Não quero que pensem em mim como um rosto, um nome ou um corpo, ou o que quer que seja — apenas como música. Porque, quando eu morrer… será isso, e só isso, que há-de ficar.
Jeff Buckley partiu quando eu ainda não havia nascido. Mas, um dia, chegaria o momento de mergulhar na sua genialidade e de conhecer a história de como a sua partida prematura o impediu de alcançar tudo aquilo que o mundo antecipava e desejava. Apesar da brevidade da sua carreira, Buckley deixou-nos um legado intemporal. A voz humana é, por natureza, um instrumento musical, mas a de Jeff era de outra ordem: tão delicada e poderosa ao mesmo tempo, capaz de transformar qualquer canção em algo sagrado. It’s Never Over, Jeff Buckley (2025) revela-se uma raridade. O filme não nos mostra o mito trágico que tantas vezes se conta, mas o homem e o artista – vulnerável, intenso, desconcertante e imperfeito. Revela o Jeff Buckley profundamente humano, com as suas feridas, os ecos da infância e uma forma de se dedicar à música como poucos. Há uma honestidade no retrato que atravessa cada imagem e cada palavra, que toca o coração de quem o ouve como um gesto de ternura e justa homenagem.

Realizado por Amy Berg, It’s Never Over, Jeff Buckley (2025) é o primeiro documentário oficial sobre a vida e obra do cantor, compositor e guitarrista norte-americano. A produção apresenta imagens inéditas de arquivo e inclui novas entrevistas com a sua mãe, Mary Culbert, e com as ex-companheiras Rebecca Moore e Joan Wasser, assim como testemunhos dos antigos colegas de banda Michael Tighe, Matt Johnson e Parker Kindred, dos músicos Ben Harper e Aimee Mann, e dos executivos da indústria musical Kate Hyman, Michele Anthony e Don Ienner. Combinando registos raros e relatos íntimos – muitas vezes sobrepostos a um fundo de película que evoca o desgaste do tempo – o filme oferece-nos vislumbres de cadernos e desenhos pessoais preenchidos com a caligrafia de Jeff, e a música de todas as fases da sua carreira, desde rascunhos a versões finais. As mensagens de voz e os diálogos das sessões de gravação entrelaçam-se na montagem, convidando o espectador a sentir-se parte da jornanada e aproximando-o das memórias de quem o rodeou.
Foi nos cafés e pequenos clubes, com atuações intimistas, discretas e despretensiosas, que começou a conquistar o público. Naqueles espaços, podia desbravar experimentações tocando covers e, mais tarde, abrir novos caminhos ao apresentar as suas próprias canções.
Em 1966, Mary Guibert segurava nos braços Jeff pela primeira vez. Mãe solteira, havia-se separado de Tim Buckley, músico aclamado, autor de nove álbuns, capaz de captar “o mais belo da música folk, o mais extremo do jazz e o mais ousado do rock e dos blues“. Para criar Jeff, Mary abandonou o sonho de ser atriz e pianista concertista, entregando-se por completo à educação do filho. Jeff cresceu sem o pai. Tim seguiu outro caminho, viveu com outra mulher e, mais tarde, com um filho adotivo. Morreu aos 28 anos, quando Jeff tinha apenas oito, deixando uma ausência profunda que o acompanharia sempre. No início dos anos 90, Jeff mudou-se para Nova Iorque e, em 1991, subiu ao púlpito da Igreja St. Ann para a sua primeira apresentação pública num concerto em homenagem ao pai. Homenagem, essa, que viria a ser o ponto de partida da sua carreira.
Foi nos cafés e pequenos clubes, com atuações intimistas, discretas e despretensiosas, que começou a conquistar o público. Naqueles espaços, podia desbravar experimentações tocando covers e, mais tarde, abrir novos caminhos ao apresentar as suas próprias canções. Como o próprio dizia: “Decidi fazer da música uma mulher e entregar-me a ela. E, mais tarde, decidi fazer da música um homem e entregar-me a ele”. O Sin-e tornou-se rapidamente um espaço emblemático para a sua ascensão, e ali as suas influências eram visíveis: Nina Simone, que inspirou a sua voz e intensidade (“Eu queria ser a Nina Simone”); Edith Piaf, pela sensualidade, o romance e a tragédia que carregava nas canções; Led Zeppelin (“As minhas principais influências musicais? Amor, raiva, depressão, alegria e Zeppelin”); e Nusrat Fateh Ali Khan, o seu «Elvis». Nessas noites, a forma como a voz de Buckley preenchia a sala criava um género de intimidade cinematográfica – como se a câmara se aproximasse do palco, revelando não só o músico, mas o homem por detrás dele.
Com a assinatura do contrato com a Columbia Records em 1992, Jeff Buckley começava a escrever o seu nome na música. Dois anos depois, surgia Grace: um álbum que respirava emoção em cada faixa: Grace, Mojo Pin, Lover, You Should’ve Come Over, Last Goodbye ou So Real revelavam o alcance da sua voz e da sua alma, enquanto os covers que se tornariam a sua assinatura, como Hallelujah, de Leonard Cohen, e Lilac Wine, de James Shelton (popularizada por Nina Simone), traziam à tona a profundidade e singularidade da sua interpretação. A tour que se seguiu pelos Estados Unidos e Europa transformou pequenos clubes e salas de concerto em lugares de quase devoção. A sua música, livre de rótulos, desafiava géneros e fugia às categorias das rádios, mas cada nota parecia preencher o ar com uma intensidade que prendia o público. E o impacto estendeu-se além das plateias: Robert Plant reconheceu-o como “o melhor cantor contemporâneo do mundo”, David Bowie elegeu Grace como “um dos álbuns mais memoráveis de sempre”, e os Radiohead, após assistirem a um concerto em Londres, encontraram a inspiração que faltava para a gravação da reconhecida Fake Plastic Trees.
Buckley foi um artista extraordinário, e a sua morte permanece uma tragédia que ressoa não só no plano humano como no universo musical.
Em Memphis, depois de longas digressões exaustivas, Jeff Buckley encontrava refúgio no jardim das borboletas do jardim zoológico. Observava o tratador trabalhar e, muitas vezes, sentia que as crisálidas – dizia aos amigos – não eram manuseadas com a delicadeza que exigiam. Um gesto simples, mas revelador da sua sensibilidade quase palpável. O filme recorre, repetidamente, a pequenos detalhes como este para nos mostrar o carácter de Jeff. A sua sensibilidade, tantas vezes apontada ao longo da narrativa, era algo que o próprio admitia: “Toda a gente é sensível, mas às vezes os homens não querem reconhecê-lo”. Essa mesma delicadeza transparecia na sua identificação com cantoras como Nina Simone e Edith Piaf, e na capacidade rara, quase inédita num cantor masculino, de evocar a sua arte. Mas essa sensibilidade não se limitava à música: reflectia-se, igualmente, na forma como se relacionava com as mulheres da sua vida – a mãe, Mary, e as parceiras românticas, Rebecca e Joan – não apenas enquanto ser humano, mas na sua visão artística.
A depressão e os problemas de saúde mental de Jeff Buckley tornavam-se cada vez mais evidentes. Inquietações que raramente partilhava rodopiavam incessantemente na sua mente, carregando-o com uma sensação de peso constante. À medida que a popularidade crescia, amplificava a pressão pelo sucesso, e a exigência da editora para o segundo álbum fazia-o temer pela sua liberdade criativa. Nas semanas que antecederam a sua morte, Jeff telefonou a amigos e conhecidos, pedindo desculpas e procurando encerrar relações, como se de uma despedida se tratasse. Numa das cenas mais comoventes do filme, Jeff discute com os amigos sobre o futuro. Quando surge a pergunta sobre onde se vê daqui a dez anos, fica em silêncio, estranho e vazio: não consegue imaginar. É nesse momento que percebemos a intensidade da sua fragilidade, a complexidade do seu espírito e a melancolia que permeava cada gesto da sua vida.
Em Maio de 1997, Jeff Buckley, então instalado numa cabana em Memphis e a recuperar do desgaste acumulado de três anos de digressões, encontrou um fim trágico no rio Wolf, morrendo afogado. Como acontece com muitas figuras do rock que falecem prematuramente aos 30 anos, surgiram rapidamente rumores sobre drogas. Mas os factos eram claros: o relatório toxicológico revelou apenas vestígios de álcool, sem qualquer substância ilícita. Não houve excessos, nem vícios fatais: a sua morte foi um acidente trágico, um instante de fatalidade que o documentário apresenta com dignidade e respeito. Apesar disso, o filme não deixa de transmitir a dimensão quase sinistra do acontecimento. Buckley foi um artista extraordinário, e a sua morte permanece uma tragédia que ressoa não só no plano humano como no universo musical.

Por fim, não poderia deixar de evidenciar a sequência que encerra o filme e que me ficou gravada na memória. Ao som de Hallellujah, vemos Mary, sentada e profundamente emocionada, diante de uma caixa vermelha aberta, repleta de fotografias de um Jeff Buckley ainda muito jovem. Ao seu lado, um gravador começa a reproduzir a última mensagem de voz que ele lhe deixara: “Olá, mãe. Aqui é o teu filho. Há algumas coisas que tenho de te dizer. É muito especial para mim… saber que de ti tenha vindo uma criança. E que és a pessoa que lutou por essa criança. Qualquer pessoa pode ser famosa, Mary. Mas é preciso um espírito verdadeiro… para criar um filho. Tu trouxeste-me ao mundo. Muitas das minhas frases quando canto vêm de ti. Estou feliz por seres a minha mãe. Estou feliz pelos dons que me deste. Sabes o quanto te amo. Amo-te. Amo-te tanto”. A cena é uma pintura de visceralidade: a música envolve a imagem, a voz de Jeff ecoa suavemente, e cada gesto de Mary reverbera com amor e perda. É um adeus que não se limita a palavras; é uma presença que se prolonga, habitando os cantos da memória do espectador, tornando-se parte de si, mesmo depois da luz do ecrã se apagar. No fundo, era o que Jeff desejaria que permanecesse de si: a centelha que insiste em brilhar, mesmo quando o silêncio se torna eterno.
It’s Never Over, Jeff Buckley (2025) será exibido no DocLisboa – Festival Internacional de Cinema, na secção Heartbeat, no dia 17 de Outubro, às 19h, no Cinema São Jorge. Há uma segunda oportunidade a 26 de Outubro, às 15h, na Culturgest.
