Num mundo onde a infância se entrelaça com o peso das responsabilidades, Mashgh-e Shab (Trabalhos de Casa, 1989), de Abbas Kiarostami, transporta-nos numa jornada profunda, através da qual o simples gesto de uma criança, ao contar o seu dia-a-dia, se transforma no espelho de uma sociedade em constante movimento. Com a serenidade de um olhar atento e a sensibilidade refinada da sua lente documental, Kiarostami convida-nos a observar e a ouvir o que se esconde nas entrelinhas de olhares e silêncios.

Nas ruas de Teerão, cidade natal do realizador, a câmara de Abbas Kiarostami desperta a estranheza e a curiosidade nos olhares das crianças que se aproximam e questionam sobre que filme o próprio estaria a produzir. Ao revelar aos espetadores que se encontra a filmar um documentário sobre educação, Kiarostami explica que a sua inspiração surgiu das dificuldades que enfrentava ao tentar ajudar o próprio filho com os trabalhos de casa, que exigiam uma participação significativa dos pais. Essa experiência pessoal levantou-lhe uma dúvida: seria aquele um problema pessoal e particular, ou refletia algo mais profundo no sistema educacional iraniano? Para encontrar uma resposta, Kiarostami decidiu transformar essa inquietação num projeto, filmando, em 1988, na Escola Primária Shahid Masumi, um documentário em 16mm. O seu objetivo era simples: observar e entrevistar pais e crianças — um grupo de estudantes das primeiras e segundas classes — para compreender como se desenvolviam os trabalhos de casa no contexto familiar. Através dessa abordagem, propunha uma reflexão sobre a educação e a dinâmica entre pais, filhos e a escola, procurando entender as dificuldades e os desafios impostos pelo sistema educacional.
A resposta a uma pergunta aparentemente simples, “Quem te ajuda com os trabalhos de casa?”, revela um padrão profundo que traça o perfil cultural e social de um país.
Entre perguntas mais elementares e comuns, como “Contribuis para as tarefas domésticas?”, “O que queres ser quando cresceres?” ou “Quem te ajuda com os trabalhos de casa?”, surgem questões mais profundas e complexas: “O que é um elogio? Recebes elogios?”, “O que é a punição? És castigado?” Estas questões, que tocam em aspetos emocionais e psicológicos, exploram a compreensão que as crianças têm dos conceitos de recompensa e disciplina, revelando as suas experiências no ambiente familiar e escolar. Os rostos das próprias alternam com a imagem semicoberta do operador de câmara, enquanto se sentam diante da mesa, de olhos voltados para o realizador. A dinâmica que se estabelece evoca a relação entre estudante e professor, imersa num ambiente carregado de poder, onde a tensão, o controlo e a autoridade de uma sala de aula parecem dominar. As respostas, muitas vezes cautelosas, refletem essa atmosfera de pressão. Como espectadores, somos constantemente lembrados da presença da câmara, cuja intensa vigilância transforma a simples troca de palavras num ato de observação, moldando o comportamento das crianças diante da expectativa adulta.
A resposta a uma pergunta aparentemente simples, “Quem te ajuda com os trabalhos de casa?”, revela um padrão profundo que traça o perfil cultural e social de um país. Quase 40% dos pais são analfabetos ou iletrados, enquanto muitos se sentem exaustos, estão ocupados e são impacientes. Incapazes de ajudar os filhos nas tarefas escolares, a responsabilidade recai frequentemente sobre os irmãos mais velhos. Esse ciclo de analfabetismo e cansaço cria uma dinâmica em que muitos pais, refletindo as suas próprias limitações e frustrações, recorrem ao castigo como forma de lidar com os filhos. E esse cenário conduz-nos a questões mais complexas. Ao ouvirem a palavra “castigo”, as crianças associam-na imediatamente à violência física, enquanto o conceito de “encorajamento” soa-lhes estranho, intangível, desconhecido. Quando questionados sobre elogios ou incentivos, hesitam na resposta; sobre castigo e disciplina, respondem com firmeza e convicção. Ao descreverem o peso dos trabalhos de casa, começam a revelar não apenas o fardo da obrigação escolar, mas também os abusos que sofrem em casa e na escola, por pais e professores, desprovidos de qualquer alicerce positivo.
À pergunta “O que queres ser?” uma das crianças responde: “Um piloto”. A resposta é simples, mas a razão é perturbadora: “Matar Saddam Hussein.” Se Saddam Hussein não fizesse parte da equação, seria diferente: “Queria ser um médico, para salvar vidas.” Mas este é apenas um dos vários depoimentos impressionantes que causam desconforto ao espectador. Num outro momento, ouvimos uma criança a validar a violência que sofre às mãos do pai, argumentando que, por vezes, é ela mesma quem contribui para que a figura paternal perca a paciência. O número de estaladas que recebe é sempre o mesmo: sete. Por essa razão, a criança não esconde que, se tiver um filho no futuro, repetirá o mesmo gesto caso ele não seja “disciplinado.” Por outro lado, uma outra criança, visivelmente e profundamente traumatizada pela violência dos professores, treme e chora diante da câmara e do realizador, pedindo repetidamente para ir embora ou, pelo menos, que o seu amigo pudesse entrar, para se sentir acompanhada e ser-lhe oferecido consolo. O medo e a angústia estampados no rosto da criança tornam-se o reflexo de um sistema que, em vez de instruir e amparar, fere e asfixia.
Além das crianças que partilharam as suas vozes, dois pais também foram ouvidos ao revelarem as suas angústias e inquietações. Um deles, cuja vida foi marcada por anos vividos além-fronteiras, expressa a sua preocupação sobre o modelo de ensino predominante no Irão, que de tão enraizado em métodos memorizados, repetitivos e mecânicos, coloca os estudantes sob uma pressão constante. Teme que, neste cenário, o filho seja privado da liberdade de pensamento crítico, de questionar e cultivar a criatividade e a imaginação. Por sua vez, o outro pai refere sentir o peso esmagador da responsabilidade que recai sobre os seus ombros no que diz à correspondência de expectativas em desempenhar um papel ativo no sucesso escolar do filho.
Recorde-se que já no aclamado Khane-ye doust kodjast (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987), Kiarostami abordara a infância, a educação e a sociedade iraniana. Em Mashgh-e Shab, revela-se gradualmente o peso de uma sociedade opressiva, marcada pela guerra e pela pobreza, e um sistema educacional que exige a produção sem considerar as emoções humanas. Em vez de procurar respostas através dos intervenientes pertencentes ao sistema, Kiarostami escolhe dar voz àqueles que são afetados — as crianças — que inconscientemente, refletem a ideologia dominante à época e mostram que a violência, além de física, e a educação, excessivamente rígida, moldam a perceção que têm de si mesmas e do mundo ao seu redor. Recuperando as palavras de um dos pais entrevistado: “Não devemos dar o peixe aos nossos filhos. Devemos ensinar-lhes a pescar.” Apenas assim se poderá romper o ciclo responsável por gerar uma geração “indignada, hostil e defensiva.”
Mashgh-e Shab (Trabalhos de Casa, 1989), de Abbas Kiarostami, é exibido hoje, dia 10 de março, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, às 18h30, no âmbito de uma organizada em parceria com o recém-criado Centro de Estudos, Divulgação e Reabilitação da Obra Santiana (CEDROS), que tem como objetivo estudar e divulgar a obra de João dos Santos, psiquiatra e pedagogo que defendeu a importância da Educação pela Arte.