As primeiras imagens de Argo (Argo, 2012), a terceira longa-metragem de Ben Affleck — outrora actor mediano (ou medíocre, consoante o rigor do olhar) e parte da dupla “Bennifer”, alvo de intenso escrutínio e chacota generalizada, “reencarnado” como respeitável realizador de cinema —, trazem à memória Persepolis (Persépolis, 2007), a banda-desenhada e o filme que popularizaram Marjane Satrapi: uma animação sobre a revolução que levou à queda do regime de Reza Pahlavi e à tomada do poder por parte dos aiatolas (e à mudança de nome de um país: de Pérsia a Irão). Quando a história de Argo “começa” realmente, com a invasão da Embaixada Americana de Teerão pela populaça e consequente sequestro dos seus funcionários (que iria durar 444 dias e derrubar um presidente americano), o espectador vê-se metido num filme de espionagem dos anos 70 (as perucas e os bigodes postiços não mentem). Depressa se descobre num enredo baseado em factos verídicos. Quantos enganos encerra este (um) filme?
Se a animação cai após a pequena introdução (ou só surja, estática, lá mais para a frente), o género e veracidade dos factos ficcionados não se descolam de Argo. E são precisamente estes dois aspectos que obrigam às seguintes perguntas: o que é a verdade? O que é a ficção? O que é um filme? Qualquer intriga que envolva espiões acarreta uma certa duplicidade. Mas é na originalidade dessa duplicidade que o que parecia uma mera fita de acção mais ou menos genérica se transforma na fonte de todas estas interrogações. Ora veja-se: aquando da invasão da embaixada, seis funcionários escapam-se e escondem-se na Embaixada Canadiana. Como os tirar do Irão antes que as autoridades do país descubram que andam à solta? A ideia de Tony Mendez (interpretado com suave abatimento pelo próprio Affleck, demonstrando que não é tão mau actor como o pintam ou o que uma barba faz por um homem), um agente da CIA especializado em resgatar operacionais americanos, é mascará-los de equipa de rodagem de um filme de ficção científica a fazer repérage no Médio Oriente.
A proposta apresenta-se disparatada mas, dada a luz verde, Mendez lá vai para Hollywood montar uma produtora fictícia com um maquilhador (parece mentira) e uma velha raposa rabugenta (o sempre excelente Alan Arkin), e com esles escolher um argumento (o tal Argo — o filme que nunca chega a ser), mandar desenhar storyboards, lançar anúncios na imprensa e preparar uma festa de apresentação, com fatos espaciais, adereços e uma leitura integral do guião. Então, afinal Argo é sobre Hollywood? Serve, pelo menos, de óptima sátira nos minutos que por lá passa. Claro que, a seguir, Mendez tem de se lançar às feras: entra no Irão para ajudar os seis a decorar as novas identidades (um é o realizador, outra a argumentista, outro um assistente de produção e por aí fora) e preparar a fuga. E, como se trata de um filme de Hollywood (mas a que Argo me refiro?), as peripécias amontoam-se até ao final trepidante em que a danação está sempre por uma unha negra.
A realidade é mais estranha do que ficção e a trama de Argo só vem dar razão a esta velha máxima. O argumento do filme (de Chris Terrio) é inspirado num artigo da Wired escrito por Joshuah Bearman e o que tem de mais fantasioso (Hollywood, a produtora, as personagens) vem lá escarrapachado. O que não o impede de mentir descaradamente noutras situações — principalmente nas atribulações da última meia hora —, naquelas que até se julgaria as mais plausíveis. No entanto, só são plausíveis porque o espectador está habituado a ver o mundo através da típica estrutura dos três actos do cinema americano (em que é suposto a tensão aumentar à medida que o fim se aproxima). A realidade, como se pode ler no artigo, no momento da fuga propriamente dita, não foi escrita por um bom argumentista: Mendez e os outros safaram-se com uma facilidade exasperante. Qualquer espectador se desiludiria com um clímax tão frouxo. Se é que se poderia falar de clímax; seria antes um coito interrompido.
Argo revela uma vez mais que não há arte tão mentirosa quanto o cinema, mesmo quando resolve contar a verdade. Ou que não há arte tão verdadeira quanto o cinema, mesmo quando deturpa e inventa. É um bom filme? Bastariam estas tangentes para fazer dele um objecto interessante. E como fita de acção de Hollywood com uma premissa deliciosa funciona plenamente. E já se sabe que as máquinas têm sempre razão.