Noite, luzes de faróis, uma mulher em contraluz, maquilhagem em excesso, borrada, um homem fora de campo, ela diz que “o mundo só é real quando um homem chora” e depois que “todos os homens com os olhos demasiado tristes são poetas”, putas e poetas ouve-se entretanto e a seguir “conheci um Vicente. Era louco, morreu cedo.” No primeiro plano de Al Berto (2017) Vicente Alves do Ó diz ao que vem (ou melhor, o que procura) e di-lo sem pudores: cinema operático a tender para o lírico com uns pózinhos de decadência, ode às one-liners (que vão do brega das anteriores à inteligência doutras, como “a poesia não tem dress code” ou “dormir nu é muito bonito, mas no cinema”), desejo de melodrama maior que a vida (anti realismo social e tudo o que cheire a etnografia e cinema de bairro social) e, por mais inesperado que possa parecer, objecto auto-biográfico confessional.
Começo agora pelo final. O Vicente que aquela mulher descreve é o pai do realizador e o pequeno Vicente que vamos conhecer a certa altura, mais para o final do filme, é o próprio Alves do Ó. Descobre-se isto pela repetição dos apelidos, o afilhado da mulher da cena de abertura é João Maria do Ó (namorado de Al Berto no período que o filme retrata), cuja biografia inspira o argumento do filme. Mas para quem conhece o trabalho de argumentista do realizador reconhecerá naquela mulher a Laura de Kiss Me (2004) que Cunha Telles realizou. E mais do que apenas a coincidência do personagem há a coincidência da trama que é muito semelhante entre os dois filmes: a procura pela liberdade de expressão da sexualidade no Portugal conservador dos anos 1950/1970 (e sempre em vilas piscatórias, ora Tavira, ora agora Sines). E do mesmo modo que Marisa Cruz se fazia Marilyn Monroe, aqui ouvem-se várias personagens femininas compararem-se a Anna Karina, Romy Schneider, Brigitte Bardot ou Raquel Welch. E no seguimento do sucesso de Florbela (2012) o realizador regressa ao biopic de época de um poeta atormentado pelos tempos e pela sua conturbada vida pessoal. Portanto Alves do Ó está em casa, no seu universo cinematográfico (sempre a piscar o olho a Visconti ou a Fellini) – ao contrário do seu filme anterior, O Amor é Lindo … Porque Sim! (2016).
Por mais referência cinéfilas e por mais citações de poesia tudo permanece insipidamente televisivo.
E de facto o melhor de Al Berto passa pela forma como descreve o período do PREC de um ponto de vista nada engajado, pelo contrário até. Deixando no pano de fundo a questão dos retornados, mas trazendo para muito grande plano as expropriações do Alentejo – certa cena no desfecho do filme parece mesmo ser o espaço ao contraditório, 40 anos depois, a Torre Bela (1975) de Thomas Harlan. E no retrato desse Verão quente, momento em que Al Berto regressa a Portugal depois do “exílio” belga, Alves do Ó mostra como a esperança de uma liberdade também sexual cedo foi castrada pela própria revolução, já que poucos dias depois do 25 de Abril se ouvia o coronel Galvão de Melo avisar que “a revolução não foi feita para putas nem paneleiros”. A revolução poderá ter sido uma alegria, mas não fez avançar décadas a mentalidade de um país tacanho, e esse é a recordação histórica e política que o realizador procura firmar – outro direito ao contraditório depois do turismo revolucionário de Les grandes ondes (à l’ouest) (As Ondas de Abril, 2013) de Lionel Baier.
O problema de Al Berto é no fundo o problema do cinema de Alves do Ó: por mais referência cinéfilas (e há algumas mais obscuras, como os desenhos à Cocteau na paredes e nos corpos), por mais citações de Ruy Belo e Rimbaud, tudo permanece insipidamente televisivo. O crítico e ensaísta Adrian Martin afirmou que “inside every narrative film is a non-narrative film struggling to get out“, diante de Al Berto apetece dizer que dentro de todo o filme de Vicente Alves do Ó existe um anúncio-da-Super-Bock-cruzado-com-o-Conta-me Como Foi à espera de sair. Os ralentis, os confetes, os beijos em silhueta, as festas coloridas, o cavalo branco, os flashbacks sonoros, a reconstituição de época económica, a diversidade como imagem de marca, a alegria como forma de vida… só faltam mesmo as mines.