A história de amor era bela e aconchegante: o duo de realizadores Neveldine/Taylor mostravam-se ao mundo numa “primeira vez” raivosa e amoral de nome Crank (Crank – Veneno no Sangue, 2006), filme onde o aceleracionismo e o exagero encontram uma das suas manifestações mais puras. Através do dispositivo de um criminoso que para evitar morrer tem que estimular constantemente a produção de adrenalina, sexo, drogas, crimes e demais actividades mais ou menos legais são legitimadas para que protagonista e filme não caiam desmaiados – e nesse processo de legitimação tudo é aceitavel, ao ponto de Alexander Larman do The Guardian se perguntar se Crank: High Voltage (Crank 2: Alta Voltagem, 2009), a sequela, não seria o mais ofensivo filme da história do cinema. Mas a bela história de amor estava prestes a terminar; o malvado estúdio iria colocar as suas patas sobre a frescura criminosa dos meninos e amansá-los no sentido do público alargado e do cinema de acção familiar (lá se iam os verdadeiros pós-verhoevianos). Realizaram um morno e esquemático Ghost Rider: Spirit of Vengeance (Ghost Rider: Espírito de Vingança, 2011) e iniciaram o divórcio criativo que desemboca este ano com dois títulos: The Vatican Tapes (The Vatican Tapes: O Regresso do Mal, 2015) de Mark Neveldine e, daqui a uns meses, Twisted Metal de Brian Taylor. Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades.
Vendo The Vatican Tapes o que se percebe sem grande esforço é que a lógica de meio e mensagem como uma e a mesma coisa permanece intacta: a saber, a fúria acelerada de personagem e do filme em Crank eram lados da mesma moeda, a estratégia narrativa era auto-reflexiva no modo como explicava e comentava os procedimentos dos realizadores, a sua estética e a estrutura do próprio filme – eles também não podiam parar. Em The Vatican Tapes as (auto-)reflexões repetem-se e o dispositivo do filme de terror found footage manifesta de certo modo a ideia de Neveldine de um terror da evidência: um modo de pensar o medo onde a sua simples enunciação visual basta – viste e não poderás deixar de ter visto.
Nesse sentido The Vatican Tapes diferencia-se daquilo que é o típico found footage de terror por recusar (ou falhar redondamente?) a construção da tensão entre aquilo que acontece on tape e aquilo que fica de fora (força terrífica de The Blair Whitch Project e de todos os seus sucedâneos – aliás, força terrífica de todos os grandes filmes de género). Como se mostrar o horror bastasse para que este se evidencie no olhar que quem o vê; uma confiança na pureza do cinema, uma perspectiva primitiva do filme que crê no efeito de realidade como factor único da construção do medo: ou de outro modo, um cinema vidrado na estética youtube que mimetiza sem o sabem o cinema do final do século XIX. Digo isto porque todo o terceiro acto do filme de Neveldine parece esquecer propositadamente tudo aquilo que é a construção do suspense, limitando-se a uma retrato mais ou menos intenso do surgimento do anti-cristo, como que refazendo em inverso o Vie et Passion de N.S Jésus-Christ (1907) de Ferdinand Zecca. Um cinema de atracções que torna evidente o dispositivo, como se num espectáculo de magia o ilusionista a cada truque desfizesse simultaneamente o mistério que acabara de engendrar – podia ser uma instalação de vídeo-arte mas é cinema de terror de estúdio…
Neveldine filma a morte a acontecer, tanto da sua personagem como do seu cinema
Há a este respeito três imagens no filme que funcionam como súmula simbólica desta forma de pensar o cinema: (1) no hospital um polícia dirige-se à menina possuída pelo demo e pergunta-lhe o que a levara a tentar afogar um recém nascido, ao que ela se limita a responder apontando a janela do quarto em cujo parapeito pousa um corvo de aspecto maligno. O homem observa o animal e entrando num transe dirige-se a outra sala de onde acaba por sair com duas lâmpadas, uma em cada mão. De repente crava-as nos olhos para espanto e terror dos presentes. É este um momento paradigmático do terror da evidência; o simples facto de olhar o mal na sua forma alada leva o polícia a não mais querer ver cegando-se, nem mais nem menos, com a luz – como se a luz pudesse iluminar a escuridão que os seus olhos não mais poderão deixar de ter visto. Outro momento é semelhante. (2) Num motim no hospício provocado pela voz sussurrada do demónio os pacientes entram numa fúria violenta matando-se uns aos outros e também aos auxiliares e seguranças que os tentam salvar de si próprios. Por entre os amotinados um deles sobe a um banco e enforca-se, nem mais nem menos, com o fio da câmara de segurança que os observava e que acabará por se juntar o referido arquivo do Vaticano. De novo um suicídio feito através de um instrumento que clareia o real, a câmara de vigilância – sorria, está a ser enforcado. E por fim, (3) a imagem que dá substância a este texto, uns olhos que se abrem invertidos marcando o momento em que a nossa protagonista vira filha da besta e portanto falsa pregadora e falsa milagreira. Assim, ao contrário dos demais, é a besta que recusa a evidência do real olhando-o literalmente de forma invertida e o que The Vatican Tapes crê é que o espectador se horrorizará por descobrir que existe neste mundo quem o olhe como ele “não é” ou como ele “não se quer mostrar”, avisando-nos que eles andem aí.
Curioso (ou simples evidência da evolução da relação histórica com o cinema e a sua arqueologia) é que se multipliquem os filmes de terror que vivem paredes meias com a figura narrativa e estrutural do arquivo fílmico. Desde o dispositivo da colecção na série V/H/S, ao universo dos filmes snuf perdidos/(re)encontrados – penso em Tesis ou Cigarrete Burns -, passando pelos arquivos jornalísticos que motivam a série Rec ou o último filme de Ti West. Fazendo ficção daquilo que, por exemplo, Bill Morrison faz literalmente ao evocar (entre o fetiche e a ode fúnebre – não serão, no seu caso, a mesma coisa?) a morte a acontecer na degradação da película de nitrato que monta e remonta a partir do arquivo. Neveldine também filma a morte a acontecer, tanto da sua personagem como do seu cinema. São sempre as (auto-)reflexões: meio e mensagem como um só (ainda que a mensagem vá em branco).