Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva são Amour (Amor, 2012). São eles que fazem de Amour um filme que nos convida a entrar devagar na vida daquele casal. Por seu lado, Haneke entra à bruta, parte a porta logo na primeira cena do filme, rebenta os trincos e deixa tudo entrar e tudo ver; logo nesse primeiro plano esvoaçante conhecemos a arena onde o filme se vai desenrolar (é uma batalha entre o amor a tentar manter-se vivo e Haneke a tentar pisá-lo com a biqueira de aço), a casa de uma vida (a casa da sua vida, uma vez que o decor do filme é a reconstrução minuciosa da casa de infância do próprio realizador), de uma vida que lentamente se encaminha para o fim.
Antes de chegarmos ao amor de Georges e Anne, comecemos pela dita biqueira de aço. Como é sabido, Michael Haneke é dono de um cinema que não preza pela emoção, frio e analítico são adjectivos que não o descreveriam erradamente. Por isso, mesmo que este filme pareça abrir uma porta a uma qualquer emoção – e abre-a, aliás, arromba-a – o ambiente onde esta vem desaguar não é próprio para a sua subsistência. O cinema de Haneke é demasiado asséptico para que vida possa nele perdurar muito tempo (não será por acaso que é este um filme – assim como todos os outros – sobre a morte e o caminho para ela), daí que me surpreenda que haja quem saia em lágrimas de um filme como este. Aqui não há possibilidade para qualquer tipo de ajustamento do espectador.
A principal característica do cinema do realizador austríaco é a unidireccionalidade, por isso refiro essa impossibilidade de ajustamento do espectador. Os seus filmes não são ambíguos ou simbólicos (um pombo é um pombo), tudo é aquilo que parece é, se se vê é porque acontece de facto. Daí que esse primeiro plano desemboque no quarto do casal onde está a falecida Anne, deitada na sua cama, vestida de camisa de noite rodeada de flores. Haneke sabe que ela morre no fim, por isso antecipa a morte, para que não haja dúvidas do sentido da narrativa; tudo se encaminha para aquele fim, não esperem outra coisa.
Mas desembrulhemos o filme . A seguir ao genérico vemos uma plateia que se prepara para assistir a um solo de piano, a câmara nunca nos dá o contra-campo, todos assistem ao espectáculo, mas se não vemos espectáculo nenhum e todos parecem olhar para a câmara, será isto um indício do que aí vem é a morte como espectáculo, à la Benny’s Video (1992)? Quando regressam a casa esta foi assaltada, mas não levaram nada; assim de repente pensamos em Funny Games (Brincadeiras Perigosas, 1997), será que tudo isto caminha para um festival de violência gratuita? Percebemos que não, mas a pergunta fica a remoer-nos; também ficamos a remoer a desconfiança nos cria trazer Huppert para a casa de uma professora de piano, será que vamos entrar numa versão geriátrica de La pianiste (A Pianista, 2001)? No dia seguinte dá-se o incidente, Anne sofre um derrame e fica alheada do mundo durante alguns minutos; a câmara dá-nos uma série planos das faces ora de Georges ora de Anne, ele aflito com a situação (que não compreende) e a ela completamente inacessível. Talvez se recorde aí, o cinéfilo mais atento, de Der siebente Kontinent (The Seventh Continent, 1989) e do caso semelhante da menina que finge estar cega e assusta os colegas e professores da escola. Mas se nessa obra de estreia, era esse um dos motivos que levava os país da criança a justificarem a suicídio colectivo que o final guardava (isso e uma sonata, ao invés de uma bagatela), então será que aqui algo de semelhante se irá passar? A morte como acto de misericórdia? O certo é que Haneke vai deixando as migalhas no chão, como que avisando do sentido das coisas.
Mas se tudo se dirige para o definhamento, a decadência, a demência e a morte, porque razão assistimos a tal empresa sem asco? A resposta já a dei antes, Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva. O par de actores dão corpo às personagens (os mesmos Georges e Anne que vêm protagonizando os filmes do realizador) e impedem que Haneke puxe os fios a seu prazer (como é costume). E por entre os horrores diários que o lidar com um enfermo acarreta temos momentos de candura: seja a aparição da mulher saudável através do poder invocativo da música, ou, mais uma vez, através de uma canção a mulher, já quase demente, consegue dar uns ares de felicidade. Ainda assim, nunca há um beijo e o contacto entre os dois é sempre filtrado por um acto médico (cena arrepiante, depois de vários anos casados Anne vai descrevendo ao marido como a deve abraçar para a poder transferir da cadeira de rodas para a cama). Haneke usa a elipse a rodos com o objectivo de nos aterrorizar, a cada salto deparamo-nos com Anne cada vez mais decadente, de saudável passa a paralítica, daí a acamada e depois são só gemidos.
A certa altura, depois de uma discussão sobre se deveriam colocar a senhora num lar, Georges pede para que se fale de outra coisa e a filha (Huppert) responde que não há mais nada a falar; não será por acaso que quando Georges sonha com sair de casa (e é só para ir ao corredor) uma mão vinda sabe-se lá d’onde agarra-o – nem em sonhos podes fugir. A morte da companheira é como um buraco negro e Haneke delicia-se a filmar as rodas da espiral. Como o Luís Mendonça salientou no sua cobertura ao LEFFest, a certa altura Georges afirma que há coisas que não se devem ver, só ele, por ser marido tem a obrigação de lidar com a morte da parceira. Pois bem, se a personagem o disse o realizador ouviu e … rapidamente esqueceu. Para ele não há nada que não se posso filmar analiticamente e nós (espectadores) temos que suportar. Na entrevista que dá ao Ípsilon desta semana Haneke diz: “Eu acho que as pessoas aguentam muito mais do que julgam. Se se aguenta a vida, também se aguenta este filme”. Mas como os portugueses também aguentam as medidas de austeridade, não quer dizer que elas se devam aplicar, mas lá que aguentamos, lá isso aguentamos.