“Eu sou obcecado pelo off, por aquilo que não se vê.” A frase não é de nenhum dos dois homenageados no nono programa do Harvard na Gulbenkian, que desde o seu primeiro número provoca diálogos, alguns deles improváveis, entre cineastas provenientes das mais diversas paisagens estéticas e culturais. A frase não pertence nem a Nathaniel Dorsky nem a Joaquim Sapinho, mas é de alguém. Antes de identificar essa pessoa, nome tutelar de várias gerações de cineastas portuguesas, importa dizer aqui que ela servir-me-á a mim como bússola na procura de uma forma que organize toda a extraordinária experiência que foi acompanhar bem de perto este programa. Acompanhei-o no seu espaço on – as sessões e debates públicos que tiveram lugar no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e na sala Félix Ribeiro da Cinemateca Portuguesa, entre os dias 21 e 23 de Novembro – mas é a partir do seu espaço off – os jantares a seguir às sessões e debates – que procuro reportar o que foram os três dias que me deram a ver, pensar e degustar uma refinada ementa cinematográfica.

Depois do debate em torno de Deste Lado da Ressurreição (2011), uma procissão de realizadores, actores, montadores, produtores, programadores e curadores do cinema foi jantar a um restaurante próximo da Gulbenkian. No caminho para lá, meti conversa com Nathaniel Dorsky, realizador nova-iorquino pertencente a uma geração de ouro do cinema avant-garde norte-americano, que, dentro precisamente dessa tradição, faz da sua vinda a cada país um acontecimento raro. Os seus filmes são vistos apenas na presença do próprio e mostrados numa projecção em 16mm meticulosamente preparada. A um dia da sessão dupla de oito dos seus mais recentes filmes, perguntou-me se já tinha visto esses filmes. A minha resposta foi motivo para uma pergunta: em que medida a raridade do seu trabalho faz parte de uma muito consciente estratégia de auto-valorização ou de resistência à fácil banalização a que hoje o cinema – como a comunicação – se presta? Dorsky diz-me que os seus filmes estão aí, ele próprio acabava de vir da Viennale onde mostrou os mesmos filmes que iria mostrar no dia a seguir na Cinemateca e já havia passado a sua obra em Espanha, onde goza de um estatuto especial que teve como manifestação recente a homenagem que a revista de cinema Lumière lhe dedicou e que mereceu da parte desta a tradução em castelhano do seu livro Devotional Cinema. A Internet, nos recantos certos, pode oferecer-nos o acesso às pérolas mais preciosas, mas nem aí consegui arranjar as obras de Dorsky. “Mas li o seu livro,” acrescentei.
Dentro do restaurante, o ritual normalmente caótico de alocação dos convidados nos lugares disponíveis foi interrompido por uma ordem digna de um metteur en scène: “O Vítor fica perto de mim!” Joaquim Sapinho ordena as distâncias, como que compondo ali uma espécie de “última ceia cinéfila” – ou um casamento pasoliniano, como disse no segundo jantar – onde o passado e o presente, amigos, conhecidos, convidados se distribuem segundo uma ordem mínima. Essa ordem mínima estabelece que o realizador de Uma Rapariga no Verão (1986) e A Vida Invísivel (2013) se sente próximo de Sapinho. Joaquim, Nathaniel e Vítor. Com o realizador norte-americano no meio, era forçoso justificar a ordem – a ordem dada, numa exclamação, e a ordem posta, numa ordenação simbólica dos convidados. “O Vítor é o meu mestre. Eu sou um mero discípulo seu”, afirma Sapinho, que inscreveu a sua admiração numa dedicatória a Vítor Gonçalves feita no final do seu filme A Mulher Polícia (2003). Vítor é também colega de Sapinho no Conservatório, lugar onde se tem dado prosseguimento a toda uma maneira ou, a palavra usada foi essa, “tradição” de ver e fazer cinema em Portugal. Uma tradição que, ao contrário de muitas tradições, promove a diversidade de propostas. Durante o jantar, sinto necessidade de tocar nestes assuntos. Ao meu lado estava precisamente Vítor Gonçalves, cujo sorriso afável, a voz suave e o olhar atencioso rapidamente transformaram este cinéfilo que o ouvia no contrário do que ele se diz ser: um “tímido atávico”.

Com mais à-vontade para meter conversa, apressei-me logo a dar conta de uma coincidência feliz: na noite anterior tinha ouvido no YouTube a intervenção de Vítor Gonçalves na Cinemateca Portuguesa após a passagem de Uma Rapariga no Verão. Foi aí que o “tímido atávico” se revelou também um “obcecado pelo off“. Faz sentido que a timidez encaminhe um homem sensível para aquilo que Roland Barthes define como “campo cego” ou que mais comummente no meio do cinema se apelida de “fora de campo”. Mas agora quero recuar, porque o que me interessa aqui é precisamente a atracção pelo lado escuro, oculto ou, enfim, cego das coisas. Nesse seu primeiro filme, rodado nos anos 80, Vítor Gonçalves provocava uma reflexão sobre a incomunicabilidade e a morte debaixo da estação – que nomeia o filme – onde arquetipicamente tudo é claro, leve e airoso: o Verão. Em A Vida Invisível, filme realizado mais de vinte anos depois, ouvimos a certa altura a (ex-)mulher da personagem de Filipe Duarte a dizer que este gosta muito (supõe-se o “demais”) da escuridão. O lado escuro do Verão e de Filipe Duarte, o seu lado menos visível ou mesmo invisível, combina bem com a timidez e, mais significativamente, com a obsessão de Vítor Gonçalves pelo espaço off. O prato forte do seu cinema é esse. Subitamente, o cinema de Sapinho surgiu como o aperitivo mais que justo para uma conversa muito agradável que se desenrolou, muito fluidamente, por pelo menos uma hora.
No debate após a projecção de Deste Lado da Ressurreição, Sapinho disse: “Este filme está no seu off.” Se, por um lado, este é um filme de uma corporalidade rara no cinema português – ao À pala de Walsh Pedro Caldas, um dos formados na escola Vítor Gonçalves, havia-nos feito o diagnóstico: o cinema português não gosta de filmar o corpo – por outro lado , como também disse Sapinho, “o corpo e a alma são um, não dois.” Walter Benjamin em Imagens de Pensamento ajuda-nos a aprofundar esta ideia: “Só o corpo cria a presença do espírito.” O primeiro, sendo o on, dá-nos acesso aos Mistérios insondáveis do outro, o impalpável ou, usando uma palavra invocada por Dorsky no citado livro, o “inefável”. Subitamente, por uma palavra, por uma ideia, uma força transformadora põe em diálogo um cineasta avant-garde norte-americano, contemporâneo de Brakhage e Mekas, com um realizador português alinhado com uma tradição que nos remonta ao seu mestre maior, professor dos professores, António Reis – nem de propósito, Sapinho escolhe passar Ana (1982) no último dia de ciclo. A religiosidade que une corpo a alma, homem a Deus, o material ao imaterial, em último caso, o on ao off, congrega a experiência de rever Deste Lado da Ressurreição com as palavras escritas por Dorsky no seu Devotional Cinema. Um filme deve ser o que ele trata. A pedra, o metal e a madeira que a câmara de Sapinho filma como se fossem obras naturais (sonoras/visuais) a serem “achadas”, a serem “devotadas”, emprestam ao filme uma densidade corpórea que nos remete sempre para “algo mais”, leia-se, “algo mais além”. Também pelo contacto com as ondas e o sacrifício da carne num convento o protagonista procura aceder ao off da culpa que o martiriza. Nesta circulação entre o invisível e a presença, Sapinho encontra-se com Dorsky, o escritor, que no seu livro cita apropriadamente um cineasta que medeia todas as formas de contacto com a ideia de modernidade cinematográfica: Roberto Rossellini.
A propósito de Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954), Dorsky escreve: “Não é um filme sobre um assunto, ao invés ele é o assunto.” Estas palavras podiam pertencer a André Bazin, podem ser lidas sob outra forma nos ensaios de Amédée Ayfre, publicados em Un cinéma spiritualiste, mas neste contexto serviram de acompanhamento imprescindível ao meu revisionamento do filme de Sapinho. Fizeram-me olhar mais para o tecido do filme, nas suas texturas e cores, e menos para a sua dimensão “anedótica”. Conta-me Rui Santos, o montador do filme, que Sapinho terá lido e buscado inspiração ao livro de Dorsky durante a produção de Deste Lado da Ressurreição. Pela sua parte, Dorsky confessa ter visto o filme nos Estados Unidos, mas sem legendas. Pergunto-lhe se preferiu ver com ou sem legendas, recordando uma história contada por Abbas Kiarostami em 10 on Ten (2004). O realizador iraniano viu Scener ur ett äktenskap (Cenas da Vida Conjugal, 1973) sem legendas, o que não o impediu de gostar tanto que voltou a ver mais uma vez e mais uma vez e mais uma vez. A cada revisionamento, um novo, mais denso e misterioso filme penetrava-lhe os olhos e o espírito. Quando finalmente o viu com legendas, a desilusão foi enorme: o filme que imaginara várias vezes era melhor que aquele único filme imaginado por Bergman. Esse não foi o caso de Dorsky com o filme de Sapinho, até porque quando o viu sem legendas tinha ficado com a impressão de esta ser a história de um amor frustrado entre namorados e não a história de uma comunhão metafísica entre irmão e irmã.
Naquela primeira noite, o diálogo provocado entre os dois cinemas era ainda pouco reconhecido por Dorsky, que me diz não ver bem como se pode incluir Deste Lado da Ressurreição no espectro de filmes consagrados no seu livro. Contudo, é de Sapinho que surge uma expressão completamente acidental, e por isso mesmo miraculosa, que resume lapidarmente a estada de Dorsky em Portugal. Numa conversa em torno de Ana – escolha de Sapinho – e Le diable probablement (1977) – escolha de Dorsky – o cineasta português, que nunca presta o seu inglês impecável a deslizes por mais mínimos que sejam, mostra como até uma minúscula e irrelevante gaffe pode ser tão fértil: em vez de “searching for” sai-lhe “churching for.” A conversa estava contaminada pelas palavras do livro de Dorsky, tal como pela sua visão do mundo, mas também pela religiosidade consagrada em Deste Lado da Ressurreição. Na plateia, ouviu-se: “António Reis trata a Natureza como se fosse uma catedral.” Cita-se o filme de Bresson quando o seu herói acossado lê uma passagem de Victor Hugo sobre a experiência sagrada do espaço da igreja.
Nem de propósito, durante a semana completa em que esteve cá, Dorsky visitou o maior número de igrejas que pôde. Não queria tanto paisagens bonitas, vegetações resplandecentes, lagos e céus (ou céus espelhados em lagos) divinais. Na companhia de Joaquim Sapinho e da sua velhinha câmara Bolex, foi a Sintra visitar o Convento dos Capuchos e, em Lisboa, deixou-se habitar pelo faustoso interior da Igreja de São Roque. No Museu Nacional de Arte Antiga, conta-me Rui Santos que Nathaniel Dorsky se demorou longamente num quadro: São Francisco Recebendo os Estigmas (1520-1530 d.C.) de Frei Bento. Nessa imagem, como num “filme sem legendas”, Dorsky encontrou uma narrativa sua: vemos dois monges, um será São Francisco e outro um seu seguidor, mas para o realizador norte-americano os dois são um. Eis São Francisco com a mão apoiando o rosto, caído num sonho onde é bafejado pela Luz de Cristo. Esse quadro faz raccord com os planos de Deste Lado da Ressurreição em que vemos personagens (monge e irmã) tentando dormir. O som da dor (o jovem que se fustiga e a mãe que chora na divisão ao lado, respectivamente) impede a imersão no sonho. Um desassossego do espírito e da carne que liga as linhas narrativas que estão fundamentalmente disjuntas no filme. Esta imagem da vida, a de Dorsky a contemplar um quadro, é também simbólica – “auto-simbólica”, retomando uma palavra importante no seu livro – da experiência do tempo tal como é oferecida no seu cinema. Penso que era Jean-François Lyotard que dizia que o cinema experimental se dividia essencialmente entre a extrema velocidade e a máxima imobilidade das imagens. Se assim é, Dorsky tenderá para este último pólo. A sua experiência do tempo, do quadro fílmico, está mais próxima do cinema estrutural de Snow e Benning, mas, no quadro fílmico, os temas recorrentes remetem-nos mais para Cornell, Burckhardt e Brakhage (os instantes de beleza feitos de luz, cor, reflexos); Marie Menken e Jonas Mekas (as flores que se regam – e se cheiram – com a Bolex, os “glimpses of beauty” e a experiência religiosa, quase panteísta, na obra do cineasta nascido na Lituânia, padrinho do New American Cinema); e Ken Jacobs [sobretudo penso na singeleza etérea daquela janela em Window (1964)].

Enfim, em Portugal, os olhos – e a câmara – de Dorsky procuraram o sagrado como Sapinho e o seu surfista no filme: surfing, searching or ‘churching‘ for the sacred? Sim, mas sem refrear os seus impulsos mais antigos, dignos do que diria ser um verdadeiro “coleccionador de instantes”. Se um raio de luz intercepta uma sala de determinada maneira, se uma garrafa de Água das Pedras – passe a publicidade – se oferece ao seu olho como “membrana” ou “ecrã” virado para o mundo, pois então Dorsky não hesita em pegar na sua Bolex e filmar. Como se viu nas duas sessões quase lotadas da sala Félix Ribeiro, a religiosidade de Dorsky está na sua relação háptica com as coisas terrenas, procurando revelar a lonjura da mais primordial aproximação aos elementos – esta é, enfim, a sua metafísica. Quando Dorsky provocou alguma controvérsia por falar da falta de envolvimento – ou o excesso de distância – de Reis e Bresson nos seus filmes, estava a fazer como o seu cinema: a falar de si mesmo.
A proximidade de Dorsky com o que filma – plantas, árvores, espelhos de água, etc. – é tal que parece que os dois tecidos, o do filme e do mundo, se tocam. Há um “pele contra pele”, um envolvimento quase sensual com os instantes dados, onde o belo aparece na sua feição mais plena, ou seja, no máximo da sua “erótica”. Calhou que, nestes dias, andei a ler um dos últimos ensaios publicados em Portugal do filósofo germano-sul-coreano Byung-chul Han, A Sociedade da Transparência, onde sublinhei a seguinte passagem: “A transparência não é o meio do belo. (…) A beleza não pode desembuçar-se porque está por força ligada ao véu e ao encobrimento.” Mais adiante, conclui: “A transparência é desprovida de transcendência“. O cinema de Dorsky literaliza esta ideia, nessa estratégia formal de transformar o ecrã num assunto sobre si mesmo, multiplicando-se nele superfícies, algumas mais translúcidas, outras mais opacas, que deixam entrever – só entrever – um mundo que nos parece, simultaneamente, distante e familiar. Sapinho faz um filme expressamente sobre a experiência religiosa, ao passo que Dorsky tem já, a priori, um olhar religioso – religioso de religare – sobre o mundo, treinado, enfim, para captar esses instantes imprevisíveis onde o corriqueiro aparece atravessado pelo brilho do cosmos.
O filme é para ser visto no “ecrã”, alerta Dorsky antes da sessão, e os seus filmes estão, ao mesmo tempo e como já aduzimos mas sem concretizar, povoados por ecrãs. O seu cinema é como se fosse uma “membrana de membranas”, para usar e talvez abusar de uma palavra usada pelo próprio na sua intervenção final na Cinemateca. Exemplo desses membranas? Desde logo, “projecções” do céu em fontes que lembram Angel (1957) de Joseph Cornell e Rudolph Burckhardt, espelhos que reflectem os ramos e as folhas das árvores ao vento – o mesmo vento ou as mesmas folhas que comoveram Griffith quando viu os filmes dos Lumière – e sombras de transeuntes que “animam” a pedra do passeio, transformando-se este, por instantes, num cinema vivo (pós-platónico) debaixo dos nossos pés. É algures aí que habita o cinema de Dorsky, notou na mesa final da Cinemateca Haden Guest, director do Harvard Film Archive e curador com Sapinho do Harvard na Gulbenkian. Para além das projecções ecrânicas do mundo na sua própria matéria, temos as tais superfícies mais ou menos translúcidas que separam a câmara do “lado de lá” daquilo que filma. A partir de ramos de árvores, vidros de cores e densidades variadas, Dorsky compõe deste modo quadros, alguns quase imóveis, que reconduzem as formas e cores achadas para uma espécie de assemblage natural, como se cada plano fosse, notou o sempre incisivo Mark McElhatten, curador e co-fundador dos ciclos “Views From the Avant-Garde” no New York International Film Festival, uma das famosas caixas de Joseph Cornell.
Há um plano que, no terceiro e último jantar, não pude deixar de referir ao próprio. No seu filme Summer (2013) – um Verão não forçosamente veranil, alertou antes da projecção – vemos uma mão a tocar subtilmente num espelho. O plano inscreve-se na nossa memória pelo gesto e pela presença de duas formas, uma que vai rareando no seu cinema – a forma humana – e outra, como já vimos, que abunda no seu cinema – a forma ecrânica. Ora, na conversa, Dorsky confirma as suspeitas, primeiro, da importância daquele momento; segundo, da sua própria estranheza dentro da sucessão das projecções. O espelho, afinal, não era espelho nenhum, mas um Ipad desligado. A presença da tecnologia num mundo tão orgânico e táctil parece-me ser a provocação ideal do seu cinema para si mesmo. Perguntei-lhe em que medida considerava a ideia de touchscreen uma espécie de pós-conceito muito útil à “leitura” – palavra madrasta para Dorsky – do seu cinema. Não respondeu com palavras, mas com um sorriso. E porque não? O ecrã é tocado e o ecrã toca-nos. O filme, disse-me naquela curta viagem para o restaurante na primeira noite, deve tocar aqui (tocou-me no peito) e menos aqui (tocou-me na testa). Parafraseio: se o meu filme passar em sala em película 16mm, com a densidade de luz certa, então este toca mesmo aqui (toca-me vigorosamente no peito com a ponta dos dedos), mas se o meu filme passar num DCP ele não chega a tocar verdadeiramente (simula o mesmo movimento mas, suspense, sem chegar a tocar-me no peito).

A importância da projecção acompanha a importância da rodagem e da montagem. Dorsky prepara o auditório com uma espécie de chamada de atenção: isto é um pouco como uma live performance. De facto, aquela plateia preparava-se para ver quatro filmes oscilando entre os 11 e os 21 minutos onde, dentro da boa tradição de Stan Brakhage, não há nenhuma história para ser interpretada, onde a haver narrativa esta é feita de cores e formas e, pormenor importante em contexto de exibição em sala, não há som. Quando as luzes se apagam, o silêncio impõe-se como uma ordem e, então, pode começar a projecção do belíssimo Sarabande (2008). Poucos minutos passam e o anúncio de Dorsky “isto é uma live performance” começa a ganhar uma vida inesperada. Um homem na plateia grunhe: “Não se vê nada, está muito escuro.” A inquietude desta pessoa – desta voz sem corpo imersa na escuridão – começou desse modo a contaminar a atmosfera. Subitamente, esse espectador levanta-se da cadeira, dirige-se à porta, abre-a com toda a força e antes de a fechar com estrondo grita: “Filme de esquizofrénico!”
Foi preciso muito tempo para que a sala entrasse, de facto, na experiência do filme? Não, a experiência do filme só tem de incluir reacções como a daquele homem. Cheguei a este conclusão a posteriori, quando perguntei a Joaquim Sapinho e a Haden Guest, no jantar da segunda noite, se podia entender a reacção daquela pessoa como sintomática da generalizada falta de sensibilidade ou mesmo de cultura do espectador português para o cinema avant-garde. Uma falta de cultura que tinha as suas raízes na pouca atenção que, inclusivamente, os professores de cinema portugueses dão à história e tradição do cinema experimental, principalmente a do underground norte-americano. Na primeira noite, Vítor Gonçalves falou do desprezo que António Reis acalentava pelo avant-garde. A sua “embirração” transferiu-se para o aluno, hoje professor, que assume, por exemplo, não gostar dos filmes experimentais de Bergman, como Persona (1966), preferindo os iniciais, tal como Sommarlek (Um Verão de Amor, 1951). Especulei sobre se as origens da grande tradição do cinema português, o cinema clássico norte-americano e a Nouvelle Vague, não explicariam em parte esta desatenção. Uma história com o seu quê de anedótica parece-me ilustrativa do grau de desinteresse ou desconhecimento que a geração dos Cahiers amarelos alimentou durante anos em relação ao que se passava do outro lado do Atlântico no tocante ao chamado “cinema puro”. Godard um dia terá descoberto a obra de Hollis Frampton e, radiante, comunicou o desejo de se encontrar com o realizador de Surface Tension (1968). O encontro não se propiciou pela simples razão de que nesta altura Frampton já havia falecido.
Na segunda noite, com o grito do homem ainda a ecoar nas nossas cabeças, Joaquim Sapinho respondeu à minha questão de outro modo, dando uma leitura mais ampla ao conceito de vanguarda no cinema português. Porque não ver em Reis um exemplo de cinema avant-garde? E – acrescentaria agora eu – o Sapinho de Deste Lado da Ressurreição, por exemplo? É possível esticar o conceito, mas para um americano como é Haden Guest a minha pergunta provocou uma resposta mais próxima da de Vítor Gonçalves. De qualquer modo, Haden esclarecia que a irrequietude do público português perante os filmes de Dorsky não podia ser vista como consequência dessa deseducação do olhar. Na verdade, como me confidenciou no jantar dessa noite, em quase todas as passagens dos filmes de Dorsky pela Europa registaram-se “incidentes” semelhantes. Independentemente disso, aquele grito dispensou a frase “isto é uma live performance” de qualquer explicação suplementar. Ela tornou-se, em certa medida, demasiado evidente para não ser compreendida.

A partir do momento em que o homem gritou e o seu lugar ficou vazio, o silêncio pôde entrar e ocupar o seu lugar. Contudo, não mais deixei de pensar nessa ligação invisível, irreproduzível, aurática em certo sentido, de um filme completamente mudo com o seu auditório numa sala de cinema. Cada ruído involuntário ou voluntário vai compor uma espécie de banda sonora acidental, que é parte da fragilidade tanto quanto é parte da potência dessa experiência. Potência de estar vulnerável a uma vida que não a contida na “caixa ecrânica”, potência de que essa experiência seja formada e deformada pela vida. De repente, também nós, público, estamos implicados na percepção geral do objecto à nossa frente. Na segunda sessão de quatro filmes, notei como, sempre que a porta de saída era aberta, um raio de luz irrompia sobre a plateia, transmutando-a na imagem de qualquer coisa como um canteiro de cabeças viradas para o ecrã, como flores viradas para o sol. Reparei nisto, mas só porque segundos antes vi December (2014), onde, a certa altura, uma imagem tremeluzente, alternando entre luz e escuridão, nos dá a ver flores num jardim. Será que devo agradecer ao homem enfurecido esta “visão” que eu tive (finalmente) fora do ecrã, isto é, deste lado da membrana? Na última noite, Haden Guest e Joaquim Sapinho contaram a história desse homem a Rui Vieira Nery, insigne musicólogo e director do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas, que gracejou: “Pois, fui eu que o contratei para fazer isso. Custou-me um dinheirão!” Se assim foi, pois então só posso dizer: muito obrigado, caro Nery!
Quero agradecer a toda a organização do Harvard na Gulbenkian por esta oportunidade de seguir de perto o evento e poder absorver toda a efervescência intelectual que rodeia estes encontros do cinema. Quero agradecer ainda, em especial, à Inês Alves pela cedência das suas fotografias e à Patrícia Milhanas Machado pela ajuda em localizar o quadro de Frei Bento, em exposição no Museu Nacional de Arte Antiga. A parceria com Harvard na Gulbenkian continua nos próximos programas, onde um novo walshiano reportará à sua maneira os “fios de luz” que atravessem semelhantes experiências.