O texto que se segue, de Inês Lourenço, inaugura uma nova rubrica no À pala de Walsh dedicada a filmes que, por uma qualquer razão, não chegaram ou tardam em chegar às salas nacionais. Sem Sala é o nome da mesma.
Já deu para perceber que Jean-Marc Vallée aprecia que as suas personagens conduzam o filme, concentrem na própria força de vontade a garantia dos progressos, enfim, que sejam a engrenagem exclusiva para qualquer redenção final. Depois do oscarizado Matthew McConaughey, por Dallas Buyers Club (O Clube de Dallas, 2013), parece que Reese Witherspoon também trabalhou para se habilitar ao galardão, partindo para a corrida dos Óscares de 2015 com uma vantagem muito próxima: um estado quase optimizado de representação. Não emagreceu 19 quilos (como McConaughey), mas sujou a cara e despojou-se da imagem elegante, meio abonecada que a conotou no início da carreira; contudo, nada disso teria interesse se, em boa verdade, não sentíssemos a personagem. Wild (Livre, 2014) – é caso para dizer – deixa assim a milhas a Legally Blonde (penso que não foi Walk the Line que a resgatou completamente), tal como Rachel Getting Married (O Casamento de Rachel, 2008) deixou a milhas os Diários da Princesa de Anne Hathaway. No entanto, permanece a dúvida: pode uma personagem carregar toda a reputação de um filme? A mochila parece pesada. Parece.
Curiosamente, a minha cena preferida de Wild não acontece durante o trilho, mas no seu prólogo, quando Cheryl (Reese Whiterspoon) se encontra num motel, antes de iniciar a maior jornada da sua vida. De mochila pronta e atulhada – com muito critério de prevenção das necessidades –, ela desvela-se numa ginástica extenuante, até conseguir colocar sobre as costas a titânica estrutura azul, que nos vamos habituar a ver como algo mais do que um objecto físico: todo o filme se mede no volume daquela mochila. E assim como Cheryl demorou, nesta cena exemplar, a encontrar a posição ideal para suportar sobre o seu corpo miudinho um peso monstro, também o filme de Jean-Marc Vallée demora a encontrar o tom ideal para um percurso interior. A diferença é que Whiterspoon-Cheryl chega lá, mas o filme talvez não.
Estamos diante de uma história verdadeira. Após a morte da mãe, na meia-idade, e com uma infância marcada pela violência do pai, Cheryl Strayed decide fazer o Pacific Crest Trail (PCT) como desafio espiritual e experiência introspectiva de liberdade, que tem muito a ver com a emancipação dos medos. A sua história está contada num livro homónimo – Wild: From Lost to Found on the Pacific Crest Trail – que é assim adaptado ao cinema, sem deixar, contudo, as imagens falarem por si: permanece texto em demasia, biografia a mais. É certo que a vontade do realizador canadiano se prendeu, e muito assumidamente, no objectivo de homenagear a sua própria mãe, falecida há poucos anos, com uma clara incursão sentimental na figura de Laura Dern, actriz que traz sempre um pouco de amor no sorriso carinhoso e simples. Mas é em virtude destes desvios sentimentais, demasiado biográficos, que o filme fica a dever cinema ao cinema. Onde poderíamos ter alguns momentos de respiração, silêncio, e até de mistério em relação aos pensamentos da protagonista, são-nos impostas cenas de uma vida anterior, em jeito de videoclip, numa montagem de flashbacks que se deixa entusiasma com a fatalidade de relatar memórias; uma fugacidade de lembranças que não permite acompanhar devidamente o barulho dos passos da protagonista na gravilha do solo. Wild seria um filme muito melhor se rezasse, mesmo sem saber rezar – como Cheryl faz com o irmão, pela cura da mãe – e esvaziasse um pouco a mochila. Não literalmente (como chega a acontecer), mas de outra maneira.
Pese embora a farta bagagem, o filme tem algumas notas de triunfo sereno, e refiro-me, por exemplo, à raposa que pontualmente aparece a Cheryl, fazendo pensar, de forma inevitável, n’O Principezinho e na semelhança com a sua solidão planetária. Parece que, ao vermos o animal, plácido e silencioso, a olhar diretamente para ela, escutamos as palavras com que Saint-Exupéry animou a sua raposa para expressar sabedoria: «Il faut être très patient. Tu t’assoiras d’abord un peu loin de moi, comme ça, dans l’herbe. Je te regarderai du coin de l’œil et tu ne diras rien. Le langage est source de malentendus. Mais, chaque jour, tu pourras t’asseoir un peu plus près…»
Digamos que Wild é um filme aceitável, com interesse; já O Principezinho é um livro obrigatório.
Wild saiu directamente nas plataformas on demand e em DVD, um lançamento com a chancela da Fox.