Em mais um texto da cobertura À pala de Walsh do IndieLisboa, Luís Mendonça (LM) escreve sobre a experiência falhada no 3D de três experientes cineastas e a comédia romântica alternativa de Joe Swanberg, Ricardo Gross (RG) sobre a homenagem de Luís Alves de Matos a Alberto Seixas Santos, e João Lameira (JL) sobre os últimos filmes da Competição Internacional, nos quais se encontram os mais experimentais.
Quand je serai un dictateur (2013) de Yaël André
Juntamente com Mouton (2013), de Gilles Deroo e Marianne Pistone, Quand je serai un dictateur é o filme mais experimental da Competição Internacional de longas-metragens. Yaël André respigou variados filmes caseiros alheios em Super 8 (e toda a imagem é composta por estes) para fazer uma obra mais ou menos autobiográfica. Mais ou menos, pois, embora se sinta que a realizadora belga fala de si e de uma relação que a marcou, leva Quand je serai… (e cada capítulo propõe uma nova “vida” para a protagonista – quando eu for contabilista, quando eu for uma boa mãe, quando eu for uma viajante espacio-temporal, etc.) para géneros inesperados, como a ficção científica, a ghost story ou até mesmo a comédia – e o “humor” e o prazer com que a realizadora joga este jogo quase infantil e o espectador nele participa são das principais qualidades do filme. A narração, na voz de uma criança, tece a narrativa cada vez mais delirante, justapondo universos paralelos, de possibilidades infinitas, que as imagens ora comentam, ora ilustram, ora desdizem. Salvo as óbvias distâncias (sobretudo, formais), Quando je serai… lembra o recente The Congress (O Congresso, 2013) de Ari Folman, pela absoluta liberdade para trilhar caminhos inexplorados. (JL)
Quando je serais un dictateur (Competição Internacional) será exibido dia 1 de Maio (hoje), às 18h00, na Cultugest; e no dia 2 de Maio (amanhã), às 21h30, no Cinema Campo Pequeno.
Stand Clear of the Closing Doors (2013) de Sam Fleischner
Qualquer pessoa que tenha andado algumas vezes no metropolitano de Nova Iorque reconhece de imediato a frase “stand clear of the closing doors” que se ouve antes de as portas se fecharem. E o melhor que Stand Clear of the Closing Doors tem é exactamente aquilo que se passa no metro: Ricky, um rapaz autista, entra naquele labirinto de linhas e estações e perde-se nele e nas pequenas coisas que observa e com que se obceca – e a câmara, verdadeiramente subjectiva, obceca-se com ele, em grandes planos cada vez maiores, mais desfocados, mais oníricos -, nunca mais encontrando (ou desejando) a saída. É um mundo à parte, em que se dorme, come, boceja, lê, conversa, nos minutos que levam da casa ao trabalho e vice-versa. Paralelamente, Stand Clear… é um drama familiar, sobre o pai e a mãe de Ricky (emigrantes ilegais) e a sua irmã que deveria ter tomado conta dele. Esta parte é bem mais convencional – adivinham-se a léguas as peripécias – e desinteressante e acaba por perfazer grande parte do filme. (JL)
Stand Clear of the Closing Doors (Competição Internacional) será exibido dia 1 de Maio (hoje), às 21h30, na Culturgest; e no dia 2 de Maio (amanhã), às 16h30, no Cinema Campo Pequeno.
Matar a un hombre (2014) de Alejandro Fernández Almendras
Matar a un hombre tem a inflexibildade formal de algumas primeiras obras [vem logo à cabeça a primeira longa-metragem de Antonio Campos, Afterschool (Depois das Aulas, 2008)], em que se nota muito a mão do realizador (ou este quer que ela se note). Contudo, neste caso, a forma corresponde na perfeição à rigidez do seu protagonista, um homem meio cobarde (ou simplesmente civilizado), a quem a violência custa (e a ela se verá obrigado), e permite que o espectador se distancie da acção e possa assim julgá-la melhor (não será acidental que os cineastas mais moralistas tendam a afastar a câmara daquilo que acontece). O filme de Alejandro Fernández Almendras é uma espécie de Cape Fear (em qualquer das versões) chileno, em que um homem pacato explode para praticar os actos mais vis, numa resolução à Straw Dogs (Cães de Palha, 1971) de Peckinpah. Almendras mostra assim pela enésima vez a maldade da natureza humana, sem que o espectador sinta que está a ver uma história que já conhece (apesar de depois poder encontrar proximidades, como se comprova pelos parágrafos anteriores), e tal deve-se sobretudo à força da forma (que enquadra o medo, a culpa, a fúria, o homicídio). Se houvesse prémio de Melhor Realização, este teria de ser dado a Almendras. (JL)
Matar a un hombre (Competição Internacional) será exibido dia 2 de Maio (amanhã), às 19h00, na Culturgest; e no dia 3 de Maio (sábado), às 19h00, no Cinema Campo Pequeno.
Belleville Baby (2013) de Mia Engberg
A princípio, Belleville Baby parece ser mais um exercício diarístico irrelevante, uma proposta mais ou menos onanista da sua autora, Mia Engberg. O relato da história de Orfeu e Eurídice sobre as imagens de umas ondas, logo ao início, não augura nada de bom (assim como a leitura que a sueca faz da história). Contudo, quando, no final, esses sons e imagens se repetem, o espectador já percebe o seu sentido e aceita a repetição como justa. Haverá quem encontre neste filme sobre a relação entre uma cineasta sueca a viver em Paris e um patife francês interrompida pela prisão deste último uma simples terapia da autora, que pretende expiar (expulsar) assim um grande amor. E é inegável que Belleville Baby tem esse propósito, no que serve também de catarse para os espectadores. Tudo começa quando Vincent (cuja voz é interpretada por um actor – e coloca-se a questão se se assiste a documentário ou a ficção) telefona a Engberg, dez anos depois da última vez em que se falaram, despertando uma conversa que noutros tempos seria epistolar e nestes é tão-só telefónica, e as memórias de uma felicidade que se foram dissipando na “vida normal” de Engberg, que agora tem uma carreira e dois filhos. De Vincent, apenas restava um filme de ele a barbear-se, depois de Belleville Baby ficará para sempre (enquanto houver cinema) a narração do amor de Vincent e Mia para os seus descendentes, para os futuros espectadores, para todos, assim como as cartas da avó de Mia lhe permitiram conhecer o seu. (JL)
Belleville Baby (Competição Internacional) será exibido dia 2 de Maio (amanhã), às 21h30, na Culturgest; e no dia 3 de Maio (sábado), às 14h30, no Cinema Campo Pequeno.
3x3D (2013) de Peter Greenaway, Edgar Pêra e Jean-Luc Godard
A escrita desta cápsula inspira-me alguns cuidados extra. De facto, tenho alguma dificuldade em falar da substância do filme, já que a projecção de 3x3D teve em mim um efeito desastroso. Se o episódio de Godard nos fala de “3 D, D de Desastres”, eu não consegui sair de uma desastre anterior: o D de Dimensões. Se no (horroroso) filme de Greenaway, na maior parte do tempo, não consegui percepcionar qualquer tridimensionalidade, ou melhor, qualquer saliência das figuras, palavras e cenários para lá do ecrã, no filme de Edgar Pêra – o mais atordoante de todos – raras foram as vezes em que a imagem me apareceu focada. Godard, o que usa menos o efeito estereoscópico, dado o recurso predominante a excertos de outros filmes não 3D, apenas me “trocou os olhos” com o seu habitual jogo com o lettering dos cartões ou intertítulos. Em permanente esforço, procurei ainda assim em mim uma concentração extra para o filme de Godard, mas o cansaço mental e a náusea que já sentia não me permitiram usufruir do filme minimamente. Fico com a impressão forte de que é um exercício conceptual sobre a palavra e o número, entre as ruínas da história e do próprio cinema, que repesca as imagens e o espírito de Histoire(s) du Cinéma ou Film Socialisme (Filme Socialismo, 2010). Pareceu-me ser o único filme a sério deste trio. Falei com elementos da organização do IndieLisboa – que atribuíram “o problema” aos filmes em si mesmos – bem como com alguns amigos depois da sessão. Apesar de a minha inadaptação ao 3D ter sido, de entre eles, a mais extrema, todos partilharam comigo a frustração face ao resultado deste filme colectivo (que me foi) três vezes impossível de ver. (LM)
3x3D (Sessões Especiais) é reexibido dia 4 de Maio (domingo), às 21h30, no Cinema City Campo Pequeno.
Drinking Buddies (2013) de Joe Swanberg
Drinking Buddies insere-se na obra do prolífico jovem cineasta Joe Swanberg como uma tentativa de reciclar o “género morto” da comédia romântica americana. É uma reciclagem subtil, quase invisível, já que a sua ossatura é tão velha quanto o bocejante género que desde Hugh Grant e Julia Roberts vive um período de depressão – o amor deixou de ter graça ou deixou de ser romântico? Difícil de responder, mas a predominância dos filmes de super-heróis, onde o amor é quase que apenas mais um suplemento CGI, torna este filme de Swanberg numa proposta, nesta altura, verdadeiramente “alternativa”. O que se propõe é um regresso à matriz mais basilar do género, provocando, com um misto de doçura e ingenuidade, uma espécie de retorno do espectador à sua inocência. Num filme onde as personagens se relacionam numa espécie de simetria perfeita – dois casais realizam um não-sexual swinging amoroso e existencial – não dá como não sentirmos por de mais a presença da escrita. Contudo, Swanberg, partindo de esquemas e fórmulas usadas, procura introduzir diferenças nas cenas, estimulando a improvisação das interpretações e interacções entre actores/personagens. Como se John Cassavetes fizesse a direcção de actores de um Notting Hill (1999). O resultado desta “experiência” é um filme airoso, isto é, “sem escândalo”, que tem como ponto forte a sua adulta tentativa de superar o sexo no retrato da relação amorosa entre uma mulher (boa interpretação de Olivia Wilde) e um homem (ainda melhor interpretação de Jake Johnson). Por exemplo, Swanberg prefere filmar um literal “dormir com” como acto “mais íntimo” do que o ditatorial “sexo com” que normalmente sela as relações sentimentais no cinema. (LM)
Drinking Buddies (Observatório) é reexibido dia 3 de Maio (sábado), às 23h55, no Cinema City Campo Pequeno.
Double Play: James Benning and Richard Linklater (2014) de Gabe Klinger
Eis um documentário exemplar sobre dois homens ligados pelas subtilíssimas semelhanças entre os seus cinemas – e a nada subtil paixão por baseball -, mas separados no tempo e por maneiras antagónicas de dar a ver o mundo. Benning é o cineasta da contemplação, da passagem do tempo, da desconstrução política da paisagem. Linklater é o miúdo hiperactivo da excitação intelectual das formas e da implosão das estruturas tradicionais do storytelling – ainda assim, o tempo e a duração são dois temas fortes do seu cinema, como vemos na trilogia “Before” e no filme que aí vem, filmado ao longo de dez anos, e que aqui entrevimos com a benção de Benning, Boyhood (2014). Um vive contra ou indiferente ao sistema hollywoodesco, o outro é um intérprete do mesmo, um dos seus alunos mais brilhantes, que une reverência e rebeldia como poucos. Double Play (Director’s Cut) é um jogo duplo que não tem dissimulação alguma. Na realidade, o filme é exactamente aquilo que, a certa altura, nele vemos: dois homens a trocar uma bola de baseball ou de basketball, enquanto alimentam com palavras descontraídas a sua amizade antiga. Um hang out movie, à Linklater?, tornado num extra de luxo para todos os cinéfilos. É grande o prazer de podermos assistir a estas “jogadas” entre estes dois cineastas, e se há algum defeito a apontar a este documentário realizado por Gabe Klinger e co-produzido pelo português Rodrigo Areias é o facto de ser tão curto. Eu, pela minha parte, pagava para ver mais uma hora – ou uma série! – destas luminosas confraternizações. (LM)
Refúgio e Evasão (2014) de Luís Alves de Matos
A escolha do fundo escuro, uniforme, que se mantém ao longo do documentário, é natural que tenha pertencido a Luís Alves de Matos. Já sobre a roupa que usa o realizador Seixas Santos, imaginamos que tenha sido o próprio a decidir, talvez sem preocupações narrativas. É justamente da roupa que escolhemos falar, porque Alberto Seixas Santos veste todo de negro, cor e gola de batina, e o cachecol vermelho que se destaca poderá ser visto como uma estola. O realizador entrevistado sobre a sua vida, os seus filmes, e os filmes da sua vida, na figura de padre, por certo um padre progressista filmado por Roberto Rossellini, um dos autores citados por Seixas Santos, junto com Carl Theodor Dreyer, Fritz Lang, Jean Renoir, Robert Bresson, Jean-Marie Straub, tudo gente de um tempo que se apaga sob a força tirânica do audiovisual. Refúgio e Evasão (Director’s Cut) vai buscar o título às motivações do então jovem Seixas Santos para frequentar a sala de cinema, prática que segundo ele tem os dias contados. Isto não é mais um depoimento de resistência, mas um reconhecimento da derrota. Uma digna assunção da derrota. Impressa a negro. (RG)