No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
Excerto do poema Fonte de Herberto Helder
O filme assim começa: ao alto e ao baixo, silencioso. Marta, deitada, respira. E a barriga materna, montanha de carne, já habitada por uma criança porvir, sobe e desce com a respiração. Só uns instantes depois ouvimos o violino numa interpretação de Les ballets du roi. No plano a seguir o pequeno habitante da montanha já veio conhecer as suas terras: o mundo. Os seus olhos abrem-se para o filme que se vai, também ele, lentamente, abrindo. E logo de seguida, é Marta que o olha, já no carro a caminho de casa. As mães, com escreve Herberto, “sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado vendo tudo, e queimando as imagens, alimentando as imagens”. Quando se é mãe, é-se curiosa. O que é isto? Isto é eu? Sim. Isto é eu mas em outro.

Sobem-se as escadas, abre-se a porta. Éramos dois e agora somos mais um. “Clarinha, benvinda.” Tudo parece estreito, estranho, pesado. O mais breve gemido é novo. Olhar a criação como uma pintura. Sem contra-campo. Lá fora o tempo parece comum, cá dentro irá sê-lo aos poucos. A noite é um filme montado entre pesadelos e choros que interrompem: um pai que abandona um viajante, uma água que submerge, um pai que ainda não dá por nada. O cinema de Susana Nobre instala-se assim, aos poucos, no real: a ficção parece ir apanhando o caudal das águas da vida e do quotidiano. Não se dá, de facto, por nada: os diálogos são escritos a partir das histórias reais das pessoas e por isso a ficção ergue-se sobre o documento dos dias, das conversas, das histórias e dos encontros.
Como num documentário, como numa ficção, que sabe que o cinema quando cuida preocupa-se em ouvir os outros. E este é um filme desse cuidar, um filme feito de pessoas que conversam e se escutam.
Secar o cabelo. Tirar o leite. Casar as meias. Assar o peixe. Dar de mamar. O pai, Pedro, tem de sair. O novo quotidiano vai chegando. Os avós vão chegando, os amigos vão chegando. A realizadora, ela mesma amiga e mãe, vem dar-se ao filme. Os planos vêm recebê-la: indistinção entre filmar e dar a filmar. Olhar para receber experiências; porque os pais sabem sempre como é, mas nunca sabem como é. Todos vêm contar o que aconteceu, como foi o seu único comum. O nascimento, como a experiência, é o acto da transmissão. Um dos amigos tem medo de perpetuar noutro ser os seus defeitos. Susana Nobre filmará os primeiros encontros com os avós paternos por “intermédio” de espelhos. Num dos planos mais bonitos a avó fala para o filho e nora que vemos através de um espelho. Logo de seguida, o avô faz rir Clarinha ao espelho. Mais do que as comuns preocupações com mudanças de casa e creches, o filme diz-nos que os avós, os pais e filhos são também esse reflexo radioso entre gerações. A história da continuidade e da transmissão que ora assombra, ora deslumbra.
Tempo Comum, como de resto já tínhamos também um pouco na curta ficcional Lisboa, Província (2011), tem uma atenção ao acto de cuidar. Cuidar não só de um doente, como na curta, ou do seu bebé, como aqui, mas também um cuidar da experiência da transmissão. Os planos de Susana Nobre – que frequentemente enquadrarão, pelo peito, pela cintura, os amigos que vêm visitar o casal e o bebé – cuidam de escutar as conversas. Como num documentário, como numa ficção, que sabe que o cinema quando cuida preocupa-se em ouvir os outros. E este é um filme desse cuidar, um filme feito de pessoas que conversam e se escutam. Que percebe bem que tudo o que vivemos já foi vivido por outros, mas de forma única. E, por isso, a casa verte-se lentamente em ninho dos primeiros crescimentos, concentração espacial e visual. E os planos recebem-nos nesse espaço concentrado da casa, a câmara como mais um membro da família, que aguarda essa visita neste novo momento das suas vidas.
Tudo já foi vivido por outros. Tempo Comum evolui a partir desse comum: senão, como não pensar no raccord mental entre o plano de Marta, chegada a casa, a secar a vagina, depois do trauma do parto e o senhor que, no Alentejo, nos conta que a ovelha ganhou bichos nas suas partes íntimas após dar à luz?; ou entre a história da amiga que teve uma cesariana inesperada e as irmãs com 11 filhos cada uma, em que uma morreu devido a falta de tratamento num dos nascimentos?; ou o livro de viagens que o Pedro e o pai fizeram e os chapéus trocados por bacalhau na mata africana, contado pelo tio de Marta? Viagens, lutas, traumas comuns, em espelho. Precisamente. Assim como o comum da passagem das roupinhas do bebé, da transformação da libido, das obras primas de ingenuidade e ternura que são os primeiros banhos, das lutas do “ainda agora fui lá eu ver do bebé”.
Progressivamente, a casa vai-se esvaziando de presenças. Apenas ficam os três: mãe, pai, bebé. O corredor vazio, as roupas a secar, um pequeno almoço calmo. Tempo para descansar a três. Aos poucos a bebé habitua-se aos sons da vizinhança. Já é uma presença… comum. O passarinho aprendeu a tirar a baga do loureiro, deixando dormir a menina, que, como canta a avó, está no sono primeiro.