Que tempo horrível – ai que chato, sempre a falar do tempo, até parece que estás num elevador com estranhos – pronto, falo doutra coisa. Hoje é o último dia de campanha autárquica – ai isso ainda é pior que o tempo, políticos… que chatos – então com que é que eu encho este primeiro parágrafo antes de falar dos filmes do António da Silva e do João Pedro Rodrigues que vão passar logo ao final da tarde? Não sei, esse é o teu trabalho, não é o meu – então não me chagues a cabeça, quem me dera ter uma voz da consciência menos implicante e que não falasse em itálico… Sabes que isso te faz mal à voz, não sabes? Escreve e cala-te.
Filmes gozões
Hoje pelas 19h15 o leitor poderá assistir a uma sessão especial do Queer Lisboa 17 onde serão exibidos Gingers (2013) e O Corpo de Afonso (2013) [juntamente com Filme para Poeta Cego (2012)] com a presença dos realizadores habituais do festival, Da Silva e Rodrigues respectivamente. Exibir estes dois filmes em conjunto revela algo curioso sobre os próprios filmes, já que torna evidente a presença dos seus realizadores – que nunca se mostram. O Corpo de Afonso começa com uma série de homens num fundo verde de chroma key, a certa altura ouvimos a sua voz distante – vinda de um fora de campo sem origem definida – que diz “podes despir-te”. Os homens começam a despir-se à vez, uma peça primeiro depois outra, e por aí, até já não haver mais peças. Rodrigues, que nunca se vê, é presença efectiva no filme por transformar a câmara num objecto de domínio quase fetichista. O realizador usa a lente – ferramenta voyeurista por excelência – e os seus “actores” num exercício quase pervertido de exploração corporal. O mote de tudo isto é um projecto de Guimarães – Capital Europeia da Cultura e o Afonso do título é o rei fundador da pátria, patrono vimaranense. O filme consiste num falso casting para interpretar a figura mítica do primeiro rei português, mas a escolha propositada de vários culturistas e go-go dancers para a audição não é nada inocente. Rodrigues não se interessa muito por isso – pelo rei e sua figura de proporções míticas – interessa-se sim pelos corpos que tem em frente da câmara e pela forma como os pode ordenar, “vira-te de costas e agora de lado”, e montar – no sentido cinematográfico – já que se interessa por encontrar ligações entre as vidas deles (o desemprego como veio central). Os homens bem se esforçam por ler emocionadamente as palavras que lhes dão para ler, ou em empunhar uma enorme espada, mas a câmara de Rodrigues está deliciada com as barrigas tonificadas e com os peitorais definidos; os enquadramentos cortam os homens em pedaços deixando as cabeças de fora, centram-se quase sempre no tronco e na virilha. Este olhar quase rebarbado é o melhor do filme por dar voz a um realizador substancialmente do corpo mas cuja presença (real ou sentida) no seus outros filmes é praticamente irreconhecível – excepção feita a Esta É a Minha Casa (1997), primeiro filme do realizador, onde ouvimos a sua respiração de forma tão marcada numa série de planos sequência em torno das igrejas locais, já aí prometendo um cinema do físico.
Quanto ao pequeno filme de António da Silva (curta metragem que venceu a competição portuguesa deste ano no festival Indie Lisboa) mostra-se como um regresso a Mates (2011) e ao quarto, no sentido em que nos seus últimos filmes era pela rua e pelas casas de banho públicas que a câmara do realizador se demorava [Julian (2012) e Bankers)]. Como no filme de Rodrigues há um mote muito bem definido: filmar homens ruivos e homossexuais tentando perceber de que forma uma e outra coisa afectaram e afectam as suas vidas. Mas como a Rodrigues, isto é apenas uma patranha para os apanhar (no seu quarto) com uma câmara e todos pelados. Mas ao contrario de O Corpo em Gingers os homens olham para a câmara – directamente – como se o realizador quisesse partilhar com o espectador os corpos que tem à sua disposição. De novo monta-os num festim de pedaços, de novo procura um veio comum, e de novo desinteressa-se rapidamente disso. Curioso que no filme de da Silva se encontra uma certa contenção na câmara, durante os primeiros 10 minutos a câmara sabe evitar muito bem as partes pudendas, enquadra os homens de forma a só conhecermos ao de leve o tom fogoso das suas pilosidades. Mas claro, isto não dura para sempre e o realizador desiste de se conter e preenche o final da curta numa abundância de pilas erectas e ejaculantes. Juntar estes dois filmes numa mesma sessão mostra-nos simultaneamente a natureza do cinema como algo assumidamente pervertido, mas também a forma como os dois realizadores tiram partido disso mesmo em seu proveito. E não há nada como um filme gozão.
Ser-se alternativo é vulgar
Também hoje, depois desta sessão, poderão ver o filme vencedor do Teddy para melhor filme este ano, W imie… (In The Name of…, 2013), pelas 22:00 e logo depois, na sessão da meia-noite, o documentário sobre a noite gay paulista, A Volta da Pauliceia Desvairada (2012). O primeiro é um drama típico como se vê ao montes: um padre que se sabe homossexual evita os seus desejos até que surge um rapaz delicado e atraente que o faz sair dos carris (e ajudado pelo relacionamento entre dois dos rapazes presentes do centro juvenil onde o padre trabalha). O filme é uma ausência de ideias, insiste nuns planos filmados muito do alto, como se Deus estivesse a ver, e fora isso limita-se a filmar tudo com sensaborona competência – a utilização da banda sonora é tão evidente nos seus propósitos dramáticos que chega a ser ridícula. Há no entanto um par de pormenores divertidos, ainda que me parece serem totalmente inesperados (inclusivamente para o realizador); eles são a forma como certos gestos se tornam vagamente sexuais, quando na sua origem isso não era expectável: uma aula de natação que parece um baptismo, um lavar de janelas que parece um facial, ou um tango apertadinho com um quadro do papa Bento XVI. Mas isso são segundos apenas, num filme de hora e meia que parece durar muito mais.
A Volta é um documentário de entrevistas de rua e como tal evita a monocórdia dos filmes das cabeças falantes, nem que seja porque na rua vão acontecendo coisas: as pessoas estão por vezes bastantes tocadas e isso dá origem a alguns momentos divertidos. Além disso, há uma leveza no projecto que atrai, um à-vontade com a câmara que convida. Mas o certo é que toda esta hospitalidade faz questionar se este não será senão um filme publicitário do gabinete do turismo de São Paulo. Se não é, parece, visitamos todos os lugares, falamos sobre tudo – dialecto, preços, dias da semana, liberdades e direitos – conhecemos pessoas divertidas que se riem muito, conhecemos histórias de vida curiosas, enfim um batalhão de motivos para querermos visitar e nada que possa desagradar. Fica, apesar de tudo, um retrato interessante sobre uma população que depende das aplicações do telemóvel para conhecer gente à noite, uma geração que quis ser alternativa e outra para a qual o ser-se alternativo é vulgar. Um instantâneo limpinho da noite de uma grande cidade cosmopolita.