Todos conhecem aquele dito: “Deus é brasileiro”. Não estou aqui para discutir a nacionalidade do Superior, mas permitam-me esta interrogação: então e o Diabo? Eu diria que também é brasileiro e que se chama Zé do Caixão. Quem é Zé do Caixão? Um agente funerário com poucos ou nenhuns escrúpulos que gosta de assediar, humilhar e violentar os homens e mulheres da pequena vila onde tem montado o negócio de uma vida: a morte. Mas o que é a morte? Mas o que é a vida?
Enquanto vai lançando o terror pela povoação, o Príncipe das Trevas excursa, socraticamente, sobre a vida como princípio da morte ou a morte como princípio da vida, sobre a existência que não existe, sobre a atracção cósmica ou a procriação terrena, sobre a imortalidade do sangue, sobre a pureza dos mais inocentes – as crianças – ou a perversão congénita ao Homem adulto… o nihilismo de Zé do Caixão vai-se vertendo, gota a gota, ao ritmo das suas torturas sádicas infligidas aos fracos desta vida. É megalómano no pensamento, sulfuroso nas palavras (mas o seu gosto por ácido só vem mais tarde) e terrorista na acção.
Quem é Zé do Caixão?, perguntei eu, mas a sua força – como um Cristo em reverso – também está na presença icónica. Por isso, vou já já já responder ao seguinte: como é Zé do Caixão? Cartola e capa pretas, barba densa sobre o rosto pálido, sobrancelhas acentuando a expressividade dramática do rosto, magro, mas, aviso, não o tomem por fraco. Fala alto e fala muito com as mãos, apontando o dedo a quem lhe faz frente – a começar pelo espectador, esse ser estranho, como chega a apelidar num dos seus filmes – e marcando com elas os rostos das suas vítimas – preferencialmente, mulheres, os “seres inferiores” que tanto despreza. Nas mãos, outra imagem de marca: as unhas compridas, que repugnarão os mais sensíveis, mas que lhe emprestam, desde logo, a “distinção” necessária a um homem diferente, isto é, a um ser “superior”. (Nesta matéria – e é de matéria que tratamos – estou certo que Deleuze, outro filósofo de distintas unhas, teria um Zé do Caixão a viver algures no seu subconsciente.)
Feitas as apresentações, parece que pouco mais há a dizer de À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), o filme que “pare” a lendária figura do horror e que projecta mais alto o nome de José Mojica Marins no Cinema Novo brasileiro. Dito rápido, depressa e – tinha de ser – mal, Mojica está para o Cinema Novo brasileiro, como Georges Franju está para a Nouvelle Vague francesa. Glauber Rocha terá compreendido e penso mesmo que terá sido influenciado pelo seu cinema, mas – como o próprio Mojica se queixa, ainda hoje – muitos foram os que viram no seu cinema apenas um entretenimento camp de mau gosto que tinha pouco ou nada a ver com esse período de afirmação do cinema brasileiro. Felizmente, também houve outros – e Glauber Rocha terá sido um deles – que se souberam espantar com um dos artistas mais singulares do seu país. Para alguns, Mojica terá criado o primeiro Frankenstein/Dracula da modernidade, o que, para além de justíssimo, é uma afirmação que fica pela rama do que realmente se alcança aqui, sobretudo neste seu primeiro filme que dá pele a Zé do Caixão. Na minha opinião, há outra pergunta que falta fazer e que inquieta tanto ou mais que as anteriores: sim, vimos quem é, sim, também vimos como é, mas, digam-me, de onde vem Zé do Caixão?
A expressão “cineasta à frente do seu tempo” poderá parecer um recurso pouco imaginativo ou indecente para qualificar Mojica – até porque, para muitos, só o facto de eu o estar a qualificar de “cineasta” mereceria uma tese própria defendida ante júri. Todavia, se há realizador que merece o epíteto, ele está aqui bem identificado, nestas linhas. Podemos puxar pelos neurónios e evocar Vincent Price, Lon Chaney, Robert Mitchum em The Night of the Hunter (A Sombra do Caçador, 1955) ou, claro, os monstros de James Whale, Terence Fisher ou Val Lewton, mas não… Zé do Caixão pertence a toda uma outra espécie de “vilões”, aliás, nem a sua vilania convence completamente, sobretudo quando este tempera a sua misoginia crónica e o seu racismo darwinista com altas perorações humanistas, que não devem nada a um Jean-Jacques Rousseau, sobre a pureza das crianças contra a baixeza do “mundo cão” dos adultos – chega mesmo a arrancar um rapazito, in extremis, das garras da morte, em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). (Para os não-crentes, também poderá “cair bem” a heresia ultrajante de Zé do Caixão, que por exemplo neste seu primeiro filme faz questão de comer carne em dia de sexta-feira santa, zombando sem freios das “crendices” do povo.)
Também podíamos falar em Roger Corman ou – talvez menos – em Herschell Gordon Lewis, mas Mojica e a sua persona cinematográfica trabalham outro género de mitologia. Zé do Caixão é uma figura nascida claramente do burlesco, aliás, a sua sobrevivência para lá de um, dois, três… vários filmes é prova disso mesmo. Na realidade, a sua sobrevivência para lá do ecrã é ainda mais eloquente nesta matéria: em O Despertar da Besta (1970), filme metareferencial que antecipa em vários anos muito do que Wes Craven fez com séries como Nightmare on Elm Street, Mojica Marins aparece num debate televisivo e, por mais que uma vez, é referido como Zé do Caixão. Confusão tão poderosa – quase uma impossibilidade em “separar peles” – só acontece, por exemplo, num Chaplin ou num Keaton.
Quanto mais olhamos para a frente, isto é, “para onde foi parar Zé do Caixão?” melhor nos apercebemos da dimensão absolutamente nova do cinema de Mojica, em particular, do magnífico À Meia-Noite Levarei Sua Alma. O seu registo paródico, já de síntese pós-moderna, em relação ao cinema de estúdio norte-americano de baixo orçamento – em vias de extinção – mais os – já mais que extintos – truques expressionistas mais ainda a proeminência de uma figura complexa, em torno da qual tudo gravita, que vem comentar aspectos da sociedade brasileira – e isto vai-se acentuar até ao seu filme mais perseguido pela censura, o já citado O Despertar da Besta – lançam as sementes de uma estética completamente disruptiva. Não se trata, contudo, de uma homenagem mais ou menos subtil a um cinema ido, mas já de uma (in)digestão apressada de toda a história do cinema.
O facto de Mojica ter vivido toda a infância literalmente em duas salas de cinema, onde o seu pai trabalhou, e que Zé do Caixão, segundo conta, tenha nascido de um “pesadelo” – precisamente, não de uma “colagem” consciente de referências cinéfilas – consubstanciam o nível da digestão e a forma como foi do instinto – tema caro ao próprio Mojica, vide o último episódio de O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968) – e não da razão que nasceu este filme. Claro, Buñuel é assumidamente um dos seus heróis, mas este surrealismo está a montante de um Jodorowsky, de um Lynch, de um Argento (não? Então atentem ao trabalho de luz e cor em filmes seguintes)… Na realidade, e agora vou ser arrojado, penso que também há um Zé do Caixão/José Mojica Marins numa personagem como João de Deus/João César Monteiro, onde o profano e o sagrado circulam, indistintos, no discurso, onde se exercita o mesmo tipo de comentário em face da realidade do seu país, onde o messianismo é uma forma de sadismo, onde… há uma figura e uma voz na qual se deposita o autor-ventríloquo e uma visão obscurecida e ob-scena do mundo. Ouse visitá-la.