Os primeiros quinze minutos de Kreuzweg (Estações da Cruz, 2014) conseguem juntar os dois dogmas que o definem e que não mais se largarão até ao final do filme (ou o Jesus colocado na tumba): um, o da austeridade formal de um certo cinema de autor que vê o pecado não ao virar da esquina mas ao virar da câmara, isto é, que se pugna pela seriedade dos planos fixos e longos; e dois, o dogma de uma seita (tecnicamente, uma fraternidade) que tem um entendimento muito restrito e rigoroso da vida de e para o catolicismo. Neste primeiro plano, então, o padre da sociedade de São Paulo (nome ficcional para a real Fraternidade Sacerdotal de São Pio X) ensina aos seus alunos da catequese, numa composição frontal a recriar levemente A Última Ceia, todas as regras e objectivos desta casa do Senhor: entre estas, o rock é uma música do demo, e o sacrifício do dentinho no bolo ou da língua no chá são uma oportunidade para resistir às tentações do capeta. Já se está a ver por onde é que isto vai, não?
O argumento co-escrito pelo realizador e sua irmã Anna Brüggemann, premiado o ano passado em Berlim, estrutura a vida de uma jovem de 14 anos, Maria (que habita com a sua família no seio desta visão religiosa), sobre as 14 estações da via sacra. Neste paralelismo, o filme avança por capítulos, que estão mais próximos da composição pictórica (câmaras frontais, tableaux com exposição sobretudo por via da palavra) explorando sobretudo a tese de que no extremismo religioso existe um caminho para a auto-destruição, quer lhe chamemos sacrifício ou não.
O milagre anunciado faz de Kreuzweg um filme um tanto preso à sua inteligente premissa de base.
Se o paralelismo entre a austeridade religiosa e uma certa austeridade formal da “religiosidade” autoral cinematográfica daria pano para mangas – e sobretudo granjearia inimigos mortais daqueles que acreditam que há apenas uma forma certa para a salvação (isto é, a seita dos defensores do “único” e do “bom” cinema) – prefiro submeter-me aos dilemas de Maria, que por acaso aqui é Jesus. E estes dilemas consomem-na: queria poder cantar soul num coro de igreja de um amigo de escola (mas o soul também é domínio de satã), confessa-se por mentir à austera e desiquilibrada mãe e, finalmente, quer sacrificar-se pelo seu irmão doente de cinco anos para que este se salve e saia da mudez que o encerra do mundo desde que nasceu.
Enquanto que numa obra como Hors Satan (Fora, Satanás, 2011), Bruno Dumont anda à procura de um milagre sem saber muito bem qual é, ou se na obra maior de Dreyer, Ordet (A Palavra, 1955), esse milagre nos cai no olhar como uma ascensão do próprio cinema como salvação e ressurreição, o milagre dos irmãos Brüggemann é demasiado talhado pela escrita. O milagre anunciado faz de Kreuzweg um filme um tanto preso à sua inteligente premissa de base, um todo que se sacrifica ele próprio a uma potencial abertura face ao paralelismo de base. Para alcançar uma geometria menos euclidiana (ou menos hanekiana, autor que daqui também não anda completamente arredado) o espectador consegue prolongar a ideia inicial e dizer que não só aquela religião insana pode levar à destruição mas que todo o excesso se destina a produzir o seu contrário.
Outra ideias ficam connosco. Quando o médico vê Maria já muito pálida e à beira da anorexia, ele desconfia de bullying e aí percebe-se que o filme de Dietrich Brüggemann também nos dá uma visão mais alargada desse fenómeno tão recente, em que a grande bully é a própria mãe. As pequenas simbologias como o que de mais elevado e “sagrado” existe naquele universo: as costas de Maria no consultório com o capítulo que anunciava “As roupas de Jesus são levadas” ou antes, um lenço de papel da au pair de Maria como véu de Veronica. Finalmente, a força do último movimento de câmara (e quase único em todo o filme) para os céus (a ressurreição) num filme um tanto refém de um argumento e de uma realização algo demiurgas que sabem, mas não mostram nenhuma vez, o valor do sorriso de Satanás.
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