Roubaix, une lumière (Roubaix, Misericória, 2019) esteve na origem do regresso de Arnaud Desplechin à cidade da sua adolescência, Roubaix, situada perto da fronteira com a Bélgica, um dos locais mais pobres de França e com maior percentagem de gente marginalizada. A adolescência de Desplechin foi passada com ele amedrontado e fechado no quarto mais os seus discos, filmes e livros. E por essa razão a rodagem deste projecto foi também uma oportunidade para o realizador (re)descobrir Roubaix.

Quando pela primeira vez li o título Roubaix, une lumiére, nada sabendo da história nele contada, fui atraído pela sua musicalidade, pela qualidade literária da junção destas três palavras, o seu sentido até mesmo poético, que me sugeria algo que reenviasse para o universo da religião ou da história da pintura. Aquele nome, Roubaix, de uma cidade que eu não sabia ainda que existia, lembrou-me Rembrandt, o seu trabalho pictórico que fazia surgir um módico de luz da escuridão que colocava nas telas. Podemos aproximar o filme de Desplechin desse combate entre a luz e as trevas, mas no sentido que o filme lhe dá, personificado na sua figura principal, o comissário de polícia Yacoub Daoud (fabuloso Roschdy Zem). A luz ali é sinónimo de verdade, objectivo único e final no trabalho diário de Daoud, que consegue perceber, como o próprio a dada altura afirma, as razões de todos os criminosos. Mas o que lhe interessa é obter a verdade dos factos: como as coisas aconteceram e não a razão que levou a que as mesmas tivessem tido lugar.
O filme é marcadamente realista mas cria personagens que transcendem essa dimensão e todos os actores principais são aqui notabilíssimos
Roubaix, une lumière parte de um crime real e da sua investigação, que o filme em alguns momentos reconstitui fielmente, munindo-se da referência que é o documentário Roubaix, commissariat central, affaires courantes (2008), de Mosco Boucault, sobre o mesmo caso. Existe no filme a marca forte de um realismo policial que pode fazer lembrar os melhores exemplos de séries inglesas e norte-americanas que são produto de trabalhos de investigação longos e minuciosos, e que se traduziram depois em ficções marcadas por um ritmo de cinema e pela invulgar densidade humana das personagens (The Wire, HBO 2002-2008, é o maior exemplo até hoje). A acção de Roubaix… tem lugar durante o Natal e o filme abre com as iluminações de rua, captadas pela câmara digital de Irina Lubtchansky, que suga os mais pequenos pontos de luz para uma história que decorre principalmente de noite e que fala de vidas solitárias e de gente insone, e às quais é sobreposta a banda-sonora de Grégoire Hetzel, a fazer lembrar o estilo de composição de Arvo Pärt, anunciando as dimensões de romanesco e de religiosidade a desenvolver.
O filme é marcadamente realista mas cria personagens que transcendem essa dimensão e todos os actores principais são aqui notabilíssimos (Léa Seydoux, Sara Forestier, Antoine Reinartz). Acima de todos eles está a personagem de Daoud, que me lembrou esse arquétipo cinematográfico que é Clint Eastwood, em particular no filme Absolute Power (Poder Absoluto, 1997), onde o então crítico de cinema Miguel Gomes vira um fantasma protector, que é o que o comissário Daoud também significa em Roubaix… O modo como ele conduz as diferentes investigações mostra que nada do que é humano lhe é estranho, e dá origem a uma espécie de sensação de apaziguamento da parte dos infractores, tanto nos crimes de menor importância como nos crimes capitais. Daoud pode ser olhado como um profeta que vê a verdade antes dos seus colaboradores, e que absolve espiritualmente os culpados, numa lógica de que as coisas são o que são, antes de estes serem confrontados com a justiça. No comissário Yacoub Daoud podemos ver ainda o reverso da história de vida do realizador Arnaud Desplechin, uma vez que se Desplechin deixou a família para ir viver a idade adulta na cidade de Paris, Daoud viu partir a família para a terra natal, algures no norte de África, permanecendo em Roubaix desde a infância, e tornando-se através da aura que o filme lhe dá como que a supraconsciência moral daquele lugar. Uma figura que inspira a misericórdia para com as vidas daqueles que o habitam.