O ano do centenário de Federico Fellini vai ficar marcado por uma amarga ironia: o nome do italiano cuja obra mais suscita uma ideia de “festa” não será celebrado – por tempo ainda indefinido – à volta da fogueira que é o grande ecrã. Esse que simboliza, também pelo ritual da sala escura, a magia que o mestre perseguiu sem descanso, por contraste com o que, perto do final da vida, considerou ser a era desmazelada da televisão.
Do espectáculo do sonho que lhe saía pelos poros à linguagem visual que criou com a ponta do lápis, Fellini foi um monstro inventivo, um “mentiroso” convicto, sempre à procura de memórias e sensações na sua cabeça que pudesse mascarar diante da câmara. Foi isso que fez em quase todos os filmes, os quais libertam sinais de tempo diferentes, íntima crónica social, tonalidades de nostalgia variada, e um mais ou menos fervilhante jogo de aparências.
Nestes Recortes do Cinema a proposta é percorrer alguns aspetos que cimentaram o adjectivo felliniano. Aspetos não apenas de ordem teórica mas palavras-chave de um universo nascido da sua própria metamorfose.

A primeira palavra é Rimini, a pequena cidade costeira onde Fellini nasceu e que serviu de página em branco para se projectar uma viagem chamada cinema. Veja-se como a evocou logo em I vitelloni (Os Inúteis, 1953), fazendo-se representar pelo personagem de Moraldo (Franco Interlenghi), que apanha o comboio para Roma na fuga à dormência dessa vida na província, ou como, para a revisitar definitivamente, lhe exagerou os traços no retrato da adolescência que é Amarcord (1973). Este filme de avantajada fantasia masculina teve origem nuns escritos de Fellini aquando a sua permanência no hospital, em 1967, depois de um enfarte.
Uma coisa é certa: nunca vou de livre vontade a Rimini. Digo-o com toda a sinceridade. É como um bloqueio. Ainda lá tenho família: a minha mãe, a minha irmã. Será medo dos meus sentimentos? É mais a sensação de cada regresso ser o remoer realizado e masoquista das minhas recordações: uma operação espectacular, literária. Claro, tem o seu charme. Um charme sonolento. E vago. É o facto de não encarar Rimini com objectividade. É apenas uma dimensão da minha memória. Aliás, sempre que estou em Rimini, sou atormentado por fantasias que julgava arrumadas e classificadas de uma vez por todas.
Como falar de Rimini? Uma palavra com muitos “is” que se assemelham a pequenos soldados alinhados. Não consigo ser objectivo. Rimini é um gatafunho indecifrável, assustador, terno, ainda por cima com a respiração profunda do mar, um grande espaço vazio, aberto. Lá, a nostalgia é mais límpida, sobretudo no Inverno: o Adriático, os cumes brancos das vagas, o vento forte.
Federico Fellini, La Mia Rimini, Guaraldi, 2003

Este modo de apreender e apresentar aos outros a realidade é a do desenhador que adorava as bandas desenhadas populares – fumetti – e cujas ilustrações serão o embrião de muitas personagens; entre as mais famosas, a chaplinesca Gelsomina (Giulietta Masina) de La strada (A Estrada, 1954), e basicamente todas aquelas em que vislumbramos a sua linha robusta. Que outro impulso senão a voluptuosidade das formas poderia estar por trás da escolha e descoberta de Anita Ekberg em La dolce vita (A Doce Vida, 1960)? Mas Fellini era também um apreciador das “pequenas personagens” e, sobretudo, de rostos, como escreveu nas memórias o seu alter ego Marcello Mastroianni, contando um episódio delicioso.
Todas as personagens que escolhia eram singulares, todas. Todas divertidas, umas por um aspecto, outras por outro: da puta ao homossexual, do padre ao miserável. O importante era que não tivessem o ar “de actor”, Fellini detestava-o. Não gostava dos actores de comportamento profissional. Adorava as caras, porque o seu cinema era feito sobretudo de imagens. Para escolher as «caras» para os papéis menores, Fellini ia sempre a Nápoles. Uma ou outra vez fui com ele, por exemplo para o Prova d’orchestra [Ensaio de Orquestra, 1978]. Punha um anúncio no jornal de Nápoles: «Fellini procura actores. Apresentar-se amanhã a partir das 10 da manhã no hotel tal quarto número tal».
Toc-toc-toc, «Entre.» E apareceu o primeiro napolitano. Fellini, que para aquele filme precisava de músicos, perguntou-lhe: «Que instrumento tocas?» «Eu nada, mas o meu irmão é um génio!»
Pergunto-me: que outro realizador levaria em consideração a louca saída deste senhor? Fellini contratou-o imediatamente.
Marcello Mastroianni, Eu lembro-me, sim, bem me lembro, Teorema, 1997 [trad. José Colaço Barreiros]
Quem corrobora esta relevância das suas personagens, consideradas até ao último pormenor da expressão, é Michel Chion, desde logo, fazendo a ponte para a má réplica da cultura televisiva.
As crónicas de Fellini não são superficiais; elas alimentam-se de uma cultura profunda – apesar da coqueteria que muitas vezes o faz apresentar-se, ele próprio, como um mau aluno –, de um olhar agudo sobre a época e as pessoas. Mas a ideia de sátira no sentido da generalização é-lhe estrangeira, e cada uma das suas personagens, mesmo se se parecem com um tipo, este é incansavelmente novo, por qualquer traço de maquilhagem, qualquer olhar, qualquer luz, qualquer postura, de maneira que não se encontre dois rostos semelhantes. Correndo o risco, por outro lado, de que esta extrema individualização, monumental, de todo o detalhe do afresco, gere uma impressão de igualdade e monotonia. O mesmo problema que Flaubert enfrentou em vários dos seus romances. (…)
Assim, logicamente, a televisão tornou-se o alvo de Fellini, porque, com o seu desfile de individualidades, o seu catálogo não hierarquizado de rostos e vozes, ela apresentava-se como uma paródia imprevista e desleixada da forma felliniana, da qual rouba a premissa, marcando-a com o carimbo da indiferença e da mediocridade.
Michel Chion, Cahiers du cinéma, nº 474, Dezembro de 1993
Já o protagonista é uma figura ainda mais sofisticada, segundo André Bazin, encontrando a alma na aparência dos seus gestos.
O protagonista felliniano não é um “personagem”, é um modo de ser, uma forma de vida. Por isso, o realizador pode defini-lo bem através do seu comportamento: o caminhar, a maneira de vestir, o penteado, o bigode, os seus óculos de sol. Este cinema tão anti-psicológico entra na alma do protagonista. O cinema da alma foca-se quase exclusivamente em aparências; é um cinema no qual o olhar do espectador é mais importante. Fellini ridicularizou positivamente uma certa tradição analítica e dramática substituindo-a por uma pura fenomenologia do ser em que os lugares comuns dos gestos do homem podem ser os faróis do seu destino e da sua salvação.
André Bazin no texto “The Profound Originality of I Vitelloni”, Cardullo, Bert, “Bazin on Early Fellini: Three Original Reviews”, The Kentucky Review, 2003
Outra palavra-chave, ou melhor, nome-chave do dialeto felliniano: Nino Rota. A sua música corresponde a um estado mental que atravessa quase todos os filmes, um sentimento de diversão circense que desagua na tristeza: é mais ou menos esta a interpretação de Martin Scorsese. Algo que o pouco lembrado I Clowns (Os Clowns, 1970), esse mergulho de Federico Fellini na sua obsessão de infância, ilustra como nenhum outro filme, no final com os dois palhaços a tocarem melodicamente trompete num circo vazio. A década de 1970 assinala, de resto, o carregar das notas de nostalgia.
Nino Rota e Fellini ligaram-se criativamente; a certa altura, não sabemos se as imagens criam a música ou se a música cria as imagens. É de facto um mundo especial criado pela sonoridade, isto é, uma sonoridade de Nino Rota que só pode existir nos filmes de Fellini. No momento em que escutamos as três primeiras notas da banda sonora de Rota em qualquer um dos filmes de Fellini pensamos na palavra felliniano. Uma espécie de circo sonoro, num certo sentido. A música de Nino Rota é extravagante e triste e divertida e bela. Em praticamente todos os filmes há um tema identificável. E é muito comovente, vai mais longe em termos de ser emoção ou ser sentimental – há uma diferença entre emoção e sentimental – anda cuidadosamente à volta disso e, se não o aceitamos, também não aceitamos este tipo de filme. Mas se aceitarmos, a música, pelo que sinto, não rasga, antes cria uma espécie de circo da mente, de certa forma, da alma.
Martin Scorsese na apresentação do DVD de La Strada, Criterion Collection.
Por onde quer que se pegue, a palavra sonho tem de vir atrelada a Fellini. Foi essa dimensão da psique – plenamente explorada em Otto e mezzo (Fellini Oito e Meio, 1963), para depois contaminar toda a obra – que estipulou a ausência de rigidez narrativa, uma aceitação da textura líquida das “memórias oníricas”, e o seu estilo de domador de fantasias. É de tal modo definidor que, mesmo uma descrição da rodagem de Il bidone (O Conto do Vigário, 1955), pelo assistente de realização Dominique Delouche, condensa a ideia de um modo fabuloso.
Quem entrasse no estúdio, neste momento, poderia julgar estar num sonho aquático. O movimento da câmara é particularmente delicado, e Fellini, de olho na objectiva, pede silêncio absoluto. Os candeeiros parecem faróis de um submarino. Há casais a dançar parados, para não se perderem, e a ondular como algas. Numa poltrona, rebolam-se três mulheres: a ostra com uma pérola, um coral e o peixe-serra. Há alguns crustáceos no tapete. O perchista, com uma lança, e Martelli, a mexer no candeeiro que traz na mão, parecem dois escafandristas. Tudo isto é maravilhosamente absurdo no silêncio e na penumbra, até voltar a ser um espectador ingénuo e esquecer o porquê e o como do cinema.
Dominique Delouche, “Diário de O Conto do Vigário”, Cahiers du cinéma, nº 57, Março de 1956

Anfitrião de sonhos, Fellini nos últimos anos de vida viria a deixar-se corroer por uma melancolia tremenda. Aquela que atravessa Ginger e Fred (1986), com os velhos Mastroianni e Masina, o espectral Intervista (Entrevista, 1987), e o derradeiro grito face à mediocridade do império televisivo de Berlusconi, La voce della luna (A Voz da Lua, 1990). Um desgosto artístico e humano que David Lynch testemunhou na primeira pessoa quando, por intermédio do diretor de fotografia Tonino Delli Colli, visitou o mestre italiano no hospital, pouco antes da sua morte.
Foi um momento maravilhoso. Conversámos durante meia hora, de mãos dadas, ele contou-me histórias sobre os velhos tempos, sobre como as coisas mudaram e tais mudanças o entristeceram. Disse-me: «David, nos bons velhos tempos, eu saía de casa, tomava o meu café, e apareciam junto a mim estudantes de cinema, conversávamos e eles sabiam tudo sobre cinema. Não viam televisão, iam ao cinema, e enquanto tomávamos o café, desfrutávamos dessas conversas óptimas. Agora, saio de casa e não há ninguém. Estão todos a ver televisão e já não falam dos filmes como fazíamos antigamente.» Quando a visita acabou, levantei-me, disse-lhe que o mundo estava à espera do seu próximo filme e fui-me embora. (…) Entrou em coma dois dias mais tarde, e depois morreu.
David Lynch, Espaço para Sonhar, Elsinore, 2018 [trad. Hugo Gonçalves]