Em 2009, o uruguaio Fede Alvarez chamou a atenção no youtube com este micro Independence Day sobre as ruas de Montevideo. Com um bilhete postal de tão elevado grau de destruição era mais do que previsível que qualquer experiência nos Estados Unidos viesse a ser na área da ficção científica. Em vez disso fizeram-lhe uma proposta que não pôde recusar, um remake do “sagrado” The Evil Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1981), apadrinhado pelos “santos” criadores Sam Raimi e Bruce Campbell eles próprios. Tal como aconteceu com o salto do francês Alexandre Aja, que veio a fazer um remake do clássico de Wes Craven, The Hill Have Eyes (Os Olhos da Montanha, 1977), a estratégia era a mesma: pegar num filme fetiche do jovem e perceber como podia ele retocá-lo, sem perder a narrativa de base que o sustinha. Quer no caso de Aja, quer no de Alvarez, o resultado foi um endurecimento do material em mãos, embora neste último a ligeira ironia do original se tivesse transformado num verdadeiro baile de sangue e facas eléctricas, como se alguém tivesse deixado à solta um “Minnelli maléfico”.
E “deixar à solta” é certamente a expressão quando entramos neste Don’t Breathe (Nem Respires, 2016). Desde logo, porque apesar de manter a produção de Raimi, Alvarez parte pela primeira vez de uma história escrita por si: um grupo de três adolescentes que assalta casas e que resolve meter-se na errada, pertencente a um veterano de guerra cego, que vive só, após ter perdido a sua filha num acidente. “Deixar à solta” ainda pois esse parece ser o tema da sua obra: não só em Evil Dead se solta um demónio, do qual os seus personagens têm de se libertar, como agora é de uma casa, que parecia esconder um sinónimo de libertação (uma grande quantia de dinheiro que ajudará a sair do “sufoco” de Detroit para o surf da California), mas da qual afinal há que escapar para o ar respirável da rua.
É possível ver Don’t Breathe como uma combate pela sobrevivência em que as armas se secundarizam aos sentidos.
E essa “libertação” parece ser progressiva do filme de Raimi para este, pois do primeiro para o segundo filme certos dilemas ainda se mantêm. Jane Levy, a protagonista nos seus dois filmes, carrega então esse karma da libertação. Em Evil Dead é puxada e retida pelos ramos na floresta, antes de ser penetrada por uma “pila de espinhos”, vulgo, entidade maléfica. “You have to get me outta of here”, diz no interior da cabana ao irmão antes da possessão ter o seu efeito. Agora em Don’t Breathe, Levy e seus companheiros de golpe têm de escapar de uma casa, de janelas entaipadas, portas encerradas, cadeados e alarmes, que parece puxar sempre para dentro. E nesse “útero” (a metáfora sexual mantém uma coerência também na obra de Alvarez) onde se vai vendo cada vez menos, importa sobretudo o audição, o tacto e o olfacto.
Ainda haveria que falar da importância das caves escuras no cinema de Alvarez, no mundo de raparigas que querem sair de casas, um pouco sem saberem que tudo o que abriga esconde e tudo o que protege prende. Mas concentro-me nesse pairar no qual a câmara parece dançar de pantufas, apresentando na primeira entrada na casa do senhor, todos os objectos a serem utilizados. Não interessa esconder as regras do jogo pois tudo se jogará às escuras. Numa espécie de inversão da premissa do filme de Terence Young Wait Until Dark (Os Olhos da Noite, 1967), no qual Audrey Hepburn era uma jovem cega aterrorizada pela invasão em sua casa de um trio de assaltantes, aqui, a vítima de assalto, que contém em si qualquer coisa da rabugice traumática de Clint Eastwood em Grand Torino (2008) e da violência de um Michael Myers na reforma, é afinal o predador.
Nesta inversão podíamos ficar com o conteúdo latente de todos os filmes de terror, aqui a réstia xenófoba que faz ter medo dos velhos, dos cegos e dos feios. Mas rapidamente é possível ver Don’t Breathe como uma combate pela sobrevivência em que as armas se secundarizam aos sentidos. Pupilas dilatadas no breu, o ranger de um pé no soalho, uma respiração ofegante sempre foi tudo que foi preciso para um bom filme de série B de terror. É bem este o caso.
Don’t Breath será o arranque da 10ª Edição do Motelx, hoje, dia 6 de Setembro, às 21h30.