Alguns dos segmentos da série de filmes de propaganda americana Why We Fight vão ser exibidos na Cinemateca Portuguesa no ciclo “Viagens pela Noite – O Mundo de Anatole Litvak”. O sexto episódio, The Battle of China (1944), realizado por Frank Capra (a principal figura associada a estes documentários) e Litvak, oferece um olhar fascinante sobre a guerra na Ásia de Leste.
O historiador britânico Rana Mitter, autor de um dos mais influentes livros sobre a Segunda Guerra Mundial na China, chamou ao país “o aliado esquecido”, tamanha é a ausência de referências à China nas narrativas da Segunda Guerra. Nem sempre foi assim. Os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra após o ataque japonês à base de Pearl Harbor, no Havai, em Dezembro de 1941. Nesse ano, a China, que combatia o Japão sozinha desde os anos 1930 (1931 ou 1937, dependendo da interpretação) passava a ter, finalmente, aliados formais, e o país a ser ele próprio reconhecido como um dos “quatro grandes” Aliados em guerra. Esta nova realidade teve ecos na produção cinematográfica, que, no caso dos Estados Unidos, passou por mais produções ambientadas na Ásia e em novas oportunidades de trabalho para actores Asian American. The Battle of China é um documento desse período de uma nova visibilidade da China nos EUA, uma verdadeira fonte histórica visual de uma guerra global de uma perspectiva norte-americana.
Toda a série de sete “filmes de informação” Why We Fight foi produzida pelo Exército americano para a sua Morale Service Division. Frank Capra estava ele próprio alistado no exército e fez os filmes nessa condição. Uma equipa colectiva de várias pessoas e entidades esteve ligada aos filmes, inicialmente planeados estarem prontos em menos de um ano. Na realidade, a produção arrastou-se até praticamente ao final da guerra. O público-alvo dos filmes eram recrutas a quem era explicado o porquê do esforço de guerra americano: a luta pela liberdade e pela democracia. Foram também exibidos para o grande público e houve uma versão ligeiramente diferente na Austrália.
A guerra sino-japonesa aparece em alguns dos episódios [incluindo no seguinte, War Comes to America (1945), que passará na mesma sessão da Cinemateca], mas o país é central apenas em The Battle of China. Foi um dos segmentos mais atribulados, criticado como sendo pouco rigoroso por transmitir a ideia de uma China unida quando havia grandes clivagens internas, e tendo chegado mesmo a ser retirado por um período de tempo.
Todo o filme é um apoio declarado à resistência do povo chinês contra os invasores japoneses. Como noutros filmes da série, a narrativa enfatiza o dualismo entre “bem” e “mal”, entre “liberdade” e “escravidão”. O Japão é mostrado como militarizado, a China como pacífica. A China é descrita em termos genéricos como sendo “história”, “terra”, e “pessoas”, a longevidade e vastidão das três dimensões sendo enfatizada. Os chineses são descritos como inocentes e pacíficos, a sua cultura uma de “arte, aprendizagem, paz”. Uma breve revisitação da história recente do país sublinha os paralelos e ligações com os Estados Unidos: uma jovem república, Sun Yat-sen como uma espécie de Lincoln, estudantes chineses que foram aprender a “modernidade” para a América e a Europa. A vastidão dos recursos naturais chineses é aludida com um misto de crítica pela cobiça japonesa e de publicidade para interesses americanos.
O filme não é, tirando algumas pequenas coisas, factualmente incorrecto, ainda que, compreensivelmente, haja muito que fique por mostrar ou por explicar. Críticos do filme consideraram problemática a ideia de que a China de Chiang Kai-shek era um local com “liberdade de expressão”, mas a realidade é que a guerra foi um momento, em várias coisas, de relativamente maior liberdade, incluindo para publicações comunistas, pese embora a rivalidade (e confrontos de facto) entre os dois partidos rivais – o Kuomintang (Partido Nacionalista) e o Partido Comunista Chinês. The Battle of China identifica Chiang e a sua mulher, a poderosa Song Meiling, cujo discurso histórico ao Congresso americano em 1943 (a segunda mulher e o primeiro cidadão chinês a fazê-lo) é incluído no documentário. Mas Mao está lá no filme, brevemente, não identificado, também apelando à resistência.
O tom de reconhecimento pela longa resistência chinesa em luta há anos é fulcral no filme. É interesse ver aqui expressa a ideia de que a guerra na Ásia de Leste era “the fearful beginning of a new kind of war”, reconhecimento que depois foi largamente ignorado em narrativas mais eurocêntricas do conflito.
O tom de reconhecimento pela longa resistência chinesa em luta há anos é fulcral no filme.
A representação no filme da estratégia de “trocar espaço por tempo” dos Nacionalistas chineses é dinâmica, e a cobertura do êxodo de milhões de refugiados – e da deslocação de fábricas, escolas e outras instituições – para as zonas não ocupadas do Sudoeste é mostrada como épica, como de facto foi. As imagens de Chongqing, “nova capital da China livre”, são interessantíssimas, não só as sequências dramáticas dos raides aéreos (a cidade chegou a ser a mais bombardeada do mundo) como da resposta da população no socorro às vítimas. É particularmente interessante o tempo de antena dado à participação de jovens e mulheres. O documentário acentua a união na diversidade: chineses de todos as partes do país, homens e mulheres, juntos para fazer frente a um invasor tecnologicamente mais avançado mas menos numeroso.
É certo que este é um olhar de americanos para americanos sobre a China que resistia ao Japão invasor. As concessões estrangeiras de Xangai são mostradas sem pingo de crítica pelas desigualdades coloniais que praticavam. A cooperação com figuras americanas, como Claire Chennault e os seus “Flying Tigers”, é destacada. Também a presença de testemunhas americanas é notada, por exemplo, quando são mostradas imagens gráficas de vítimas do massacre de Nanjing captadas por um missionário americano. No entanto, também isso diz algo sobre como a guerra na China se globalizou na propaganda produzida noutros país – cujo tom, note-se, é em muito similar a obras produzidas por propagandistas do governo chinês da época.
É interessante notar ainda como Capra e Litvak eram eles próprios exemplos de uma América de múltiplas origens – Capra nasceu na Sicília, Litvak na Ucrânia. Essa Améria incluía igualmente chineses, nacionalidade excluída por leis de imigração racistas apenas repelidas já durante a guerra. Incluía também japoneses, milhares dos quais foram vergonhosamente expropriados e confinados em campos de internamento durante a guerra (War Comes to America é explícito a retratar as comunidades japonesas nas Américas em termos alarmistas como uma quinta coluna).
Why We Fight é conhecido por ser, talvez acima de tudo, um grande trabalho de montagem. É uma manta de retalhos bem tecida a partir de fragmentos de filmes documentais, filmes de ficção, filmes capturados aos inimigos, e outros, mas pouca coisa filmada originalmente para estes trabalhos. Há mapas e diagramas animados – as animações são atribuídas aos estúdios Disney – e testemunhos do que poderíamos chamar peritos-participantes americanos (sempre homens). Entre as imagens reutilizadas estavam algumas captadas na China por Joris Ivens para o seu The 400 Million (1939) – outra obra essencial para se compreender como a guerra na China foi representada internacionalmente.
A banda sonora de The Battle of China a cargo da Army Air Force Orchestra e a narração de John Houston imprimem ao filme uma combinação de emoção e tom didáctico, essenciais para os objectivos do filme. Curiosamente, o filme termina com a Marcha dos Voluntários, canção de resistência de um filme chinês dos anos 1930 que viria depois a tornar-se o hino nacional da República Popular da China – que os EUA só viriam a reconhecer diplomaticamente em 1979, trinta anos após o seu estabelecimento.
Why We Fight – The Battle of China (1944) e Why We Fight – War Comes to America (1945) passam terça-feira, dia 7 de Janeiro às 19h30 na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.