Era Deleuze que dizia que nunca se deseja apenas uma mulher, mas também a paisagem que a envolve. O que cobre normalmente é o que protege, o que alimenta, o que confere uma certa… aura. Contudo, por vezes, a paisagem não deseja a mulher ou a mulher não deseja a paisagem e desse conflito nasce uma acção, logo, drama. A conformidade ou desconformidade com a paisagem é assunto do cinema desde que este era feito dessas “vistas lumièreanas” que pareciam desejar sempre mais o continente que o conteúdo, mais a paisagem que a mulher. Depois veio um realizador que disse que o cinema é “uma rapariga e uma pistola”. Talvez a paisagem nunca esteja na paisagem – mas na mulher – e a mulher nunca esteja na mulher – mas na paisagem. O cinema vive destas desconformidades.
Basta começar a ver Red River (O Rio Vermelho, 1948) para se ser engolido pelo seu fulgor e pela sua força, trazidos por um genérico que nos mostra as letras do título e dos nomes dos envolvidos no filme a confundirem-se com montanhas e trazidos também por um coro que canta o primeiro esboço tiomkiano de “My Pony, My Rifle and Me”, aqui ainda chamado “Settle Down”. Filmes que deixam saudade e nos reenviam para um mundo e para um tempo à primeira nota. Nem sei se é o filme em que Hawks melhor filmou paisagens (se é que isso se pode quantificar em Hawks) ou foi mais fordiano (não deve haver filme de Hawks que mais vezes isso foi chamado), mas foi dessas duas coisas que ele falou certa vez, quando lhe pediram para falar sobre John Ford, creio que para a série The Men Who Made the Movies: “He has a peculiar quality of silent pictures, if he wants to make a funeral he doesn’t need words. I made a very good burial scene, once, that I told him to look at. I saw a cloud coming and I knew it was going to pass over the hill behind and I said to Wayne: ‘Now, get ready and no matter what you make or muss, just keep on going, we can dub it in, easy’. And he did and he said, ‘What was happening?’. And I said, ‘A cloud went right over as you were reading this thing and it made it really good’. But Ford fills his pictures with stuff like that.”
João Palhares
Há muitas paisagens à disposição no cinema de Ingmar Bergman. A mais evidente talvez seja a paisagem do rosto, dos rostos, que se alteram com as estações da vida. Penso por exemplo na face de Liv Ullmann em Viskningar och rop (Lágrimas e Suspiros, 1973) no plano em que o doutor, que vem a casa ver a irmã agónica, lhe vai mostrando as linhas e marcas que lhe nasceram no rosto como lugares para onde foram morar a indulgência ou a indiferença. Há ainda as paisagens do Verão da juventude do realizador sueco: os mergulhos de amor idílico de Sommarlek (Um Verão de Amor, 1951), a ilha do crescimento em Sommaren Med Monika (Mónica e o Desejo, 1953), os três sorrisos de Verão em montes de feno de Sommarnattens Leende (Sorrisos de uma Noite de Verão, 1956). Entretanto Bergman amadurece e descobre que o “amor começa num esgar e termina no bocejo”. A paisagem interioriza-se, reverte-se em trauma, nos problemas do envelhecimento e nos ódios encalhados da infância. Esta paisagem bélica, os tanques que passam sem cessar (ou antes, Johan passa por eles de comboio) pertencem a Tystnaden (O Silêncio, 1963). Esse lá “fora militar” – que faz evocar a experiência autobiográfica que Bergman conta sobre o seu proto-nazismo de adolescência e a devoção com que assistiu a um discurso de Hitler enquanto estudante de dezasseis anos na Alemanha – é um dos sintomas dessa interiorização das paisagens, de início da claustrofobia no seu cinema e da formação do trauma de infância. Num dos seus mais fechados filmes, Johan percorre curioso o hotel, onde se encontra com a sua mãe e tia (que se odeiam, é Bergman) e assiste aos flirts amorosos da primeira e à agonia da segunda. Tudo isso deixaria marcas. Sobretudo quando lá fora só existem estes tanques que se vêem pela janela (do comboio, do quarto: a guerra como imagem solitária) ou um burro famélico que Esther vê insistentemente, parecendo anunciar um fim qualquer que o tiquetaque dos relógios corrobora. Psicanalítico, solitário, silêncio ensurdecedor: tudo isto cabe neste filme sobre a circulação entre o Trauma e os traumas, entre aquilo que se vê lá fora e o que só se vê cá dentro.
Carlos Natálio
O cinema está cheio de paisagens falsas. Bosques e cidades parciais pintados em Matte ao fundo da imagem para dar a ideia do todo que estava, pelo menos, a quilómetros de distância de um estúdio californiano. Cidades retro-construídas ou pseudo-futuristas inteiramente virtuais, existentes apenas num disco rígido de um computador, projectadas apesar dos corpos verdadeiros dos actores (quando ainda os há). Algumas imagens são falsas até no tecido dos próprios filmes [não, não estou a pensar em Marnie (1964) e naquele porto inverosímil]. Normalmente naqueles passados no futuro: Douglas Quaid sonha com o laranja pó de tijolo de Marte na janela-televisão de sua casa em Total Recall (Desafio Total, 1990) e Katniss Everdeen recorda a floresta natal num dispositivo parecido em The Hunger Games (The Hunger Games: Jogos da Fome, 2012). No entanto, o plano que aqui me trouxe (o plano que para aqui trouxe) é de um filme passado em inícios do século XX, que há mais de dez anos é o século passado. Em Letter From an Unknown Woman (Carta de Uma Desconhecida, 1948) do mestre Max Ophüls, Lisa (a encantadora e eternamente assustadiça Joan Fontaine, recentemente falecida) reencontra Stefan e este pela primeira vez olha para ela com olhos de ver (e gosta do que vê). Para a cortejar, leva-a numa falsa viagem de comboio por Veneza, Suíça, o mundo todo, sem sair de Viena. O dispositivo é bem mais rudimentar do que os outros citados e nada futurista. Como se pode ver neste excerto, os dois amantes sentam-se numa carruagem e é um velho que pedala para que a paisagem passe por eles, como se fossem eles que se movimentassem. Apesar dos enganos e esquecimentos futuros e da falsidade presente, jamais houve viagem tão bonita.
João Lameira
A certa altura em Les plages d’Agnès (As Praias de Agnès, 2008), a própria Agnès conta – naquela voz dulcíssima – um de muitos episódios da sua vida: a rodagem do seu (e não só seu…) Jacquot de Nantes (1991). Conta como o marido, Jacques Demy, escrevia as memórias de infância e o que escrevia vinha cheio de imagens – cheio de cinema! – mas ele, doente de SIDA, não se sentia capaz de filmar as suas memórias, de fazer uma viagem à sua infância através da máquina de filmar. Propôs que ela o fizesse, e ela fez. Jacquot é um filme em três partes, uma homenagem a preto e branco ao cinema dos anos 30 e 40 (onde conhecemos um menino endiabrado como todos os meninos), um exercício ensaístico onde cenas imaginadas na vida do menino Jacquot se transformam em cenas de filmes do menino Jacques e por fim, uma das mais belas cartas de amor que o cinema já viu – Varda filmando o seu maior amor sabendo que tal gesto não se prolongará muito mais (numa tentativa de pelo cinema evitar o desfecho imparável da doença – desejo infértil e pueril, como todo o cinema). Nesse último filme dentro do filme, Varda diz-nos que deseja filmar os cabelos de Demy tão de perto como se fossem paisagem, a pele tão de perto como se fosse areia, os sinais, os olhos, tudo tão aproximado que em vez de um homem ela filma já a sensação de perda – ela filma um amor vivo sem esquecer o efémero de tudo isso. E aqui a paisagem tem essa coisa extraordinária de nos deixar entrar nela, de a podermos visitar, de podermos sentir a brisa que por lá passa e o aconchego do sol. Haverá coisa mais bela que um amor-paisagem onde possamos descansar?
Ricardo Vieira Lisboa

James Benning será, em termos simples, o grande cineasta das paisagens da história do cinema. Contudo, paradoxalmente ou não, o seu principal divertimento consiste em interromper, de modo sorrateiro, a contemplação fascinante – e, portanto, desfixá-la, descentrá-la, desconjuntá-la. Essa interrupção manifesta-se, por norma, através do atravessamento de um símbolo da técnica humana, a poluente entrada em campo da Cultura. Ela, quando aparece – e o cinema de Benning está cheio de aparições destas, subtilmente irónicas -, serve para aterrorizar a plácida fixidez, a doce serenidade e etérea beleza da paisagem natural. Em RR (2007), filme cujo critério principal não estava em escolher comboios diferentes mas, assume Benning, “arranjar o maior número possível de paisagens que conseguisse”, atinge-se o delírio burlesco quando, já volvida quase uma hora de filme, num plano “tirado” sobre uma ponte férrea que atravessa o rio, vemos uma luz ao longe. O espectador dirá “vem aí mais um comboio, parecido ou igual aos outros” – isto é, robusto, infindo e ruidoso. Mas não: a “montanha pare um rato” a meio do percurso quando nos apercebemos de que o que nos “aparece” é um carrito que circula sobre o caminho de ferro. É o momento The General (Pamplinas Maquinista, 1926) de RR.
Luís Mendonça