Uma mulher torturada e uma perna arrancada, uma elegia a duas avós numa Manila alagada: a obra de Brillante Mendoza chegava-nos como um turbilhão, com ecos da imprensa, primeiro o desconforto de Cannes com Kinatay(2009), que ainda assim rendeu ao cineasta o prémio de melhor realizador atribuído por um júri presidido por Isabelle Huppert, depois a aclamação em Veneza, com Lola (2009) e o Leão de Ouro. Estávamos em 2009, os filmes só chegariam, o primeiro em DVD, o segundo em sala, alguns meses depois.

O genérico passa como se fosse uma película gasta, o que antecipa que o assunto será o Cinema, curioso portal para um realizador que fez da publicidade a sua escola: o primeiro encontro com o Cinema do filipino dá-se, então, com a edição portuguesa em DVD de Serbis (Serviço,2008) – Miss Nayda (Jaclyn Jose) e Lando (Julio Diaz), presenças assíduas na filmografia de Mendoza, são o casal que gere um cinema decadente para adultos, com a tutela da matriarca, Madame Flor, que luta pela consumação do divórcio com o marido, a quem acusa de adultério.
Um cinema-edifício gigante com escadas que lhe definem um perímetro, num sobe e desce que os personagens reiteram, a estabelecer ligações entre vários pisos e salas onde se escondem os diversos membros da família, que trabalham todos no cinema. O ecrã passa imagens com conteúdo sexual, para adultos, a decadência, do espaço físico da sala de cinema, tem a companhia dos avisos: “Proibido Urinar”, “Proibido fazer sexo”. À excepção de uma pequena cena (a meio) e da cena final, Serviço desenvolve-se por inteiro dentro do edifício, mas há uma presença da rua, visual e sonora (das pessoas, do trânsito), que minam as fronteiras entre o interior e o exterior. Abunda a câmara à mão, com enquadramentos incertos e transições abruptas entre planos iluminados e escuros, entre a sala escura e os corredores cheios de luz natural, sendo difícil estabelecer se é dia ou noite, porque há sessões a toda a hora. Há, então, uma notável circulação de histórias e de ambientes, apesar de estarmos dentro do edifício, com o exterior a mostrar-se, através de diálogos fortuitos, de procissões e de violência.

Uma rapariga jovem, nua e saída do banho, penteia-se enquanto olha para um espelho de corpo inteiro e soletra “i love you”, ao fundo um cartaz de uma loura platinada; a câmara percorre o corpo da rapariga, auxiliada pela luz exterior, Mendoza não receia carimbos de voyeurista e fará da transgressão um dos propósitos do seu Cinema: com o sexo omnipresente, na sala de cinema, na cabine de projecção, os corredores são locais de engate, onde se procura e se oferece “o serviço”, através dos olhos de uma criança que percorre os corredores de triciclo, com o processo do cinema em contracampo, a rebobinagem e a colocação da película nas roldanas do projector, até à explosão da luz que encontra o som dos gemidos na sala.
A horizontalidade da câmara de Mendoza a juntar os perfis das mulheres, já não enquadra uma transgressão moral, é apenas astúcia num mundo do salve-se quem puder.
Um cinema dominado pela amplitude das mulheres, das mães, os homens e os rapazes só executam, é Madame Flor e Miss Nayda que lideram e gerem o quotidiano das várias gerações que dependem do negócio; os homens são representados como inúteis e falhados, os jovens engravidam as raparigas, Lando é incapaz de fazer um troco, eles empurram as mulheres para uma decepção com a vida, que Mendoza evidencia ao não juntar num único plano Nayda e Lando.
Nas prateleiras misturam-se ícones religiosos com retratos de família e de cerimónias, enquanto Madame Flor é impedida pelos tribunais do direito ao divórcio, um cepticismo na justiça e no estado que, do outro lado da balança, coloca a crença no cristianismo herdado da ocupação espanhola, binómio que atravessará os filmes seguintes. Na última cena, o cinema sai à rua, possibilidade de fuga de um dos jovens, com o plano a enquadrar finalmente o edifício pelo exterior, onde identificamos Family como a designação do cinema.

As ruas da periferia de Manila em reboliço, uma desordem de pessoas, de veículos vários, uma linguagem incerta e próxima do documentário, que atravessa construções abarracadas e privilegia espaços-fronteira. Kinatay abre diurno, luminoso, dois jovens que deixam o filho (de poucos meses) com uma tia para se casarem, ele frequenta uma escola de polícias, felicidade e camaradagem, portanto. Mas o salário de Peping é curto e precisa de participar de “esquemas” de cobranças, o fim de tarde traz a incerteza entre autoridade e crime, a mesma indefinição entre exteriores e interiores.
Peping e o espectador são enfiados numa carrinha com vários homens que atravessará a noite de clubes e prostituição, com pequenas narrativas que interrompem o eixo principal, que nos levam a uma rapariga de cabaret, Madonna, que é amordaçada e levada para o interior do veículo de vidros fumados. Mendoza preambula um filme de terror, Peping é a testemunha, o inocente, num espaço interior escurecido e numa progressiva tensão animada por pequenos apontamentos musicais e pelos gritos sussurrados da mulher. A viagem para fora da cidade é longa e tem como obstáculo o tráfego denso e a omnipresença da polícia, em frequentes detenções, que Mendoza mistura com episódios de crime e de sirenes de ambulância, néons de outdoors onde se lê “Deus é o caminho, a verdade e a vida”, traçando uma equivalência caótica de todos estes elementos.
Na aproximação ao pesadelo, Peping ainda palmilhará à procura de ovos de pata, iguaria muito peculiar (um ovo de pato fecundado, em que o embrião já está quase completamente formado) e que Mendoza insiste em colocar em muitos dos seus filmes. Entrados na casa, Mendoza mostra a gramática: meios de rodagem deliberadamente pobres, câmara ao ombro e pouca iluminação, o que resulta muitas vezes numa imagem granulada e característica do vídeo, a prenunciar a rudeza das acções daquele conjunto de homens. Mais uma vez, Mendoza não receia os ataques de voyeurismo e de mau gosto, e por entre a tortura, a mulher é forçada a chupar o sexo de um dos homens, depois será assassinada e decepada com uma faca de talhante, como uma boneca de trapos e colocada às partes na cama. Depois da matança, o militar, que liderara a operação, toma um banho e veste uma camisa branca. Enquanto os restantes homens participam da violência como uma banalidade do seu quotidiano, Peping revela espanto e dir-se-ia que também ele é violentado até conseguir progressivamente sair do estatuto de testemunha: se na parte da frente da sua farda lemos “Escola de Justiça Criminal”, as costas revelam que “uma vez perdida a integridade é para sempre”.

O regresso a Manila é feito no clarear da madrugada, com peças de um corpo lançado pelo caminho e um pequeno-almoço nutritivo, com sopa e carne. O militar entrega umas notas a Peping: “compra leite para o teu bebé”. Um mundo sem escapatória, de uma crueldade extrema, na total desesperança de Kinatay, que talvez se explique pela ausência das figuras femininas, das mães, que Mendoza usa para apontar um futuro.
No fim da primeira sequência de Lola, a avó e o neto tentam acender uma vela, com um guarda-chuva como uma ténue barreira na defesa da fúria do vento e da chuva; neste local, outro neto de Lola Sepa fora esfaqueado no dia anterior. Antes, eles já tinham passado por uma igreja, o quotidiano junta o delito e a crença. Algumas cenas depois, surgirá a segunda lola – Puring, a avó de Mateo – o rapaz que terá assassinado o outro junto à ponte – para lhe trazer o almoço à prisão, onde ele partilha uma cela com dezenas de homens. Na perseverança que associamos às mulheres de Mendoza, o peso cai todo em cima das avós, apesar da idade avançada, são elas quem cuidam de tudo, da organização e dos dinheiros dos negócios familiares, com homens acamados pelo meio, e depois da organização do funeral e da defesa no tribunal dos netos. Se as chuvas contínuas são uma metáfora para expressar as dificuldades das avós, é notória a falta de crença na sociedade e nas instituições, onde se inclui a polícia e os tribunais, até pelo uso da língua inglesa – resultado das trocas entre a coroa espanhola e o início do império norte-americano no virar do século XX – que as avós não compreendem. A única distracção dos jovens é a televisão e os concursos (um deles intitula-se “crédito ou débito”), com as lolas a procurarem dar excepcionalidade às refeições, lugar esperançoso de partilha, satisfação e optimismo.

Depois de uma efémera alteração da paisagem através de uma viagem de comboio de uma das lolas para fora de Manila (sim, ela traz ovos de pata no cesto), Mendoza volta aos cenários realistas, exteriores sujos e alagados em trânsito, interiores inacabados que convivem com pátios, uma misturas de locais precários que a produção transcende, ao adicionar elementos – luz e chuva –, um hiper-realismo com uma câmara solta, mas mais precisa que em filmes anteriores, reiterando o interesse nos planos que juntam interior e exterior, ora privilegiando uns, ora outros. Os territórios fronteira dialogam, então, com os comportamentos fronteira, o ilícito e o religioso, que culmina no cortejo fúnebre: uma avenida de construções abarracadas e cercadas por água, um desfile de pequenos barcos ao sabor dos elementos e em direcção a uma igreja; Mendoza junta música, a cena amplifica-se, mas rapidamente se extingue, na recusa do épico, do folclore e da comoção, como se o cineasta cumprisse regras muitos particulares, uma derivação das durações impostas pela publicidade e no sublinhar que lhe interessa muito mais a crueza do que a grandiloquência.
À mesa, o encontro das duas lolas começa a fechar o filme, elas falam das vidas, das doenças e das mortes dos maridos, um de diabetes e o outro de teimosia, pois abusava da comida salgada, sendo doente dos rins: “os homens são uma carga de trabalho”. Lola Puring oferece 50.000 pesos para Lola Sepa retirar a queixa e o rapaz acabará libertado com a anuência do tribunal. Algumas cenas antes tínhamos apanhado a avó de Mateo a aldrabar deliberadamente um cliente no troco, e se a cena nos envolve pelo humanismo da circulação de histórias habitadas por estas senhoras, a horizontalidade da câmara de Mendoza a juntar os perfis das mulheres, já não enquadra uma transgressão moral, é apenas astúcia num mundo do salve-se quem puder.
A vida continua e a crónica também, no próximo mês.
