Se tem comichão coça – esse é o conselho que a tradição popular bem cedo nos oferece, que é como quem diz, se queres alguma coisa não esperes de rabo sentado, não esperes que os outros façam por ti. Mas também, em se tens comichão coça se infere outro aviso anciânico sobre motivação versus lamentação, de notar, se tens um problema, resolve-o, não te fiques lamuriando, uma versão suavizada da combinação entre o vai trabalhar malandro e o quem chora faz chichi na cama. Mas há outra (há tantas) lições que a tradição oral nos oferece de bom grado sobre a comichão, por exemplo, comer e coçar, o mal é começar. O que de certo modo parece contrariar o provérbio anterior, porque se o outro favorece a passagem repetida das unhacas pela zona inflamada numa manifestação de vontade própria, o segundo adverte para os perigos viciantes de tal actividade – e tudo o que é em demasia cansa. Mas destas contradições entre os vários pregões que compõem a nossa língua já estamos nós acostumados, já que o número e a variedade deles favorece que tudo e o seu contrário tenha concordância e admoestação popular.
Porque estará ele a falar de irritações cutâneas? Ainda bem que pergunta. Enquanto estas linhas vão sendo escritas, as mãos do que as escrevem estão impossibilitadas de esfoliar certas regiões recentemente agredidas pelas baba infecta de insectos voadores, vulgo mosquitagem, que é como quem diz que a escrita é terapêutica – pelo menos nos que a vermelhidões irritantes diz respeito. Mas como o título deste texto dá a antever, a irritação que me traz aqui não é tanto uma da derme, mas sim uma da mucosa (da área que marca a separação entre a base da língua e o início da faringe), a tão conhecida e deveras transversal garganta seca.
O Verão é período para este género de calamidades irritativas, devido à diversidade de pólens e afins pós esvoaçantes que a reduzida humidade atmosférica favorece na descolagem e sucessivo tráfego aéreo. Mas também, a ajudar nestas maleitas, temos a variação de temperaturas que o condicionamento de ares e a produção de atmosferas fictícias em muito contribui. Tudo bem, a garganta seca é de facto uma seca, mas se prestei atenção, a utilização maiúsculas no título dá a entender um sentido alternativo, quiçá um trocadilho… pois com certeza (já chega a hora de concerteza ganhar honras de correcção ortográfica), o leitor é de facto muito perspicaz. O SECA que ombreia este escrito refere-se à Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual, ou simplesmente SECA.
É que as irritações da laringe, faringe e de toda a região envolvente podem ter também origem traumática, pense-se na esganação, no asfixiamento, na estrangulação ou no sufocamento. Tudo práticas que podem provocar uma série de sintomas, desde a leve irritação da já muito citada garganta até à “ejaculação post mortem e ingurgitamento hipostático dos corpos cavernosos penianos”. Por outras palavras, o que estou a tentar dizer é que a secção especializada do cinema e audiovisual é responsável (parcial) do estrangulamento da produção de cinema no nosso país e vive numa dúvida constante: ou relaxa o aperto e só causa irritação, ou aperta o freio e além de um maldito efeito secundário, a morte, permite que nos últimos segundos de actividade uma explosão criativa ocorra – conhecendo o ser humano e a forma como a perspectiva temporal afecta as suas prioridades, é natural que um jorro produtivo, mesmo que a longo prazo nefasto, seja uma opção atraente.
Simplificando, a produção de cinema em Portugal nos próximos tempos depende do resultado de um jogo sexual que os próprios artistas do cinema praticam consigo: um perigoso exercício de asfixia auto-erótica.
Tudo isto poderá parecer algo místico aos que não vêm acompanhando a novela SECA, pois então oiça-se a voz do narrador que no início de cada episódio resume em poucas linhas meses de rocambolescas reviravoltas lacrimo-burocráticas: durante anos “os projectos apresentados pelos cineastas [eram] examinados (?) por um júri de cinco intelectuais (?) nomeados pelo ministro da Cultura, geralmente influenciado pelos lobbies do costume que [decidiam] quem é bom e quem não presta nas nossas artes“, com o desaparecimento da figura do ministro da Cultura e com a nova lei do cinema a composição dos tão mal-afamados júris que avaliam as várias candidaturas aos vários concursos (21!) do ICA mudou substancialmente. “O decreto regulamentar 35/2007, que cria e estabelece o modo de funcionamento do CNC (Conselho Nacional de Cultura), prevê que a SECA seja composta pelos directores do ICA e da Cinemateca Portuguesa, bem como por um representante de cada uma das áreas do sector: produção, exibição e distribuição cinematográfica, cineclubes, estabelecimentos técnicos de cinema e de vídeo, argumentistas, realizadores, produtores de animação, produtores independentes de animação, operadores da televisão por subscrição, editores de videogramas e fonogramas, multimédia, sociedades de gestão colectiva de direitos de autor, Sindicato dos Trabalhadores do Espectáculo, Sindicato das Actividades Cinematográficas e duas individualidades de reconhecido mérito na área do Cinema e do Audiovisual’ “. Este órgão é responsável por propor e votar os nomes dos júris que depois serão aprovados pela presidente do ICA. Assim, pretende-se que um processo que tantas vezes causou celeuma passe a ser mais transparente, deixando assim o peso da responsabilidade de escolher quem avalia os projectos para os próprios visados (desde que não existam conflitos de interesses…).
Se em tese parece perfeito este sistema para a composição dos júris, já que seria resultado de um consenso por maioria simples dos representantes de cada área profissional do cinema, a pequenez do nosso país, e a incapacidade sistémica de nos deixarmos ser representados originou duas associações de realizadores que se odeiam mutuamente, a ARCA – Associação de Realizadores de Cinema e Audiovisual e a APR – Associação Portuguesa de Realizadores. O ano passado houve acesa discussão sobre a impossibilidade de garantir lugar para representante das duas associações (já que cada classe profissional só deveria ter um membro presente). Acalmaram-se as águas quando António-Pedro Vasconcelos – membro da ARCA – integrou a secção como indivíduo com “reconhecido mérito no sector”. Mas já nessa altura Margarida Gil – da APR – avisou, “a SECA ‘deve ter funções meramente consultivas e não deliberativas porque senão é um lobbying legal, que é meio caminho para a corrupção’. Mais: a SECA ‘é um saco de gatos, um lobby em que cada um tende a apresentar nomes que sabe que lhe vão dar apoios’.”
Mas tudo isto foi há um ano e apesar das vociferações, os júris lá se escolheram (sem acesso a todos os currículos, em bloco e sem consultação prévia dos próprios), este ano a querela repete-se – já se sabe que equipa que ganha não se mexe e argumentista de novela com sucesso não inventa – quando a ARCA se queixa que dos 34 membros do júri que propôs só dois foram seleccionados, ao passo que houve outro membro que de 32 conseguiu aprovar 17. [E não fazemos referência, fazendo, às pressões que certos nomes cimeiros da “indústria” exercem sobre a constituição destes júris].
Ou seja, se a escolha dos júris dos ICA sempre causou irritação a muitos realizadores, agora que se lhes pede que cocem onde mais lhes apraz (i.e. contribuindo na escolha dos tais elementos assombrosos), são incapazes de se entender; porque cada um tenta puxar a brasa à sua sardinha. E glosando em negativo outro adágio popular, o lobby do vizinho é sempre pior que o meu.