Dia 4 de Julho o Bloco de Esquerda e o partido ecologista Os Verdes apresentaram, respectivamente, duas propostas de lei (ambas eventualmente chumbadas) sobre a exibição televisiva das Touradas assim como o seu sistema de apoios e financiamentos públicos.
Uma das propostas pretendia que estes eventos fossem considerados como para maiores de 18, reduzindo assim os horários de emissão apenas às madrugadas. Outra proposta pretendia que se desse a cessação do pagamento de dinheiros públicos à produção deste tipo de espectáculo, e que a RTP deixasse de emitir tais eventos. As motivações para estas propostas são as costumeiras das organizações partidárias (mas também da sociedade civil) defensoras dos direitos dos animais, acusando os eventos de ilícitos. Do outro lado da barricada temos as organizações taurinas que se afirmam protectoras de uma parte da cultura nacional e acusam os outros de totalitários e fascisantes, afirmando: ‘A cultura é do povo e não é do estado‘.
Não estando eu entrincheirado em nenhum dos lados, olho para esta questão e apercebo-me de algo curioso: como devemos classificar as emissões televisivas e que crivo podemos aplicar (se podemos aplicar algum) ao apoio das actividades culturais?
Em Portugal é a Inspecção Geral das Actividades Culturais – IGAC que é responsável pela classifcação etária de todos eventos culturais (mas também da protecção dos direitos de autor e a inspecção dos recintos de espectáculo) entre eles, filmes, videojogos, peças de teatro, bailados. A verdade é que no nosso pais não só as classificações etárias são (quando comparadas com outros paises) mais relaxadas, como é também relaxado o controlo das admissões a menores (quantas não foram as vezes que me apercebi de jovens adolescentes acompanhados pelos pais – ou não – vendo filmes da série Saw). Mas noutros países a regulação é muito mais apertada, considerem-se os casos de The Human Centipede (2009) e respectivas sequelas ou A Serbian Film (2010) que viram a sua exibição comercial coartada. O segundo viu a sua exibição proibida num festival de cinema de terror em Barcelona, uma vez que os responsáveis do governo regional consideram-no inapropriado por causa de uma cena de estupro de uma criança, quanto ao segundo a questão tomou outras proporções. The Human Centipede foi bastante bem recebido por várias pessoas no meio e pelo público amante do género (recebeu vários pémios, entre eles no Toronto Film Festival e no Austin Fantastic Fest); deste modo uma sequela foi produzida. Mas aqui adensa-se a questão, a British Board of Film Classification-BBFC baniu o filme da exibição comercial afirmando: “Enquanto no primeiro filme a ideia da centopeia é apresentada como uma revoltante experiência do médico, com o foco nas vítimas tentando escapar, esta continuação apresenta a centopeia como o objeto das fantasias sexuais depravadas do protagonista.”
Ou seja, no primeiro filme não os incomodava de sobremaneira a ideia de um filme sobre um médico que rapta indivíduos e cirurgicamente liga as bocas de uns aos anus de outros, mas quando se inicia um processo de sexualização da criatura aí é que a porca torce o rabo. Porque razão houve, por parte do painel de avaliação, uma necessidade de encontrar na centopeia uma tentativa de escapar à sua situação? Não podiam eles gostar? (Mais tarde a BBFC retirou a proibição permitindo a exibição do filme, só que com extensos cortes.)
A pergunta que se faz é: quais são os limites da exibição comercial de certos produtos culturais (quer em sala, quer na televisão, quer por outros meios) e será ou não legítimo impedi-la? Uma resposta é óbvia: objectos como snuff films ou pornografia que envolva crianças são obviamente criminalizados logo na sua produção, mas como lidar com objectos de ficção que mimetizem os géneros anteriores? A resposta não é certamente trivial e prende-se com a limitação do dedo do Estado. Um caso curioso é o de Cannibal Holocaust (Holocausto Canibal, 1980) em que o realizador Ruggero Deodato foi preso até se provar que os actores presentes no filme estavam de facto vivos – podem ler mais aqui.
Quanto à segunda questão, há apenas que perceber se há (ou não), no acto de cortar os apoios aos espectáculos tauromáquicos, uma abertura de precedente para o corte dos apoios a qualquer tipo de actividade cultural, ou que esta atribuição passe a ser feita consoante uma moral estipulada pelo Estado que, sem sombra de dúvidas, faz lembrar um período muito próximo da nossa história. Obviamente não foi esse o propósito das propostas de lei apresentadas, mas levanta-se uma pergunta: qual é a moral do Estado e como a estipulamos?
P.S.: Enquanto escrevo este post scriptum tenho que admitir que estou profundamente enjoado (e não creio que tenha sido por causa do jantar) e por isso não aconselho a visualização dos trailers dos filmes de The Human Centipede, que deixo maldosamente aqui e aqui.