É num táxi a caminho do ensaio do programa fictício Midnight With Madeline, que Jackie (Cyd Charisse) cita Shakespeare a Ted (Gene Kelly) e este tem uma espécie de revelação: sabe que a sua vida até ali pode ser resumida por esses versos e nós descobrimos que também o filme toma esse desencanto com os amores, os amigos e a vida, como um dos temas. Os versos são os seguintes: “Heigh-ho! sing, heigh-ho! unto the green holly: Most friendship is feigning, most loving mere folly”. Ela atribui o excerto da canção a The Tempest mas Ted corrige-a na despedida, dizendo que é de As you Like it. E não se acaba aqui a aproximação e as parecenças deste filme com essa peça de Shakespeare em particular. E não se acabam aqui os encontros e desencontros em Nova Iorque.
It’s Always Fair Weather (Dançando nas Nuvens, 1955) é um musical de muitas despedidas e não só das do filme em si. Marca a última colaboração de Kelly com Stanley Donen e parece prever, já, o fim do género. É um dos últimos filmes produzidos por Arthur Freed e já não olha as coisas com tanta inocência [mas será que é verdade que até aqui o género só fazia isso? E Meet me in St. Louis (Não há como a nossa Casa, 1944)? E Yolanda and the Thief (Yolanda e o Vigarista, 1945)? E Singin’ in the Rain (Serenata à Chuva, 1952)? A inocência não seria só a superfície que cobria a complexidade? E isto partindo do princípio que a inocência é uma coisa simples, porque se calhar até nem é]. As “coisas” serão as de sempre, o mundo, a sociedade, etc. Por cada canção edificante, há qualquer coisa de sombrio, de inclassificável, a povoar o filme. Os números musicais são quase todos à noite e nascem de um desespero por isolamento, por descoberta de si, por renúncia à mediocridade. Mas, bem, vamos por partes:
1. “Most friendship is feigning, most loving mere folly”: Angie (Michael Kidd), Doug (Dan Dailey) e Ted (Kelly) tornam-se melhores amigos em combate, na 2ª Guerra Mundial, e passam uma última noite juntos em Nova Iorque antes de regressar a casa. Selam a amizade com cânticos e bebedeira e fazem a promessa de voltar ao “Tim’s Bar”, dez anos depois. O dia do reencontro é do que se ocupa o resto do filme, tentando perceber o peso desses dez anos e do que significa para cada um dos amigos. “It’s a long way from here… it’s ten years…”. Isto só não se transforma em baboseira sentimental porque depois de verem as mudanças dos outros, no dia do reencontro (a primeira impressão), vêem então as mudanças neles próprios (e é aqui que a coisa se torna extraordinária). Não gostam do que vêem. Podia falar dos casos de todos, mas ocupo-me do de Doug. Doug queria ser artista e a vida não permitiu, transformou-se num empinado profissional, com medo de morte da vergonha e do escândalo. Só quando apanha uma bebedeira monumental (de sons e Martinis) e faz figura de parvo num jantar é que percebe que foi parvo o tempo todo e se calhar menos nesse jantar. “And sales-resistance-wise and competition-wise we have nosed out every other brand from coast to coast”, é assim que vê o palavreado chato dos colegas empresários escapar-se lhe na mente como uma revelação, num flashback até aos sonhos da juventude – a força dos ritmos. E é neste dia de confusões e desatinos, de álcool, cigarros e negócios com a máfia (televisiva e efectiva) que os três entrevêem um sentido. Encontram-se a si próprios “no outro”.
2. O que é um musical? Não sei bem, embora saiba que se faça nestes termos, tomando o quotidiano em construção rítmica, melódica, não escapando, mas divagando e vislumbrando (o número que desconstrói Strauss; as ruas pelos patins de Gene Kelly), maneira de expressar o que não se consegue por palavras. Seja a felicidade ou a melancolia. A maior parte das pessoas vê esse isolamento como “negação” dos sentimentos, da vida, e talvez seja mais “prolongamento” (como no número bêbado das tampas do lixo, como nos mergulhos nocturnos para o meio da estrada, os patins outra vez, mergulhos para o desconhecido, aventurar-se para a vida, numa palavra: liberdade); E a música e a imagem (não só nos musicais) não podem ser a ilustração uma da outra, como na maior parte dos filmes, mas duas forças independentes que vão dar ao mesmo sítio, tomar parte do tal “prolongamento”, com nuances que fazem as harmonias e que contam a história. É o que aqui nos mostram. Com assobios e contorcionistas, com sapateado e as pernas de Cyd Charisse, com boxe e patinagem.
3. A autoria. Sobre os três filmes que Gene Kelly e Stanley Donen realizaram juntos, costuma-se dizer que só é Kelly o criador ou que é só Donen. Talvez se diga também que é uma criação conjunta e estou mais deste lado, porque não acho que qualquer dos trabalhos dos dois a solo (por mais interessantes que sejam) se comparem sequer a estes. O último, este, é o que mais me interessa. Por tomar as ideias dos dois primeiros e ir noutro sentido. Trocam-se os marinheiros de On the Town (Um Dia em Nova Iorque, 1948) e o mundo do cinema de Singin’ in the Rain pelos soldados e o mundo da televisão deste filme, imprimindo a despedida e o adeus profissional em película. Já dizia Jacques Rivette que “todo o filme deve contar a sua rodagem”.
4. O sombrio e o inclassificável. São aqueles dez anos de que pouco se sabe e assombram o filme que explicam o cinismo dos três amigos na primeira hora do filme. Sabe-se das profissões, sabe-se das relações, portanto nada se sabe, nada se conhece. E deve ser por este passado oculto que tudo sabe a adeus. Que o “Tim’s Bar”, além de ser ponto de encontro, é de separação também. “For time has come for parting and the marching music ends”, aquele plano de grua a afastar-se sabe tudo, que as coisas já não podem ser as mesmas, sabe tudo. As despedidas fazem-se sempre na dúvida, saco na mão, noite fora. Aquele plano de grua sabe também que o Cinemascope ia acabar, que o musical ia cair, que os estúdios iam ruir. Até hoje o sabe.
5. Há uma relação com as coisas, os objectos, que também me parece merecer alguns elogios. A narrativa constrói-se também pelas pequenas coisas e sobre serem importantes [dos filmes contados por objectos – Red River (Rio Vermelho, 1948) e o colar – aos que fazem da omissão dos objectos, a trama do filme – Rope (A Corda, 1948)]. Em It’s Always Fair Weather os adereços também tomam parte da acção, das portas de táxis ao candeeiro caixa-forte, das roupas-engodo às estátuas de arremesso, dos patins (os patins, sempre os patins) aos cigarros: “Up in smoke” vão os sonhos. Pausas para ouvir a engrenagem do mundo e das amizades. Das tristezas. Enfim.
6. A televisão, esse bicho terrível. Quando era altura de lutar contra ela. Quando ainda fazia sentido. Quando ainda resultava. O scope esmagava os “ecrãzinhos”, mostrava como eram pequeninos. A diferença não era só de números e ratios, como é agora, tinha um peso enorme, era possível mergulhar nos filmes e ser esmagado por eles. Aquele Midnight with Madeline é como um Tardes da Júlia, é a mesma tristeza e é a mesma exploração. Ridículo e engraçadíssimo. Como no fim conflui tudo nesse programa, como a amizade dos três é explorada pela televisão, combate-se a selvajaria com selvajaria, que é como chamar as coisas pelos nomes. Cá se fazem cá se pagam. Com Klenzrite.
7. Shakespeare, pois claro! As You Like it, a peça citada no filme, é a peça com mais canções do inglês, um musical antes do tempo. Nela, também as personagens rompiam com o passado, fazendo-se passar por quem não eram, até se revelarem a si próprios e aos outros e se descobrirem. Tal como Jackie e Ted. E é dessa peça este monólogo do melancólico Jaques, a personagem que melhor serve de portal para It’s Always Fair Weather e a quem dou as últimas palavras: “All the world’s a stage, and all the men and women merely players: they have their exits and their entrances; And one man in his time plays many parts, his acts being seven ages. At first the infant, mewling and puking in the nurse’s arms. And then the whining school-boy, with his satchel and shining morning face, creeping like snail unwillingly to school. And then the lover, sighing like furnace, with a woeful ballad made to his mistress’ eyebrow. Then a soldier, full of strange oaths and bearded like the pard, jealous in honour, sudden and quick in quarrel, seeking the bubble reputation even in the cannon’s mouth. And then the justice, in fair round belly with good capon lined, with eyes severe and beard of formal cut, full of wise saws and modern instances; And so he plays his part. The sixth age shifts into the lean and slipper’d pantaloon, with spectacles on nose and pouch on side, his youthful hose, well saved, a world too wide for his shrunk shank; and his big manly voice, turning again toward childish treble, pipes and whistles in his sound. Last scene of all, that ends this strange eventful history, is second childishness and mere oblivion, sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything”.