Il sogno mio d’amore (2018) começa com uma aula de condução de orquestra. Uma rapariga olha para fora de campo, num plano americano que dá entender que esta se encontra sozinha, apenas acompanhada pelo professor. Ele dá voz (porque não o vemos) aos vários instrumentos que lá não estão, interpretando, com a boca, as pequenas variações de um largo conjunto de músicos ausentes. Ela olha nos olhos esses fantasmas (ou pelo menos assim trabalha a montagem que a nossa imaginação inventa) e avisa-os da sua entrada, adverte-os do seu ritmo descompassado, fortalece-lhe a pujança da interpretação. Há então um corte. E agora sim, a jovem maestrina dirige uma orquestra de carne e osso. Mas, de novo, o plano é apertado no seu olhar e nos olhares que lança sobre os que a rodeiam, expectantes das suas indicações. Este início de filme (que é seguido por dois outros momentos de aula – de canto lírico, primeiro masculino, depois feminino – onde de novo o fora de campo esconde afinal lúdicos mistérios) traduz explicitamente aquilo que Nathalie Mansoux e Miguel Moraes Cabral trabalharão ao longo das quase duas horas do filme, a saber: o fora de campo e a recusa (ou cedência provocadora) do contra-campo.
Posto doutro modo, a sua câmara observa pausadamente a acção e por vezes esta expande-se para fora da sua visão (ou simplesmente a dimensão das salas não permite outro modo de filmar). O que fica de fora lá permanece, chegando apenas por via de sinais longínquos: um som que surge, uma sombra (ou uma luz) que se intromete, um pormenor do enquadramento que só se revela aos mais atentos (um cão numa mala, um smartphone entre as cordas de um piano, um retrato cortado pelo bigode). Se há um divertimento subtil na forma de filmar o quotidiano do Conservatório de Música em Lisboa, oferecendo-lhe uma série de pequenas graças delicadas, parece-me que o projecto da dupla de realizadores se enche de uma dimensão conceptual quando pensa esse fora de campo como reflexo da própria pedagogia.
Há uma complexa dinâmica de possessões, como se a voz dos professores, que parece possuir as cordas vocais dos alunos, fosse também ela possuída pelo espectro das suas performances passadas.
Um dos efeitos mais assombrosos (também no sentido de assombração) de Il sogno mio d’amore passa por aquilo que se poderá chamar as “vozes desencarnadas”. Isto é, os momentos nos quais, pela ausência do contra-campo, nos ficamos pelo rosto de um professor que acompanha um aluno que canta. Nessas alturas, o professor movimenta os lábios e comporta-se como se cantasse de facto, mas o som pertence unicamente ao estudante. Parece então haver uma espécie de dobragem ao vivo, como se a voz de um possuísse o outro ou, mais certamente, como se os movimentos vocais do professor conduzissem o aluno à perfeição. Isso tem exemplar resultado na apresentação pública do trabalho de semestre, onde assistimos às provas dos aprendizes através do olhar receoso dos seus professores, sentados entre os espectadores (acompanhando em sussurro a mais que estudada composição). Mas se isso toca, pela afectuosidade da relação que se estabelece entre professor e aluno, Mansoux e Moraes Cabral elevam o lirismo da possessão pela intrusão inesperada do arquivo. Através de um efeito de íris (qual cinema mudo), surge um registo vídeo da professora – vários anos mais nova – interpretando a peça que agora transmite. Essa sequência é profundamente fantasmagórica e complexifica as dinâmicas de possessão, como se a própria voz da professora, que parece possuir as cordas vocais da aluna, fosse também ela possuída pelo espectro das performances passadas.
No entanto, a sequência mais impressionante do filme (e que, pelo menos a mim, me tocou profundamente) é aquela da aula de violino, em que um professor estrangeiro vem à escola transmitir alguns dos seus conhecimentos [imagem em cima]. A aluna virtuosa que nos havia maravilhado antes, revela-se agora, perante as indicações desse instrutor, afinal bastante imperfeita. Só que a cada nova indicação, de postura, de controlo sobre o instrumento, de compreensão do sentido da musicalidade, a interpretação dela eleva-se. Ou seja, não há perfeição nem genialidade, há trabalho. E até a emotividade de um som é algo que surge de uma técnica, é algo que se aprende – e o trabalho do professor é o de abrir, no interprete, a porta da emotividade, como um medium se abre aos espíritos que o circundam. Não será pois mero acaso que, na imagem acima, a correcção do posicionamento da cabeça face ao violino parece, afinal, um gesto de exorcismo (invertido – em vez de se dizer sai deste corpo, espírito!, exige-se espírito, entra neste corpo!).
Esta ideia da eterna manutenção da técnica parece, afinal, encontrar metáfora perfeita no próprio edifício que acolhe o corpo escolar do Conservatório de Música e que está, como é sobejamente conhecido, em avançado estado de decrepitude. Os alunos são então como o edifício, nunca estão em perfeitas condições, necessitam sempre de arranjos (também no sentido musical). Daí a importância, meio burlesca, dada ao funcionário que trata da manutenção da escola. A perfeição é uma cristalização que impede a arte. Só que se os alunos são como o edifício, também o “edifício é como uma enorme caixa de ressonância” – como nos informam a certa altura. Ressonância musical, é certo, mas também ressonância do mundo exterior: do desinvestimento na cultura, da gentrificação do Bairro Alto, do Conservatório de Dança ali ao lado (onde imaginamos situações e problemas semelhantes), da burocracia do funcionalismo público, e tanto mais.
Se é verdade que Il sogno mio d’amore se distende, talvez em demasia, depois daquela explosão de encadeados fundidos no momento do protesto pelas condições do edifício, certo é também que o faz apenas com o intuito de vincar a equivalência (segundo o olhar humanista da dupla) entre alunos, professores e funcionários (da trama slapstick das chaves à senhora da limpeza que, ao limpar o piano, soa a Béla Bartók). Procura-se fechar um ciclo de aprendizagem, voltando às mesmas salas e aos mesmo professores, afirmando-se finalmente este filme como uma ode à continuidade do ofício de ensinar.