Se foi necessário mais de meio século para alguns filmes de Ozu ou Satyajit Ray estrearem comercialmente em Portugal, não nos podemos dar por melindrados por um dos melhores documentários dos últimos largos anos só ter tido agora, seis anos depois de correr mundo, a sua chegada a terras entre Vila Nova de Cerveira e Vila Real de Santo António. Felizmente, nestes malditos tempos de dessacralização da sala do cinema, há muito que Nostalgia de la luz (Nostalgia da Luz, 2010) estava disponível (e em muito boa qualidade, sobretudo para um ecrã de 48 polegadas) para quem o quisesse ver. Até nos esquecemos que estamos a ver algo a caminho de um postal.
Tarefa difícil, mas sonhemos: ir para uma sessão de Nostalgia de la luz sem fazer a mais pequena e remota ideia do que seja. Pensar que Patricio Guzmán é o extremo esquerdo do Colo-Colo, ignorar que haja sequer cinema chileno nos escaparates internacionais, encolher os ombros perante noções como “cinema documental”, não ler texto algum sobre o filme, começando já por este. Por isso, se chegou até aqui, vá-se embora. Vá fumar cahimbo, dar festinhas ao gato, discutir o Orçamento de Estado e os malandros de Bruxelas ou, caso viva perto da praia, vá ver o mar. A experiência será mais gratificante, pois imprevisíveis e surpreendentes são os caminhos por onde nos guia o realizador chileno, começando a nossa jornada por um ponto que rapidamente nos leva a outro que só gradualmente iremos apreender como complementares.
É um elo de ligações interdisciplinares onde todos olham para trás, seja para a luz vinda de estrelas que há muito deixaram de existir, seja para desenhos de milénios nas rochas, seja para cavar terreno à procura de amigos há muito desaparecidos.
Nostalgia de la luz inicia-se como um documentário pedagógico e informativo sobre as funções da Astronomia para a pouco e pouco ir mudando o foco para outras áreas e tarefas em que o denominador comum é, pura simplesmente, o Passado; compreendê-lo, estudá-lo, recolher as suas memórias, procurar as origens da mais diversificada espécie. Da Astronomia para a Arqueologia, e da Arquitectura para um deserto onde mulheres, após mais de vinte anos, continuam a procurar os restos mortais dos familiares mortos e enterrados pelo criminoso regime de Pinochet. É um elo de ligações interdisciplinares onde todos olham para trás, seja para a luz vinda de estrelas que há muito deixaram de existir, seja para desenhos de milénios nas rochas, seja para cavar terreno à procura de amigos há muito desaparecidos. Preservar a memória. Um dos exemplos mais elucidativos do resguardar da memória encontra-se naquele arquitecto que, anos e anos depois de ter sido libertado de um campo de concentração do regime, conseguiu desenhar de cor os edifícios e os rostos dos companheiros de cela do dito estabelecimento. É assim, o cérebro.
Guzmán, de forma fluída, vai juntando todos estes nós narrativos através de depoimentos das “várias partes interessadas”, chegando a um momento em que cada uma delas envereda pelos caminhos da outra, como aquele comovente de uma das mulheres que anda há anos à procura do marido no Deserto do Atacama, sonhando com a possibilidade de haver uma sonda telescópica que percorra os caminhos e assim indique onde se encontram os corpos. Mas, para a memória, a nossa, ficarão, sobretudo, os segundos e minutos em que Guzmán dá uma primazia ao espectáculo visual: fotografias, imensas, dos corpos celestes, a desolação marciana (como diz o próprio realizador) do Atacama, um cemitério isolado na vastidão do deserto (mais parecendo provir da mente de um Leone), um campo de concentração em ruínas, os movimentos detalhados e circulares de um telescópio. Imagens e planos a que Patricio regressa amiúde, não como meras muletas, mas como incessante recordação de um tempo que já não existe.
E, depois, há a própria narração do realizador, talvez a verdadeira nostalgia do título do filme. Há uma melancolia proustiana nas suas palavras, no modo como o seu próprio passado (a infância) é idealizado como uma época de inocência, onde “nada acontecia” (sic), portanto, onde tudo acontecia. Os berlindes da sua criancice são as suas madalenas, filmados em plano de pormenor como se de planetas se tratassem. Daqui a muitos anos, Nostalgia de la luz servirá, no mínimo, como preservação arqueológica de algo que se chamava “berlinde”. A última vez que vi alguém fazer uma cova para lá colocar um deve ter sido por volta de 1996.
Para além do seu carácter local (a recusa em esquecer o que se passou entre 1973 e 1990), Nostalgia de la luz é um superlativa demonstração de uma lei universal: só existe o Passado, nada mais. Agora esperemos mais dez anos para um filme do Johnnie To ou do Lisandro Alonso estrear.