Já na segunda metade do recém nomeado aos Óscares The Imitation Game (O jogo da imitação, 2014), Alan Turing, um Benedict Cumberbatch de olhar azul cristalino e gravata grená, acusado de assediar um jovem para lhe tocar no pénis é interrogado na esquadra. O polícia bom pergunta-lhe “can machines think?”. Esta pergunta é o objecto do paper académico que Turing apresentou ao mundo em 1950 de nome “Computer Machinery and Intelligence” e no qual, porque ninguém se podia pôr de acordo sobre qual a melhor maneira de definir o que é pensar, substitui por uma outra questão, aparentemente mais prosaica, a de saber se o computador podia jogar o “jogo da imitação”. Daqui partiu o célebre teste de Turing no qual o objectivo seria saber se um sujeito qualquer conseguiria distinguir estar a falar com um homem ou uma máquina.
O mesmo jogo pode ser jogado pelo espectador: é The Imitation Game filmado por uma máquina ou por um homem? O nórdico Morten Tyldum, que até pode ser considerado o melhor realizador deste ano pela Academia, estreia-se a realizar em língua inglesa e à americana. Não é pois de estranhar que a tentação de mostrar uma consciência própria se possa fazer passar por um esperanto, ou seja uma imitação, na linguagem das biopics, subgénero que tenta emoldurar numa sequência de nós dramáticos homogéneos (e que assim a pensam homenagear) a vida de quem quer que seja, a Diana, a Dama de Ferro ou um porco. Ou melhor, Mr. Turner, no dizer do walshiano João Lameira.
No caso do famoso matemático decifrador de puzzles Alan Turing, recentemente “perdoado” pela Coroa Britânica pela sua acusação em 52 de homossexualidade e condenação à castração química em alternativa à prisão, a excepção não se confirma. No “jogo de imitação” dos filmes biográficos o génio é um grande génio insociável, há as personagens que parecem boas mas são más, as que parecem más mas até são boas, os flashbacks para a adolescência, as cenas de insucesso temporário antes do triunfo final e claro, o final amargo que, em loop, parece justificar o sentimento de culpa do espectador, e consequentemente, a homenagem de quem o filmou e de quem agora o vê.
Assim sendo, porque ao contrário do teste de Turing a imitação é tão perfeita que o filme, senhores, é um filme-máquina resta-nos descobrir o filme-homem que nele há. Ainda na cena da esquadra, Cumberbatch pergunta ao polícia se quer jogar o jogo e que para tal basta fazer-lhe uma pergunta. O rosto de perfil entre o equídeo e o manequim de montra, entre a boneco azul do Avatar e o alheamento de Forrest Gump, mostram que Benedict Cumberbatch é o filme-homem que agita a maquinabilidade do herói que deu a ganhar a guerra aos ingleses decifrando-lhes o código mestre das suas operações. Mas como acontecia com outra personagem entre a máquina e o homem, o infilmável Gilbert Simondon, o interessante é que a humanidade deste Turing de Cumberbatch é precisamente um certo-devir máquina que só conseguia dar-se aos outros por imitação do sentir comunitário.
Resta-nos ainda perceber que se Mark Zuckerberg criou o Facebook porque queria espreitar gajas talvez The Imitation Game seja a história de amor impossível entre Turing e o seu colega de escola Christopher, que o gesto frankensteiniano de criação da máquina de Christopher seja a de reposição e recanalização do afecto entre um homem e um homem para o amor entre o homem e a máquina. Numa transição que dá que pensar, Tyldum cola as rodas da máquina de Christopher e o pisar de um capacete de guerra pelo rolar de uma lagarta de um tanque no palco de guerra. Esta imagem que cola o cinema, a técnica e a guerra (esse trio que tão bem dança junto) deixa na sombra essa outra de rodinhas como mamilos, cabos como vermelhos cabelos, interruptores como… vocês percebem.
O final deste exercício de ver por detrás da imitação – “the brain is the screen”, não é? -, de separar as cenouras das ervilhas tem um final conhecido. Turing comeu da maçã do pecado original da homofobia, deixando-nos o rasto da máquina universal que hoje tudo domina. Mas o amor com que a construiu, porque todo o amor é singular, levou-o com ele. E ainda bem, pois senão estaria hoje a escrever-vos este texto a partir do meu Cristóvão.