. Se James esticou a concepção moral do leitor/espectador quando se referiu aliviado por experienciar um acidente rodoviário, também Catherine comenta que se o seu avião se despenhar na próxima aula, talvez ela acorde ao lado dele, pois James está internado no hospital do aeroporto, em mais uma conjugação das plataformas míticas estrada/automóvel e céus/avião. Na varanda do domicílio conjugal, os planos de Cronenberg juntam os personagens às estradas e aos automóveis como um só organismo, um sistema fluido, num continuum de rimas e réplicas; ainda no hospital, Catherine masturbara James enquanto lhe descrevia o impacto do embate e o resultado na carroçaria, a que o corpo de James responderá com uma ejaculação: “As duas rodas da frente e o motor foram projectados para o habitáculo e abriram um buraco no chão. O capot ainda tinha marcas de sangue, como pequenos riachos negros a correr para as calhas do limpa para-brisas. Havia manchas minúsculas espalhadas sobre o banco e o volante. O painel dos instrumentos estava todo metido para dentro, o relógio e o conta-quilómetros estavam partidos. A estrutura do habitáculo estava deformada e havia poeira, vidro e estilhaços de plástico por todo o lado. O tapete estava ensopado e tresandava a sangue e outros fluidos corporais e mecânicos”.
Ainda na sequência do hospital, a concepção de que o corpo é a nossa realidade, na projecção de uma existência efémera, dialoga com o entendimento da morte e a sua superação filosófica, com Catherine a justificar a ausência no funeral do marido de Helen: “Enterram os mortos demasiado depressa… deviam deixá-los por aí uns meses”. No laboratório de Cronenberg, este processo de fusão do humano com o automóvel impõe a destruição do corpo e consequentemente a morte. O cineasta afirma que é o “reconhecimento da forma como funcionam os humanos”, que “mascaram” a associação do sexo, desejo e morte e exemplifica com a “gestação dos salmões” que os deixa “tão exaustos que morrem”, sendo que nos humanos a oscilação entre “controlo” e “vontade” complexifica o contexto desta fusão. Perante a questão de Chris Rodley, de que a “reclamação do automóvel” de Vaughan, por parte de James Ballard, é “equivalente à reclamação do corpo do cientista”, depois do encontro definitivo dele com a máquina, Cronenberg recorda a morte de Marilyn, pois aquele que fora o “corpo mais desejado da história da humanidade”, não foi imediatamente reclamado. O cineasta, ainda jovem, pensou reclamar o corpo: “ela estava morta, mas ainda era Marilyn Monroe”. Então, segundo Cronenberg, quando James recupera o Lincoln de Vaughan “é como reclamar o corpo de Marilyn”.

Cronenberg concilia, na sequência do simulacro do acidente de James Dean, a apresentação de uma comunidade subterrânea enquanto exibe uma performance, na ambição de combinar arte e ciência num cenário de transgressão. Vaughan exibe-se como um sacerdote e acaricia o Porche 550 Spyder, enquanto coloca a assistência num troço solitário de uma pequena e poeirenta estrada (a 466) da Califórnia, soltando as derradeiras palavras de James Dean: “Não te preocupes, o gajo tem de nos ver”. O tempo suspende-se, pois se o ano é 1955 e o dia 13 de Setembro, o momento é aquele, o que valida a veracidade do simulacro, pois aumenta a potência do acontecimento original perante uma bancada, onde se dispõe a comunidade transgressora. Foi necessário apenas o momento, o do embate entre o Little Bastard de Dean e o automóvel do estudante Donald Turnupseed, que circulava na direcção oposta, para criar uma das maiores lendas do star system de Hollywood. Depois da colisão, a câmara de Cronenberg e a música de Howard Shore assinalam a beleza das formas da chapa amolgada, cercada por uma atmosfera de fumos e de sons produzidos por aquelas máquinas, entidades vivas, como organismos férteis. O aparecimento das autoridades empurra a assistência para um bosque que ladeia a estrada, um espaço primordial saído do espírito de George Orwell, com Vaughan como cabecilha: “Eles não fazem ideia de quem somos realmente”. Cronenberg concorda que esta comunidade clandestina relembra outras dos seus filmes, como as de Scanners ou de Videodrome. Na opinião dele, na “maioria dos filmes de ficção científica é a elite que está no fio da navalha” das transformações, mas o seu foco é “nas pessoas comuns”, nas comunidades que não estão “a analisar” ou “a organizar” os movimentos, mas que “estão a experienciar”.

Rodley estabelece uma analogia entre os personagens de Crash no “abraçar da colisão automóvel, um evento potencialmente ameaçador para as suas vidas”, e a predilecção dos personagens anteriores de Cronenberg na “abordagem à doença”. Cronenberg concorda e relembra a frase (do livro e do guião) de Vaughan de perspectivar a “colisão automóvel como um acontecimento fertilizante e não destrutivo” o que traça uma clara tangente com os seus parasitas, a quem os seus filmes atribuem uma “força criativa ao invés de aniquiladora”. O laboratório de Cronenberg alinha na viagem de Ballard e o seu filme está a dizer-nos que perante “esta realidade áspera que nos envolve”, “ao invés de sermos diminuídos ou destruídos por ela”, podemos ambicionar “desenvolvê-la” e “abraçá-la por completo”. Num exercício de experimentação que “acolhe o tom filosófico de Ballard”, quanto “mais estranha e grotesca” é a cadeia de acontecimentos, mais entendemos esta exploração como um “comportamento criativo” e “positivo”.

A crónica vai longa, pelo que a segunda parte de Crash ficará para o próximo mês, no encerramento deste conjunto de textos sobre a obra de Cronenberg, em diálogo com Cronenberg on Cronenberg de Chris Rodley.