Último post de cobertura ao IndieLisboa 2014 da autoria de Ricardo Gross (RG) e Luís Mendonça (LM). Nomes de peso como Hong Sang-soo e Johnnie To partilham este espaço com apostas para o futuro, nomeadamente no campo, muito fértil este ano, das curtas-metragens.
Nugu-ui ttal-do anin Haewon (Nobody’s Daughter Haewon, 2013) de Hong Sang-soo
O facto recorrente nos filmes de Hong Sang-soo de o realizador sul-coreano usar parâmetros de realismo semelhantes, quer para os devaneios amorosos sonhados pelas personagens, quer para aquilo que lhes acontece quando estão acordadas, pode significar que o modo como idealizam e se idealizam nas suas vidas torna muito ténue a linha que diferencia o processamento das experiências do amor nos vários estados de consciência. Hong Sang-soo é tido por um cineasta doce, pelo modo gracioso como encena os equívocos do desejo e da paixão, que começam na ideia distorcida que as personagens fazem delas próprias. Dito isto, Nugu-ui ttal-do anin Haewon (Nobody’s Daughter Haewon) é uma variação menos conseguida numa obra repleta de pérolas. (RG)
Joe (2013) de David Gordon Green
A estreia comercial de Joe está para breve e quem quiser poderá ver então em que medida este filme de David Gordon Green dá a perceber os seus contornos bíblicos, sendo o protagonista (interpretado por Nicolas Cage) um pecador do nosso tempo, e de uma geografia texana redneck, vizinha da América white trash, cuja redenção implicará um acto sacrificial. O universo de Joe é por inteiro masculino e as principais figuras que o compõem são como que arquétipos manchados. A exemplaridade desta história de violência cai mal em estômagos sensíveis ou intelectos sofisticados. É preciso abraçar o grotesco e os instintos primários. Haverá recompensa, um novo dia de sol, onde uma aparência de ordem terá sido reposta, como no Blue Velvet (Veludo Azul, 1986) de David Lynch. (RG)
Man tam (Blind Detective, 2013) de Johnnie To
Tinha sido avisado que esta seria das obras mais excêntricas do realizador de Man jeuk (Sparrow, 2008) e Cheung foh (The Mission, 1999). Essa excentricidade, existindo de facto, é o que faz de Man tam simultaneamente uma revisitação do To mais descabelado e um transbordo da sua noção de narrativa. Sabemos como o seu cinema muitas vezes se constrói em torno de uma ideia de performance, coreografia ou dispositivo visual. Man tam é um compêndio dos conceitos cinéticos que fazem To pôr a narrativa em segundo plano. Trata-se de uma espécie de primo direito de San taam (Mad Detective, 2007), mas com um importante twist: o detective do filme (um delirante Andy Lau) não vê “mais além” de olhos bem abertos, mas na escuridão da sua cegueira. Se o “louco” via as múltiplas personalidades dos (supostos) assassinos – como um Pessoa dado a ver em cada um de nós, em toda a nossa heteronímia patológica, mais ou menos secreta -, o “cego” vê e configura a mise en scène da sua própria intuição detectivesca. O cinema expressionista atinge picos de brilhantismo performativo em To como em mais nenhum cinema da actualidade. Man tam concentra espacialmente o delírio da sua premissa cómica: um cego, apaixonado/apaixonante e (literalmente) glutão – e não é este o filme de detectives mais gastronomicamente rico da história do cinema? -, resolvendo enigmas imponderáveis enquanto faz da sua invisualidade pretexto para passos de tango com a sua solicita parceira – quem ousa contestar a ideia de que esta comédia de detectives é um musical screwball levado da breca? Espante-se e delicie-se com estas excentricidades alimentícias, para os olhos e para a barriga. (LM)
Blue Ruin (2013) de Jeremy Saulnier
Blue Ruin é um thriller que se desenvolve ao longo de uma linha narrativa que progressivamente vai vendo o seu traço engrossar, tal é a forma como esta história se deixa embeber por uma tensão fria e cortante. Eis uma história de vingança colada à pele de uma personagem e que não a larga por um segundo até as “dívidas morais” estarem completamente saldadas. É um caminho irreversível, em direcção ao massacre final (e total), que surpreende pela sua pulsação elevada, gestualidade controlada, figurações marcantes (o rosto do seu protagonista, Marcon Blain, é todo um programa thrillesco por si só!) e diegese descarnada e straight to the point. Vencedor do prémio FIPRESCI no último Festival de Cannes, esta ruína azul é uma interessante (re)leitura do “filme de vingança”, que reduz o género às suas principais coordenadas, tendo o mérito de não sucumbir aos exercícios citacionais muito tentadores neste domínio. Sem desbravar terrenos novos, Blue Ruin não se faz depender de piscares de olho cinéfilos, encontrando no seu “gesto mínimo” espaço para provocar algumas surpresas mesmo ao espectador mais rodado. Desse ponto de vista, esta segunda longa-metragem do norte-americano Jeremy Saulnier merece ser percorrida. (LM)
Curtas-Metragens IndieLisboa 2014
Foi uma das melhores surpresas desta edição do IndieLisboa 2014: a sua selecção de curtas-metragens. Das que destaquei aqui, baseado no faro cinéfilo e pouco mais, gostaria de elaborar sobre três delas. Começo por aquela que foi, para mim, junto com o filme de Hong Sang-soo, a mais completa experiência fílmica que tive este ano no festival: Mille soleils (2013), por sinal, o justíssimo vencedor do Grande Prémio de Curta-Metragem. A actriz Mati Diop, que os espectadores do IndieLisboa se lembrarão de Simon Killer (2012), assina uma obra comovente que tem como herói, para além do sol senegalês, o seu tio, Wasis Diop. Protagonista de um filme popular no seu Senegal, de que nunca partiu como muitos seus amigos fizeram – para França, para os Estados Unidos… -, este Gary Cooper negro (ouve-se a música de High Noon…) chora as feridas de um amor passado que o condenou – como acontece com a personagem que interpreta no dito filme – a não sair da sua terra e, com isso, a deixar para trás todos os seus sonhos. Wasis Diop protagoniza aqui um sereno e crepuscular western sobre a sua vida, num presente assombrado pelos feitos de um passado “que podia ter acontecido” e as imagens projectadas de um filme que encerra(va), ao mesmo tempo, a glória vã e a razão da sua queda – a gloriosa queda de uma “estrela cadente”. São uma personagem e uma história belíssimas cujos tempos se misturam maravilhosamente com os do Cinema.
Os meus dois outros destaques maiores vão para duas curtas portuguesas onde se trabalha a memória e o movimento ou, enfim, muito directamente, os “movimentos da memória”. No caso de As Figuras Gravadas na Faca com a Seiva da Bananeira (2014), outro justíssimo premiado no IndieLisboa, circulamos entre memórias, que é o mesmo que dizer “entre distâncias”, Madeira e Moçambique, ou “entre tempos”, no Portugal colonial dos anos 60 e 70. Este filme produzido no Sensory Etnography Lab da Universidade de Harvard – o mesmo onde se conceberam Manakamana (2013) e, outro vencedor IndieLisboa, Leviathan (2012) – usa o som e a imagem para transmitir uma comunicação do íntimo que se perdeu algures “entre” esses “entres”. É notável a forma como sentimos o título do filme a servir de tábua onde se fixam ou desenham as ideias audio/visuais deste filme cheio de gravações figurais da memória. Uma curta para ver várias vezes, isto é, uma experiência para se ter várias vezes. A Caça Revoluções (2014) é um prodigioso filme sobre a memória de Abril, que também convida a revisões e reaudições várias. O seu trabalho sobre o verbo acompanha, sem ilustrar (bem pelo contrário), o movimento “imposto” a fotografias do Portugal a preto-e-branco onde agitam os “signos” da revolução: multidões, uma tourada, edifícios e sobre todas estas figurações o gesto de uma ocultação que rasura a indexicalidade fotográfica e dá, pelo traçamento pictórico, a sensação de que as imagens se rebelam num redemoinho. A palavra (também) funciona por camadas: primeiro sentimos os ares esperançosos da Revolução, para depois nos sentirmos atravessados por toda a decepção de um povo. Abril enlutado (ocultado… rasurado…) em pleno ano de celebração do quadragésimo aniversário da Revolução dos Cravos. É uma belíssima história de amor e de decepção que funciona como antídoto perfeito para o tom de pasquim que domina a pululante indignação mediática em torno deste nosso estado das coisas. (LM)