Se La double vie de Véronique (A Dupla Vida de Veronique, 1991) assumiu o catapultar do prestígio internacional de Krzysztof Kieślowski, atuando como uma espécie de introdução para aquela que viria a ser a trilogia Trois couleurs, os filmes que a compõem, Bleu (Azul, 1993), Blanc (Branco, 1994) e Rouge (Vermelho, 1994), viriam a configurar-se como o auge de reconhecimento do realizador, que viria a falecer em 1996. Perante uma Europa que atravessava mutações político-sociais decorrentes da queda do Muro de Berlim e da dissolução da União Soviética, Kieślowski propôs explorar os ideias da Revolução Francesa, representados e associados às cores presentes na bandeira do país. Ora, se em Bleu descortinamos a liberdade e em Blanc mergulhamos na igualdade, em Rouge dialogamos com a fraternidade e com o seu cosmos tão extenso quanto as múltiplas vidas com as quais, ao acaso, nos vamos cruzando.

Antes de escrever sobre o objeto que me trouxe até este texto, talvez pelo mesmo ser o derradeiro de Kieślowski, não poderia não deixar a nota sobre dois momentos particulares que recordo enquanto definidores da minha admiração pela sua figura de realizador e filmografia: em primeiro, passando a redundância, o meu primeiro vislumbre do seu cinema, a partir do documentário Gadajace Glowy (Cabeças Falantes, 1980). Despertou-me pela montagem minimalista, configurou-se como porta de entrada para uma reflexão pessoal sobre questões existenciais, e cumpriu a função de consciencialização sobre o simbolismo do coletivo e a ideia de um todo; de possuirmos vontades, necessidades e expetativas, por vezes comuns, por vezes diferentes, de pertencermos a classes sociais e gerações, por vezes comuns, por vezes diferentes, mas que apesar de quaisquer singularidades ou pluralidades, coabitamos na experiência comum da existência humana. Depois do documentário e motivado pelo próprio, seguiu-se a série Dekalog (O Decálogo, 1989-1990), que me permitiu compreender, em definitivo, a magnitude do seu universo cinematográfico: cru, real e contemplativo, transpõe as vidas (em camadas) para o ecrã, apresentando-as através de um estado de fluxo poético e misterioso, numa odisseia de emoções e introspeções, que se alimentam da íntima complexidade e vulnerabilidade humana. A partir de dilemas morais, éticos e religiosos, Kieślowski faz as indispensáveis perguntas, não concede as respostas absolutas, e reserva-nos, por fim, um espaço aberto, vazio, a ser preenchido por inquietações e decifrações individuais; um vazio a ser preenchido pela empatia em entender as escolhas e decisões do outro; um vazio a ser preenchido pelas palavras, os olhares e os gestos que ocultam e denunciam.
Além das composições cuidadas, minuciosamente orquestradas, e como verdadeiras pinturas, milimetricamente pinceladas, evidencia-se o jogo de contraste de luzes e, sobretudo, o uso simbólico e visual da cor.
Em Trois couleurs: Rouge (Três Cores: Vermelho, 1994), as palavras, os olhares e os gestos são de Valentine, uma simpática e amável jovem modelo e estudante universitária que, acidentalmente, certa noite, atropela uma cadela. Diante do animal ferido, encontra na coleira a morada do dono, dirigindo-se até uma das ruas da cidade de Genebra que a câmara de Kieslowski nos vai revelando, através de composições cuidadas, milimetricamente orquestradas, e como verdadeiras pinturas, milimetricamente pinceladas. Chegada ao local, Valentine conhece Joseph Kern, um sisudo, desconfiado e isolado juiz reformado, cujo entretenimento é espiar as conversas telefónicas dos seus vizinhos e observá-los através das janelas de casa. Embora inicialmente perturbada e incomodada com a descoberta, Valentine acaba por estabelecer uma relação de amizade com Kern, cuja frieza se dissipa mediante a partilha mútua de segredos, revelações e histórias: o passado traumático de Kern, marcado pelo término de um relacionamento amoroso na juventude, causado pela infidelidade da companheira; a família destruturada de Valentine e o seu relacionamento à distância, emocionalmente disfuncional e abusivo com Michael, cujo contacto é estabelecido através de chamadas telefónicas a partir de Inglaterra.
Paralelamente às figuras centrais, surge Auguste, um discreto jovem estudante que ambiciona ser juiz, e que vive perto de Valentine, embora os seus caminhos nunca se tenham cruzado diretamente. Trois couleurs: Rouge funciona como uma retrospetiva, em que a partir da justaposição das personagens, vislumbramos e reconhecemos os lugares em que, simultaneamente, ambas se encontram ou, por outro lado, os espaços que antes víamos a ser percorridos por Valentine são os mesmos que, quando esta se encontra ausente, são percorridos por Auguste. Do mesmo modo que o destino, a coincidência e o acaso originaram o encontro casual, inesperado e aleatório entre Valentine e Khern, formando-se laços afetivos entre dois seres humanos tão diferentes e que se viriam a compreender mutuamente, o mesmo destino, a coincidência e o acaso proporcionaram múltiplos desencontros entre Valentine e Auguste, sem que fosse criado qualquer vínculo emocional. Diria Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa:
“Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.”
Porém, assim como os fios telefónicos que, na sequência inicial do filme, percorrem o Canal da Mancha e se encontram infinitamente conectados, Kieślowski estende a ideia de fraternidade enquanto uma ligação universalizada, acolhendo mesmo aqueles que nos são estranhos – a condição humana, sempre a condição humana e a Humanidade (note-se, por exemplo, o momento em que Valentine decide ajudar a senhora que se encontrava em dificuldades para colocar uma garrafa na reciclagem). Por fim, na cena final, voltamos ao Canal da Mancha, onde Valentine e Auguste embarcam num ferry que, tragicamente, acaba por naufragar. O resgaste, transmitido na TV, mostra o rosto daqueles que sobreviveram, entre os quais Julie e Olivier, de Bleu, Karol e Dominique, de Blanc e Valentine e Auguste, de Rouge: uma vez mais, o cenário da omnipresença dos laços invisíveis que, eventualmente, se poderão tornar visíveis.
Além das composições cuidadas, minuciosamente orquestradas, e como verdadeiras pinturas, milimetricamente pinceladas, evidencia-se o jogo de contraste de luzes e, sobretudo, o uso simbólico e visual da cor. O vermelho colora o ambiente envolvente e os objetos que deste fazem parte (atente-se, por exemplo, no cartaz publicitário afixado com a expressão facial de Valentine, o carro que lhe pertence e conduz, os sinais de trânsito, o salão de Bowling, o interior do Teatro ou, ainda, as três cerejas que surgem na slot machine), interligando as personagens entre si e representando as emoções sentidas por cada uma destas. A fraternidade e o destino, fortemente associados ao vermelho, simbolizam a paixão e o amor que atravessam o universo não só de Valentine e Khern, mas também de Auguste, que imagina viver um relacionamento amoroso estável e feliz; mas o vermelho representa também a frustração e a raiva, sentidas não só, mas também por Auguste, quando descobre que, à semelhança de Khern, a sua companheira não lhe é fiel. Assim como os fios telefónicos que, na sequência inicial do filme, percorrem o Canal da Mancha e se encontram infinitamente conectados, a magnitude do universo cinematográfico de Kieślowski atua como um campo magnético, exercendo como uma força que empurra os corpos para dentro do ecrã e os aglomera enquanto um só – tão subtilmente, tão magistralmente, assim ficou registado o legado de Kieślowski.