Richard Brody, no brilhante artigo The Demise of Physical Comedy, propõe uma explicação para a distância que cada vez mais se nota entre a comédia cinematográfica slapstick do início do século e a comédia cinematográfica dos nossos dias, diz ele: numa América onde o trabalho físico era a ordem do dia, a comédia de então era naturalmente física, ao passo que, hoje em dia, quando o trabalho é tanto mais terciário (e como tal intelectual) a comédia popular é emocional. Assim as chapadas e escorregadelas em bananas foram substituídas por baladas românticas e beijos à chuva. Inside Out (Divertida-Mente, 2015) de Pete Docter e Ronaldo Del Carmen é a evidência desse estado de coisas – não é por acaso que a primeira das “ilhas emocionais” da protagonista a derrocar seja, nem mais nem menos, que a ilha da palhaçada -, o auge da emoção sobre o movimento, ou melhor o auge da emoção como movimento. É exactamente esse acto de fazer mover a emoção que se evidencia neste filme, um trabalho (diria revolucionário) de figuração do sentir – já que uma vez encetado não mais pode deixar de se fazer evidente (mas já lá irei).
É sabido o extraordinário poder figurativo do cinema, só ele nos permite aceder a imagens que doutro modo não conheceríamos, imagens essas que pelo movimento não nos dão a impressão de realidade. O poder revolucionário dessa figuração é que a impressão do real pode por vezes ser de facto impressa no espectador, um carimbo que teima em descolar. (Uma vez vistas as imagens do campo de concentração de Belsen não mais se poderá deixar de pensar nelas, uma prova de real que impressiona e se imprime no espectador.) Esse poder figurativo foi, não raras vezes, usado para aceder ao estado mental ou emocional dos personagens, quer seja pela câmara (semi-)subjectiva, pela transvisualização do flashback, pela narração em focalização interna. Enfim, os meios do cinema (clássico americano) nos fazer aceder às emoções dos personagens, e de no processo nos fazer empatizar com essas emoções, são mais que muitos e foi isso que quase sempre o distinguiu das restantes cinematografias (e talvez daí venha o seu sucesso).
Inside Out leva esses meios às sua “actualizada potência” pelas possibilidades do cinema digital e da animação computadorizada; assim todo o filme existe na e pela constante exibição do seu virtuosismo figurativo do funcionamento emocional ao nível do cérebro: ora vemos as cinco emoções base que orientam cada decisão (alegria, tristeza, medo, raiva e nojo), ora nos passa pela frente um comboio de pensamento (carregado de factos e opiniões – nunca os sei distinguir), ora entramos no pensamento abstracto (onde tudo se reconfigura, fragmenta, bidimensiona e simplifica – momento hilariante também pelo facto de revelar o próprio dispositivo da animação 3D), ora descemos às profundezas do inconsciente onde tudo é enorme e sombrio, ora visitamos a fábrica de sonhos (e sim, é um estúdio de televisão transvestido de Hollywood), ora nos perdemos na memória a longo prazo, ouvimos falar do pensamento indutivo, do dejá vu e de memórias nucleares. Tudo isto é literalizado pela imagem animada e pelas potencialidades do cinema digital dar forma e cor a cada uma destas facetas do nosso cérebro. Tudo feito diegeticamente, tudo científico e tudo de modo que até uma criança de três seria capaz de perceber.
E é talvez esta a fraqueza (inevitável, por ser simultaneamente a sua força) do filme: a simplificação dos processos cerebrais, a elevação da emoção à torre de comando, a polarização entre as figuras emocionais a favor do efeito dramático…
Daí o referido poder revolucionário da figuração do sentir, é que uma vez posto em imagens o espectador vê-se obrigado a pensar em cada uma das suas acções como o resultado do debate interno entre cinco figuras coloridas que habitam o seu cérebro. Ou seja, Inside Out torna inevitável pensar imageticamente em emoções e obriga a uma consciência das mesmas – que emoção estará a comandar agora? – tornando por isso todo o movimento emocional. E é talvez esta a fraqueza (inevitável, por ser simultaneamente a sua força) do filme: a simplificação dos processos cerebrais, a elevação da emoção à torre de comando, a polarização entre as figuras emocionais a favor do efeito dramático…
Mas convenhamos que tudo isso não é próprio de Pete Docter e Ronaldo Del Carmen; já a explicação visual da proporção entre consciente e inconsciente na forma de um iceberg pecava do mesmo modo, assim como a trindade freudiana entre Ego, Id e Super-ego seguia pelos mesmo enleios. Poder-se-ia afirmar ironicamente que é o pensamento abstracto (o único que pode tentar perceber o cérebro humano?) o responsável por estas imagens demasiado simplistas do pensar e do sentir, e talvez a ironia não seja necessária. Há no entanto algo novo a acrescentar às anteriores figurações da emoção em Inside Out, e essa novidade passa pela inclusão da forma de pensar na era digital. No filme tudo no cérebro são ecrãs; a visão é uma enorme tela onde literalmente se projectam memórias e se exibe o real e os sonhos (a diferença entre cinema e televisão, onde o primeiro trata de imagens que atravessam o espaço até encontrarem o seu espelho e a segunda constrói as imagens no seu interior e exibe-as directamente – diferença simbólica, já que de facto o cinema lembra e a televisão esquece e engana), cada uma das memórias é um berlinde táctil a que se pode fazer rewind e a memória a longo prazo toma a forma de torres como as centrais de armazenamento de dados, tudo como num computador (esse sim, a melhor e mais próxima figuração do cérebro… ao qual falta a emoção!)
Neste sentido o filme de Peter Docter e Ronaldo Del Carmen coloca-se como mais um tijolo daquilo que é a mais forte (e já enjoativa) corrente do cinema contemporâneo, o cinema da memória – cinema esse que vai desde o mais pessoal trabalho com os arquivos pessoais (o queridos home movies), passando pelo trabalho com os arquivos nacionais, até às mais caras produções mainstream [basta recordar Inception (A Origem, 2010)] – tendo uma consciência rara da importância do digital nos processos cerebrais. Inside Out é pois um filme que explora uma via de pensar a memória através de um passeio colorido, táctil e didático ao mundo da emoção. Emocionem-se!