Joaquim Leitão é um cineasta que muitos portugueses conhecem (depois de António-Pedro Vasconcelos é o cineasta português que mais espectadores teve nos últimos 40 anos), em particular da trilogia protagonizada pelo outro Joaquim, de Almeida: Uma Vida Normal (1994), Adão e Eva (1995) e Tentação (1997). Mas antes houve Duma Vez Por Todas (1986), o seu filme de estreia.
Todos os filmes começam no escuro, este não é excepção. Numa tela negra começamos por ouvir os acordes de uma ginga policial, um matraquear que os filmes de espiões e mafiosos fizeram imediatamente reconhecível. Surge-nos o nome de Pedro Ayres Magalhães (quem? sim, leu bem, o senhor que hoje associamos ao projecto Madredeus e que à época era baixista dos Heróis do Mar) e depois Vicky (assim, sem apelido nem mais nada – uma femme fatale não precisa de apelidos). O primeiro plano mostra-nos o nosso protagonista a observar, com uns binóculos, a casa da frente, corte, uma mão enluvada de cabedal toca a uma campainha e avisa: It’s me baby, corte, um carro nas imediações observa a cena e ouvimos os comentários dos que vigiam o homem da mão enluvada. E a música continua, tchiki tchiki tá, tchiki tchiki tá. Em poucos planos já estamos introduzidos no que Duma Vez por Todas é, ou isso pensamos nós. Luís (Ayres Magalhães) pousa os binóculos, desliga o rádio – e com ele a ginga policial – veste o casaco e vai sair com uma amiga. A trama policial, o crime iminente, a luva, tudo se desfaz. Mais do que um filme policial que constantemente nos pisca o olho com esta e aquela referência, este é um filme que joga sempre no sentido de quebrar as nossas expectativas. Sempre que achamos que aquilo vai embalado, lá está Joaquim Leitão a pregar-nos uma rasteira na curva.
É difícil resistir a não fazer um trocadilho com o título do filme; ao longo dos anos oitenta várias foram as incursões pelo cinema dito comercial, com resultados nada felizes, e foi preciso um mocinho, que ainda não tinha 30 anos, fazer um filme com malas cheias de dinheiro e pistolas que não parecia um mau tele-filme do Sudão. O que espanta nesta obra de estreia é essa capacidade (até então inaudita) de conseguir filmar o género com credibilidade, duma vez por todas. Para tal efeito, não só terá ajudado o trabalho de fotografia de Daniel Del Negro, que, como diz o outro Leitão, Jorge Leitão Ramos, é “uma das melhores do cinema português”, como o trabalho dos secundários de onde se destaca um novíssimo Victor Norte e Henrique Viana.
Mas o que torna Duma Vez Por Todas num filme verdadeiramente divertido é o jogo que este estabelece com o espectador, numa série de referências cinéfilas que nunca caem no pastiche nem na demonstração masturbatória de conhecimento. À cabeça temos o mestre do suspense com as referências a Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954) [os binóculos que espiam a vizinha da frente ou as chamadas telefónicas silenciosas] e Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) [um plano de escadas de dar vertigens e uma morena que vira loura com um carrapito], mas depois há outras mais delicadas, nomeadamente o cameo de Fernando Lopes (lembro que Joaquim Leitão apareceu como actor em vários filmes de Frenando Lopes, mas também de Vasconcelos e nos dois filmes de Vítor Gonçalves).
Tantas piscadelas de olho são normais (ainda que possam ofuscar o natural desenrolar da narrativa), ainda para mais numa primeira obra, o que não é normal é o facto de Joaquim Leitão mostrar logo no seu primeiro filme uma compreensão extraordinária do enquadramento, com um domínio do espaço que é raro. A esse respeito destaco um plano extraordinário: ela (a nossa femme fatale não tem nome, e a actriz que lhe dá corpo, a dita Vicky, morreria pouco depois do filme, com 26 anos, sendo este o seu único trabalho no cinema) é uma prostituta e vai a um café à procura de serviço, senta-se no balcão e espera; Henrique Viana fisga-a assim como o homem que a vem vigiando desde o início do filme; Joaquim compõe um plano onde com uma ligeira panorâmica acompanha a menina que se levanta e se ausenta, sendo seguida pelo cliente dessa noite, com isto ouvimos um restolhar e o vigilante surge no enquadramento e deixa na mesa que está em primeiro plano uma nota que paga o café. É um trabalho de profundidade de campo que se distribui por três focos progressivamente mais apertados, como o filme que se vai concentrando mais e mais nas personagens e nas malas de dinheiro e nos canos das pistolas. Se ao início sentíamos que as nossas expectativas eram repetidamente negadas isso era porque Joaquim Leitão sabe que o melhor gosto é aquele que se saboreia depois de várias rejeições, por isso mesmo nos sabe tão bem ver Duma Vez Por Todas, que conseguiu vingar onde tantos outros haviam falhado.