Algures nele procuramos isolar uma fórmula que explique a existência do Homem e que prove a existência de Deus. Mas a paisagem é fria e inóspita, isto é, pouco convidativa a essa procura – e ainda menos atreita a qualquer uma dessas grandes descobertas. Como um deserto gelado e escuro, no espaço ninguém nos ouve, cai-se no vazio, o que é diferente de dizer que se “nada no nada”. Rodeado de tudo, estrelas e planetas que carregam uma memória maior que aquilo que conseguimos conceber, o espaço tira-nos tudo: o oxigénio e a gravidade. Nada é firme, seguro, tudo é incerto, salvo a certeza de que, na ausência de limites, o universo é sempre infinitamente mais sabedor e prodigioso do que nós. A sopa metafísica está servida.
Pensar (n)o cosmos é pensar (n)o homem – essa a razão por que, ao contrário de tantos outros planos contemplativos do cosmos “puro e duro”, escolhemos um que ilustra essa relação, essa dependência inextricável. Não há cosmos sem o homem; não há homem sem o cosmos. Literalmente: o cosmos, a ideia de cosmos é, ela mesmo, uma construção intelectual, logo, humana. Se essa relação de dependência é tão evidente ou “rasteira”, ela não deixa, no entanto, de convocar as mais transcendentes e inquietantes questões. Aliás, ela levanta mesmo “a” questão das questões, a da existência e do seu sentido: quem somos? Porque estamos aqui? Quem ou o quê nos pôs aqui? Para onde vamos (não só, ou não tanto, no “depois da morte”, mas, sobretudo, enquanto grupo, enquanto humanidade, em marcha em direcção a alguma coisa)? Tudo perguntas de um tal teor que só possui equivalente plástico na vastidão, escuridão do cosmos, onde uma cientista se confronta com questões ironicamente nada existenciais, muito terrenas: a perda de uma filha e o urgente conserto da nave em que se encontra (com vista privilegiada para a Terra), sob pena de se desintegrar no espaço. Se, como referimos, é de dependência a relação entre homem e cosmos, entre particular e universal, terreno e transcendente, logo se infere como essa é uma relação, digamos, de amor-ódio: o cosmos é grande, infinito, e o desconhecimento que dele temos assusta aterradoramente o homem (inclusive sendo fonte das mais conspirativas teorias!) ao mesmo tempo que o desafia à descoberta e à superação (?) da sua condição. O medo, a sensação de esmagamento perante algo ou alguém que é maior que nós são esses pés sem piso firme onde pousar, esses braços pedindo ajuda, o esgar desesperado que se advinha dentro do capacete. Tudo no mais absoluto e belo silêncio, mestria de Cuarón, que o preserva no filme. Mais ou menos à deriva, o homem está só e só continuará no cosmos.
Franscisco Noronha
Estamos no espaço infinito na companhia de um grupo de astronautas que tem por missão fazer explodir planetas instáveis. A viagem já vai longa. Os homens conhecem-se bem, bem de mais: ouvem e contam as mesmas histórias sem parar, ao mesmo tempo que reproduzem os mesmíssimos rituais diários… até que… John Carpenter e Dan O’Bannon, o homem que viria a a escrever a história de Alien (O Oitavo Passageiro, 1979), assinam este filme có(s)mico que explora a premissa: “truck drivers in space”. Produção “de escola” de baixíssimo orçamento, resultado de uma imaginação, criatividade, espirituosidade e irreverência típicas aos jovens brilhantes, Dark Star (Estrela Negra, 1974) é um laboratório descontraído de muito do que veio a ser o cinema de John Carpenter, mesmo que este assuma como sua verdadeira primeira obra o insuperável Assault on Precinct 13 (Assalto à 13ª Esquadra, 1976). Desde logo, é um filme sobre camaradagem hawksiana e o seu gradual processo de degenerescência. E também é um filme de cenas memoráveis. Os seus últimos 8 minutos são alguns dos mais inspirados da obra carpenteriana. Um dos astronautas procura desprogramar uma bomba dando-lhe uma aula de fenomenologia. Apesar de bem sucedido inicialmente, acaba por gerar um efeito imprevisível – a filosofia é assim mesmo. O “truck in space” desfaz-se em pedaços. E é aí que o excelso professor, especialista em Hegel e Merleau-Ponty, aproveita um dos destroços para o transformar numa prancha de surf. Sobre ela, o capitão Doolittle viaja directo para o planeta mais próximo. É uma homenagem a Dr. Strangelove (Dr. Estranhoamor, 1964), mas em versão pacifista. Neste lado da ressurreição.
Luís Mendonça
“This is the universe. Big, isn’t it?”, ouve-se na voz do narrador que nos atira para o cosmos. Este plano é uma perspectiva divina, tirado da sequência inicial de A Matter of Life and Death (Um Caso de Vida ou de Morte, 1946). Só Deus, na figura de Michael Powell – e também de Emeric Pressburger –, coloca o olhar tão acima de tudo, para ir descendo até ao planeta terra, e dar-nos conta do que se passa nesse 2 de maio de 1945. Além do realizador, numa postura de omnivisão, há também a personagem de Roger Livesey, Dr. Reeves, o psiquiatra que, do interior da sua câmara escura, observa a vida da pequena cidade onde habita. A Matter of Life and Death é, assim, um filme de observatórios sobre observatórios, em que o cinema vê a terra, a câmara do Dr. Reeves vê o quotidiano à sua porta (mas pode ver mais do que isso), e o tribunal do firmamento “vê” e analisa, do alto da escadaria celeste, as razões que determinam uma vida ou uma morte. O amor, como sempre, está aqui para baralhar qualquer lógica, e trazer a esta imagem do cosmos uma poesia encerrada nas estrelas. Por essa poesia, por essa magia, que liga o imenso universo a dois corpos terrestres, A Matter of Life and Death era o filme predileto de Michael Powell. E é também por isso que me deslumbro tanto a olhar para este azul em estado de ebulição, prestes a vaporizar-se numa das mais belas histórias de amor.
Inês Lourenço
O filme é Melancholia (Melancolia, 2011), o realizador Lars von Trier, o gosto pelo filme é pouco (aliás, muito pouco) e o ingrediente para a sopa é o plano em cima, uma espécie de caldo Knorr fílmico – ultra pasteurizado, altamente processado e cheio de gorduras saturadas (mas mesmo sabendo que faz mal e que é horrível para a saúde não posso deixar de admitir que a baba me escorre dos cantos da boca). No seu modo niilista pronto-a-vestir von Trier inventa um fim do mundo que é também um fim da humanidade, assim todos morrem e não há volta a dar, a Lua vai cair contra a Terra. Ponto final. Por entre os tiques do Dogma que por vezes se fazem sentir, nos entremeios dos ralentis hiper-estilizados, surge este plano em que o menino lança um laço em redor da lua, como se a pudesse capturar qual cowboy. Momento simbólico do cataclismo que está para vir, mas também referência cinéfila pervertida. “I’ll throw a lasso around it and pull it down. Hey. I’ll give you the moon, Mary”. It’s a Wonderful Life (Do Céu Caiu Uma Estrela, 1946), de todos os filmes, é aqui convocado como prenúncio de morte – não é totalmente inesperado, Lar von Trier sempre tirou prazer no destruir da alegria e da inocência e convenhamos que este Capra estava mesmo a pedi-las…
Ricardo Vieira Lisboa