Primeiro os editores, depois os críticos e, mais tarde, os leitores (acidentais ou não) de um bestseller começam a morrer quando lêem umas poucas linhas do dito. Morte cerebral causada por mais um daqueles livros confessionais sobre a vida extraordinariamente ordinária do próprio escritor. Em que não se encontra o mínimo risco, só a identificação completa entre obra e leitores, à procura de se reverem em tudo e mais alguma coisa. Esta é a premissa da divertida sátira de Charlie Hill, Books. Para o caso, em vez de um livro meio auto-biográfico escrito no estilo das revistas para homem bem podia ser um qualquer exemplo da recente leva de literatura pseudo-erótica e marota que tem assolado as livrarias. Bem podia ser Fifty Shades of Grey de E.L. James.
Que se saiba ainda ninguém morreu ao entrar em contacto com o inane livro de James nem com o filme homónimo de Sam Taylor-Johnson, acabadinho de estrear (mas é melhor ter cautela). Aliás, o objecto em si (cinjo-me agora ao cinematográfico) provoca sobretudo indiferença, ou seja, provoca nada. Nem é mau nem é bom, antes pelo contrário. Muito compostinho e bem feitinho, de um bom gosto cinzento, consegue até ser melhor do que o livro (não era difícil, não). É tão complicado descobrir defeitos como qualidades. Pode apontar-se uma ou outra deficiência: os diálogos risíveis, o protagonista canastrão (pura objectificação do corpo masculino; é capaz de contar como feminismo, não sei), o helicóptero que voou directamente das fantasias de uma adolescente de doze anos para o ecrã de cinema. Pode desvendar-se aqui e ali algo de interessante: a interpretação de Dakota Johnson (filha de Melanie Griffith e, por conseguinte, neta de Tippi Hedren), na qual o espectador tenta encontrar um porto de abrigo da banalidade circundante, aquela primeira cena no escritório IKEA de Mr. Grey tão paródica como a da esquadra de polícia de Last Action Hero (O Último Grande Herói, 1993) de John McTiernan. Finalmente, pouco interessa.
Que importa escrever que havia mais sado-masoquismo e perversidade num qualquer produto dos estúdios de Hollywood dos anos 40 e 50? Para não falar em Lynch, Cronenberg ou na relação entre a avó de Dakota Johnson e Alfred Hitchcock e nos filmes resultantes? Ou que havia mais transgressão no softcore manhoso dos anos 80 e 90 do qual Mickey Rourke era a grande estrela? Que mesmo difícil é fazer um filme pouco perverso? Ou será que a realização de Taylor-Johnson sempre a desviar-se da zona pélvica dos actores, não fosse aparecer algum pêlo púbico, queres ver que é desta? aquilo era uma pila?, é a maior perversidade de todas?
Qualquer discurso crítico à volta de Fifty Shades of Grey (As Cinquenta Sombras de Grey, 2015) está destinado à irrelevância. Da mesma maneira que é indefensável (não se consegue imaginar alguém a defendê-lo com veemência) é incriticável. Ou, pelo menos, imune à crítica. Como obra de arte, é inexistente. Como produto, é altamente funcional, cumprindo todos os requisitos necessários. Apesar dos (presumíveis) protestos de religiosos mais fundamentalistas e restantes pessoas que se chocam com facilidade, não fere a susceptibilidade de ninguém, para não perder a possibilidade de chegar a mais um cliente, enquanto mantém a promessa de titilação, num tease interminável que jamais dá tesão. Faz tudo parte do jogo. Pois o que realmente conta é o fenómeno, esta espécie de histeria colectiva que engloba os espectadores que acorrerão em massa ao cinema – Fifty Shades é um filme-Cavaco, político de que ninguém gosta mas ganha (quase) sempre as eleições -, os outros que passarão algumas semanas a vociferar contra estes, os jornalistas à procura da história do momento, os críticos, meros instrumentos da máquina promocional. Textos como este só servem para alimentar o monstro. E, sim, toda a gente a lê-lo neste momento (tenho a certeza que será muita) também está a contribuir para o mesmo.
Fifty Shades of Grey não mata mas mói.